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OS ESTUPROS, OS ABORTOS E OS HOMENS¹

 

Por Dora Incontri

Não dá para escapar deste tema indigesto, o tal Projeto de Lei 1904/2024, que prevê crime de homicídio para as meninas e mulheres que abortem com mais de 22 semanas de gestação – o que em tese pode render até 20 anos de detenção para quem pratica o aborto, enquanto estupradores podem pegar no máximo 12 anos de prisão.

O assunto é delicado e tem nuanças, que precisam ser explicadas. Realizar um aborto de um feto a partir de 5 meses tem o significado de morte de um bebê, sim. Não podemos minimizar este fato. Há casos de nascituros com 5 meses de gestação – embora raros, que sobrevivem em incubadora. Daí para frente, 6, 7, 8 meses, já se trata de um bebê quase inteiramente formado. E pela lei que vem desde 1940, o aborto em caso de estupro e em caso de risco de vida da mãe pode ser praticado em qualquer período da gestação. Note-se que nos casos de crianças que engravidam, a lei funciona nos dois sentidos: são vítimas de estupro e ao mesmo tempo correm risco de vida em levar adiante a gravidez, por não terem ainda o corpo formado.

Quis colocar isso tudo em pauta porque a facção, que se autodenomina pró-vida, mergulha nessa linha de argumentação de empatia com o feto abortado. A respeito, houve uma patética contadora de histórias, no Congresso, infelizmente espírita, levada lá por um senador bolsonarista, lamentavelmente também espírita, que fez um apelo emocional, sensacionalista e diria até histérico, com uma encenação de um aborto, do ponto de vista do feto. Muita gente está colocando uma pergunta pertinente: por que a senhora em questão não faz a encenação de um estupro?

Vamos aos números, implacáveis. O IPEA (Instituto de pesquisa econômica aplicada), um órgão oficial, estima que no Brasil, 822 mil estupros são praticados por ano. Entre 2009 e 2019, os números notificados, portanto não estimados, são os seguintes: 63.309 crianças entre 0 a 10 anos (bebês são estuprados sim!!) e 98.221 adolescentes entre 11 e 20 anos. São essas crianças e adolescentes, na maioria das vezes estupradas por familiares, incluindo pais, que serão criminalizados como assassinos, se vierem a procurar o direito que têm ao aborto, fora do tempo proposto pelo PL, alcunhado de PL do estupro.

Não temos números, mas notícias diárias, da quantidade de abusos e estupros praticados dentro de igrejas e comunidades religiosas.

Ora, são na sua maioria homens que legislam e que querem impor essa excrescência de PL. Homens supostamente religiosos, de um fundamentalismo impiedoso.  Pune-se a vítima e não se faz nada para acabar com essa cultura do estupro, que dá medo a todas as mulheres, de qualquer idade (as crianças ainda não sabem, mas correm também risco em grau máximo, e como se vê, nem dentro de casa estão seguras).

É chocante abortar um feto que se mostra já um bebê formado? É chocante sim e a maioria de nós não teria nenhum gosto em realizar um aborto assim. Mas é muito mais chocante um bebê ser estuprado e uma criança de 10 anos ter que levar a cabo uma gravidez de seu próprio pai – uma situação nada incomum. Isso é o que se chama de um dilema ético, que não pode ser tratado aos gritos e legislado a toque de caixa num congresso predominantemente de homens machistas, conservadores e com grande contingente de religiosos fundamentalistas, que estão sempre querendo impor seus valores retrógrados à sociedade.

Seria sim urgente que discutíssemos medidas educativas e terapêuticas em massa, para acabar com essa tragédia do estupro de mulheres de todas as idades e do abuso sexual na infância… essas são marcas que ficam para sempre, resultando em trauma permanente, adoecimento psíquico, dificuldades sexuais às vezes insuperáveis, vidas enfim estragadas por algozes que deveriam proteger as vítimas e não as violentar.

Assim, enquanto houver no Brasil, estupros a cada 2 minutos, enquanto houver como em 2023, 172 mil crianças sem o nome do pai, enquanto tivermos, como na última década, 1,7 milhões de mães solo (a maioria negras), enquanto essa violência e esse descompromisso tipicamente masculinos ainda forem prevalentes em nossa cultura, os homens deveriam fazer um silêncio penitente e se abster de falar, condenar e legislar sobre o aborto.

E todos e todas, como sociedade, deveríamos estar trabalhando para acabar com essa estrutura do patriarcado opressor!

 

¹ publicado originalmente no jornal GGN, 19.06.2024

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