Pular para o conteúdo principal

CRIANÇAS, MARIA E O JARGÃO DO AUTOAMOR





Por Dora Incontri 

Hoje é dia das crianças, mas também é dia de Maria, símbolo da maternidade, na sua manifestação negra e brasileira de Nossa Senhora de Aparecida. Crianças precisam de mães Maria e Maria é uma inspiração para mães sensíveis, que tenham vínculo com a tradição cristã.

Mas quero refletir sobre isso, lançando alguma luz sobre uma ideia, o autoamor, que virou uma febre no ramo da autoajuda, seja ela católica, budista, espírita ou laica – pois como a autoajuda vende bem, ela está em toda parte e virou discurso comum da ala da espiritualidade light, que anda sendo semeada em nossos tempos de superficialidade.


Obviamente, uma pessoa saudável, com psiquismo minimamente equilibrado, terá seu autocuidado – o que implica desde cuidados de higiene e alimentação a cuidados psíquicos e financeiros. Ou seja, é necessário, útil, bom que cuidemos de nós mesmos, que tenhamos respeito por nossas necessidades.

Os grandes mestres da espiritualidade (me refiro aos grandes mesmo) sempre pensaram assim e não foram pessoas que maceraram o corpo e usaram de qualquer tipo de autoflagelação, nem física, nem psíquica. Jesus ensinou que é preciso amar ao próximo como a si mesmo. Buda, depois de passar por uma fase de ascetismo exagerado, afirmou que o ideal seria o caminho do meio. Nem ascetismo, nem hedonismo. No Evangelho segundo o Espiritismo, também se condena o autoflagelo e se diz que o ser humano tem que ser do bem, como “homem do mundo”, usufruindo moderadamente dos bens que a civilização oferece.

Nesse sentido, nenhum grande mestre e nenhuma grande tradição espiritual, em sua essência, cai no fanatismo da anulação da pessoa humana, nem no moralismo da repressão de todos os prazeres terrenos. Quem faz isso são os que, em todas as tradições, fazem leituras extremistas e na verdade querem dominar consciências, que devem sempre permanecer autônomas para se autogovernarem, sem necessidade de imposições externas.

Entretanto, também todas as tradições espirituais – inclusive a espírita – enfatizam a abnegação, a doação de si, o desapego aos próprios interesses, aliás o amor ao próximo, como princípio máximo da lei divina.

Em nossa sociedade, porém, ferozmente individualista e narcísica, fortemente hedonista e predominantemente materialista, doar-se, abnegar-se, sacrificar-se por alguém são atitudes menosprezadas, esquecidas e consideradas até de mau gosto. Vivemos cercados de adultos infantilizados, incapazes de assumir responsabilidades com o outro.

Entra o discursinho ralo da autoajuda: o do autoamor, que nunca vejo acompanhado do amor ao próximo, como fazia Jesus. O resumo desse discurso, o subtexto que está por trás dele é:

primeiro tenho que atender aos meus interesses, aos meus desejos, ao meu desenvolvimento pessoal (e entra aí fortemente a busca da prosperidade pessoal) e se sobrar alguma coisinha para o próximo, tudo bem. Ou ainda, eu me amo e o resto que se dane!

Porque o que se vê socialmente é um estímulo a esse tipo de atitude.

Ora, na vida, claro que que temos que atingir um modo de existir independente e autônomo, mas… sempre dependemos uns dos outros e há momentos na existência em que dependemos totalmente dos outros. São os momentos de maior vulnerabilidade por que todos os seres humanos passam: a infância (sobretudo os primeiros anos), a doença, a velhice e a morte.

Quando estamos nessas fases, precisamos de pessoas que nos amem e que nesse momento pensem mais em nós do que nelas. Uma mãe, por exemplo, e de preferência o pai também,  no primeiro ano de vida de um filho, precisa pensar muito mais na criança do que nela própria. Aliás, o nascimento de uma criança, eu digo isso sempre, mexe como egoísmo dos adultos. Somos convocados a sair de nosso umbiguismo, para atender às necessidades do bebê, que requer absolutamente tudo. Precisamos estar numa atitude madura de responsabilidade e não cabe sermos crianças cuidando de outras crianças, como o que acontece muito por aí.

Para driblar esse conflito entre a necessidade dos vulneráveis e dependentes e a necessidade de sobrevivência material ou a tendência ao individualismo que jamais cuida de ninguém, a sociedade oferece o caminho da terceirização: berçários, escolas em período integral, creches, casas de repouso para idosos, babás, cuidadores profissionais etc. Muitas mães e pais gostariam de cuidar mais e estar mais com seus filhos, mas não podem, porque precisam trabalhar. A sociedade não valoriza esse tipo de trabalho de cuidar dos seus e por isso não favorece isso. Muitas mães e pais poderiam cuidar mais e estar mais com os filhos, mas não querem, porque são atraídos para essa vida louca de sucesso profissional e ganhos monetários.

O mesmo se refere aos idosos, aos doentes. Ninguém tem tempo, ninguém tem paciência, ninguém tem vontade de cuidar, de estar junto.

