sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

POR QUE DOUTRINA FILOSÓFICA-MORAL E NÃO RELIGIÃO.

 

“O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação

e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que se estabelecem

entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências

morais que dimanam dessas mesmas relações.” (Allan Kardec)


 

 

            PANORAMA HISTÓRICO

            Uma ideia não se consolida sem a influência do espírito do seu tempo. Não poderia ser diferente com o Espiritismo, tanto em chegada à França, como no Brasil. Marshal assim se expressa:

“(...) Agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões e as sociedades elaboram os consensos, cada qual a sua maneira. A comunicação social é um risco (...). E os efeitos desses riscos podem ser inovações radicais. (...).”

 

            Allan Kardec faz uma menção notável e reforça essa realidade, quando em “A Gênese”– Caracteres da Revelação Espírita -,adverte que o Espiritismo vindo antes das descobertas científicas – naquilo que a professora Dora Incontri define como inchaço do pensamento –, teria sido uma obra abortada como tudo o que vem antes do seu tempo. Continua ele: “Todas as ciências se encadeiam e se sucedem numa ordem racional; nascem umas das outras, à medida que encontram um ponto de apoio nas ideias e nos conhecimentos anteriores. Posto isto, conclui Kardec: não poderia vir senão depois. O mundo dos Espíritos trabalha com as macrotendências, coisa que as instituições espíritas não as fazem.

            O Iluminismo, movimento cultural surgido no século XVII, caracterizado pela racionalidade crítica e no questionamento filosófico, implicou na recusa do dogmatismo e da fé, teve influência preponderante no século XIX e foi fundamental para o surgimento do Espiritismo. Iluminismo foi mais que um sistema filosófico, sendo considerado um movimento cultural e espiritual.

            Nadja do Couto Valle, doutora em Filosofia, adentra essa especificidade e afirma que é imperativo traçar desde o século XVII a ancestralidade das principais ideias do século XIX, contextualizando alguns filósofos e sistemas em sua dimensão histórica, enfim, tudo dialogando com a filosofia, porque nada a ela é estranho. A especulação filosófica rompe com a da natureza medieval em Deus, e o conhecimento da filosofia moderna e contemporânea se volta para o homem.

            O século XIX, portanto, é notabilizado pela total autonomia da pesquisa filosófica em relação à teologia; de pluralismo das linhas filosóficas, que passaram a ter liberdade de sustentar qualquer sistema mediante a razão. Com o prestígio das ciências naturais e das suas descobertas, diz Valle, os filósofos julgaram poder aplicar os métodos e os critérios destas ciências e obter resultados semelhantes, imprimindo com isso a marca das filosofias do século XIX. O homem abandona a forma de entender o mundo através da ótica religiosa; não mais através pela fé e sim pela razão.

 

            FILOSOFIA ESPIRITUALISTA X RELIGIÃO

            Allan Kardec lança mão do método experimental da pesquisa científica à época e realiza a pesquisa espírita, fazendo nascer a ciência do espírito, inaugurando a Era do Espírito.

            A comprovação científica do Espírito, cogitado por toda a caminhada evolutiva das civilizações, implica em profundas transformações filosóficas, sociais e culturais. Seguindo a maiêutica socrática, Allan Kardec, dialogando com os Espíritos Reveladores, sistematiza os princípios da Doutrina Espírita e  publica “O Livro dos Espíritos”, classificando-o como Filosofia Espiritualista. Avesso ao espírito de sistema, Kardec sintonizado com os anseios da época, não a denomina Filosofia Espírita nem Religião Espírita. Se assim agisse, sabia ele, seria mais uma filosofia – como a cristã, a judaica, a protestante, - ou uma religião dentre tantas. Kardec deixa claro que não pode haver uma filosofia espírita, pois concorreria com uma filosofia geral. O Espiritismo veio para realizar a confluência de conhecimentos.

Ele explica na Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita, em O Livro dos Espíritos, a sua decisão:

 

“Como especialidade “O Livro dos Espíritos” contém a Doutrina Espírita: como generalidade liga-se ao Espiritualismo, do qual apresenta uma das fases. Essa é a razão porque traz sobre o título as palavras: Filosofia Espiritualista.

 

            No tocante à religião tão louvada no Brasil, Kardec em Viagem Espírita em 1862,  exara a sua compreensão de religião e realça a condição de filosofia do Espiritismo, advertindo que ele veio para todas as áreas do conhecimento. Leia-se:

 

“Tudo nas religiões espíritas deve se passar religiosamente, isto é, com gravidade, respeito e recolhimento. Mas é preciso não esquecer que o Espiritismo se dirige a todos os cultos. (...) O Espiritismo, chamando a si os homens de todas as crenças, para uni-los sob o manto da caridade e da fraternidade, habituando-os a se olharem como irmãos, qualquer que seja sua maneira de adorar a Deus”.