Mas, temos de ter tempo para cuidar de nós. De fazer academia, de viajar, de namorar, de postar no Face que estamos no auge da felicidade, leia-se, prosperidade e fruição dos prazeres da vida.

O discurso do autoamor aí entra como brilhante justificativa e estímulo.

Nunca ouço os arautos desses discursinhos falarem sobre temas como compaixão, dedicação, abnegação, amor devotado…

E assim vamos caminhando para uma sociedade em que adolescentes estão se automutilando, tentando e muitas vezes conseguindo se suicidar; uma sociedade em que velhos morrem sozinhos em apartamentos inóspitos, e cujos corpos só são encontrados meses depois (recentemente houve uma reportagem a respeito na Espanha).

Por isso, quis relacionar o meu texto de hoje, lembrando das crianças, esses seres de ternura, de emoção e de amor, que precisam da nossa presença, de nossos cuidados plenos e lembrando de Maria, mãe de Jesus, cuja imagem representa justamente esse amor de entrega, sem reservas, que não está presente nessa fala rala do autoamor de hoje.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DEUS¹

  No átimo do segundo em que Deus se revela, o coração escorrega no compasso saltando um tom acima de seu ritmo. Emociona-se o ser humano ao se saber seguro por Aquele que é maior e mais pleno. Entoa, então, um cântico de louvor e a oração musicada faz tremer a alma do crente que, sem muito esforço, sente Deus em si.

SOCIALISMO E ESPIRITISMO: Uma revista espírita

“O homem é livre na medida em que coloca seus atos em harmonia com as leis universais. Para reinar a ordem social, o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se nas mãos; do Espiritismo pode nascer o Socialismo idealista.” ( Arthur Conan Doyle) Allan Kardec ao elaborar os princípios da unidade tinha em mente que os espíritas fossem capazes de tecer uma teia social espírita , de base morfológica e que daria suporte doutrinário para as Instituições operarem as transformações necessárias ao homem. A unidade de princípios calcada na filosofia social espírita daria a liga necessária à elasticidade e resistência aos laços que devem unir os espíritas no seio dos ideais do socialismo-cristão. A opção por um “espiritismo religioso” fundado pelo roustainguismo de Bezerra Menezes, através da Federação Espírita Brasileira, e do ranço católico de Luiz de Olympio Telles de Menezes, na Bahia, sufocou no Brasil o vetor socialista-cristão da Doutrina Espírita. Telles, ao ...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

ESPIRITISMO E POLÍTICA¹

  Coragem, coragem Se o que você quer é aquilo que pensa e faz Coragem, coragem Eu sei que você pode mais (Por quem os sinos dobram. Raul Seixas)                  A leitura superficial de uma obra tão vasta e densa como é a obra espírita, deixada por Allan Kardec, resulta, muitas vezes, em interpretações limitadas ou, até mesmo, equivocadas. É por isso que inicio fazendo um chamado, a todos os presentes, para que se debrucem sobre as obras que fundamentam a Doutrina Espírita, através de um estudo contínuo e sincero.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

É HORA DE ESPERANÇARMOS!

    Pé de mamão rompe concreto e brota em paredão de viaduto no DF (fonte g1)   Por Alexandre Júnior Precisamos realmente compreender o que significa este momento e o quanto é importante refletirmos sobre o resultado das urnas. Não é momento de desespero e sim de validarmos o esperançar! A História do Brasil é feita de invasão, colonização, escravização, exploração e morte. Seria ingenuidade nossa imaginarmos que este tipo de política não exerce influência na formação do nosso povo.

O ESPIRITISMO É PROGRESSISTA

  “O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõe todos os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem - a mão para marchar, na mesma rota ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.”   Revista Espírita – junho de 1868, (Kardec, 2018), p.174   Viver o Espiritismo sem uma perspectiva social, seria desprezar aquilo que de mais rico e produtivo por ele nos é ofertado. As relações que a Doutrina Espírita estabelece com as questões sociais e as ciências humanas, nos faculta, nos muni de conhecimentos, condições e recursos para atravessarmos as nossas encarnações como Espíritos mais atuantes com o mundo social ao qual fazemos parte.

OS ESPÍRITAS E OS GASPARETTOS

“Não tenho a menor pretensão de falar para quem não quer me ouvir. Não vou perder meu tempo. Não vou dar pérolas aos porcos.” (Zíbia Gaspareto) “Às vezes estamos tão separados, ao ponto de uma autoridade religiosa, de um outro culto dizer: “Os espíritas do Brasil conseguiram um prodígio:   conseguiram ser inimigos íntimos.” ¹ (Chico Xavier )                            Li com interesse a reportagem publicada na revista Isto É , de 30 de maio de 2013, sobre a matéria de capa intitulada “O Império Espírita de Zíbia Gasparetto”. (leia matéria na íntegra)             A começar pelo título inapropriado já que a entrevistada confessou não ter religião e autodenominou-se ex-espírita , a matéria trouxe poucas novidades dos eventos anteriores. Afora o movimento financeiro e ...