 

            Em O que é o Espiritismo?, a esse respeito, ele afirma:

 

“O Espiritismo prende-se a todos os ramos da Filosofia, da Metafísica, da Psicologia e da Moral; é um campo imenso que não pode ser percorrido em algumas horas.”

 

Alyssom Mascaro, na obra Cristianismo Libertador, capta com muita originalidade o pensamento de Kardec:

 

“(...): o Espiritismo libera a humanidade, finalmente, das “razões” de natureza humana, principalmente as religiosas.”

 

            A PRÁXIS FILOSÓFICA

            O universo da filosofia, conquanto, lidava com o desafio que lhe cabia, explicar acerca do homem e do Universo. A filosofia, até então, só havia tentado explicar o mundo, nunca transformá-lo. As transformações foram pontuais. Há necessidade agora de uma filosofia da práxis.

            No idioma pátrio “práxis” significa “prática”. Diante dos diversos empregos da palavra “prática, opta-se para se continuar a utilização da “práxis”, na sua origem grega.

A práxis ocupa lugar central na filosofia – diz Vázquez – que se concebe a si mesma não só como interpretação do mundo, mas também como elemento do processo de sua transformação. Na moral, a ação transformadora não pode engendrar nada fora de si mesma.

A práxis filosófica que se discutia naquele momento era o marxismo. Ao enfatizar a práxis (ação) e criticar a passividade da filosofia (logos), Marx propõe que o homem seja o artífice de suas aspirações. Vai surgir o conflito entre idealismo e materialismo. Marx vai buscar na ideologia alemã hegeliana, que não as satisfaz.

O Espiritismo enfatiza uma revolução interior. Enquanto Marx enfatiza as questões materiais, Kardec comprova a realidade espiritual com reflexão na matéria.

Kardec certamente sabia das inquietações de Marx devido à vivência próxima com Maurice Lachâtre, discípulo de Pierre Joseph Proudhon, um dos pais do anarquismo, que manteve correspondência com Marx, que o considerava um socialista utópico.

            Kardec incorporou de seu mestre – Pestalozzi – a teoria dos três estados, natural, social e moral, onde se inserem várias leituras possíveis, inclusive as religiosas. O estado falimentar dessas religiões é o social, onde prevalecem apenas os aspectos social, econômico e político. O conflito religioso dentro do Instituto de Yverdon, que o levou a falência, fez Kardec sonhar desde os seus 15 anos com uma solução para o sectarismo religioso. Chegara então esse momento e o próprio Lachâtre deixou registrado.

            Diante de um cenário com tantas possibilidades, dificilmente Kardec optaria em tornar a Doutrina Espírita mais uma religião. Isso é fato. Como é fato também que essa possibilidade fora sempre aventada no seu entorno a ponto de incomodá-lo. Vemos isso através do seu humor doutrinário em dois momentos: o primeiro, em suas viagens em 1862, na obra de igual título. E outro, no seu festejado discurso na Sessão Anual Comemorativa dos Mortos, em 01.11.1868, publicado na Revista Espírita de dezembro de 1868, (decisões, na visão do articulista) com o propósito de terminar com a celeuma. No último, então, em um discurso detalhado, intitulado O Espiritismo é uma religião? , depois de falar sobre o aspecto filosófico religioso do Espiritismo, ele adverte:

 

“Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, não podia nem devia enfeitar-se com um título cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis porque simplesmente se diz: DOUTRINA FILOSÓFICA E MORAL.

           

            No Brasil, diversas foram as circunstâncias que levaram o movimento espírita brasileiro à adoção de um caráter religioso igrejeiro, tema que abordaremos em breve.

            O preço dessa opção é, no entender do articulista, o caos religioso no Brasil hoje. Esse caos é o atestado do fracasso doutrinário do movimento espírita brasileiro. Recordemos Kardec, na Constituição do Espiritismo, em Obras Póstumas, que os resultados coletivos e gerais seriam fruto do Espiritismo completo, que na sua visão, sucessivamente se desenvolveria, e não se desenvolveu.

 

Referências:

AUTORES DIVERSOS. Em torno de Rivail. São Paulo: LACHÂTRE, 2004.

INCONTRI, Dora. Pestalozzi - Educação e ética. São Paulo: Scipione, 1996.

KARDEC, Allan. Revista espírita. Brasília: FEB, 2004.

_____________ Viagem espírita. São Paulo. ‘O Clarim.

_____________ Obras póstumas. Rio de Janeiro. FEB. 1987;

_____________ O que é o espiritismo. Brasília: FEB, 2007.

MARSHAL, Salim. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

MASCARO, Alysson. Cristianismo libertador. São Paulo: Comenius, 2002.

VÀZQUEZ, Adolfo Sanchez. Filosofia da Práxis. São Paulo: CLACSO, 2007.

2 comentários:

  1. O desvio cometido no Brasil foi mais grave do que aconteceu na França pós-Kardec, pois a ideia de que o Espiritismo é uma religião, inclusive, impede qualquer debate sensato.

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