Pular para o conteúdo principal

ESPIRITISMO À BRASILEIRA: A UNIDADE DE PRINCÍPIOS

 

                      O Projeto 1868, concebido por Allan Kardec e publicado em Obras Póstumas, o insigne mestre adverte que um dos maiores obstáculos capazes de retardar a propagação da Doutrina seria a falta de unidade. Ele estabelece no projeto que dois elementos haveriam de concorrer para o progresso do Espiritismo: o estabelecimento teórico da Doutrina e os meios de popularizá-la. (grifos nossos)

            Devido às múltiplas vertentes doutrinárias que se instituíram no movimento espírita brasileiro no seu início, ações foram propostas na busca da unidade desejada por Kardec. Junta com a fundação do Centro Espírita Brasil, instituíram uma escola para médiuns, no entanto, ao contrário, era um projeto para todos os espíritas, que propunha uma torrente de orientações sistemáticas e detalhadas a respeito de como deveriam ser e a quem se destinavam as reuniões dos grupos espíritas. O Centro Espírita Brasil se revelou uma experiência malsucedida de unificação.

            O Código Penal de 1890 trouxe muitas diretrizes que contemplavam perseguições aos espíritas brasileiros, o que ensejou uma boa oportunidade para unificar os adeptos na defesa dos princípios espíritas. Assim, a Federação Espírita Brasileira(FEB), foi a que melhor ofereceu condições a esse propósito. E, em janeiro de 1891, a FEB, pela primeira vez, festejou o aniversário de sua fundação, justificando ser essa a oportunidade para reforçar a união e a solidariedade ao Código Penal. Pelo menos representantes de 13 entidades se fizeram presentes.

            A partir daí a FEB começou a se apresentar como um ‘porto seguro’ para o enfrentamento pelos grupos espíritas pela aplicação do Código Penal. E foi pela ocasião da comemoração do aniversário de morte de Allan Kardec, que em 1891 lá esteve presente um número maior de representantes dos grupos do que em 1890.

            Fato curioso ocorreu durante o ano de 1891, quando seis grupos aderiram à FEB, ‘adesão’ essa que não ficou muito clara, mas o certo é que implicou geralmente na transferência do local de reunião de tais grupos para os aposentos da FEB. Bom lembrar que naquela época o movimento espírita brasileiro se concentrava na cidade do Rio de Janeiro. Por causa dessas iniciativas, as reuniões públicas que ocorriam na FEB passaram a ser conduzidas cada noite por um centro espírita diferente. O fortalecimento da FEB, ao longo dos quatro anos da promulgação do Código Penal, não residia mais em questões de divulgação da Doutrina Espírita, mas em um espaço onde os centros espíritas encontravam um apoio institucional.

            Com a assunção de Dr. Bezerra de Menezes à presidência da FEB, o mesmo propõe que essa seja o “centro em torno do qual se agregue a massa espírita, formando um todo harmônico e estável.”

             Almejando esse propósito, convida grupos de todo o país a enviarem representantes para uma reunião que deveria se realizar ao final de 1895 no Rio de Janeiro. Na realidade, essa reunião nunca aconteceria, pois a FEB teria seus planos conturbados pela atuação de outro grupo, a União Espírita de Propaganda do Brasil (USPB), que se estruturara em um projeto semelhante àquele que motivara o Centro Espírita do Brasil. Aqui marca o ressurgimento das fraturas presentes desde o início entre os grupos espíritas, lance decisivo para que a FEB, sob o comando de Bezerra de Menezes, tomasse definitivamente a frente do movimento espírita brasileiro e, obviamente, o projeto de unificação e união entre os espíritas.

            Para Bezerra de Menezes a “família espírita” deveria se reunir em torno de um “plano de organização” que considerasse a Doutrina Espírita como um conjunto de “verdades reveladas” de forma acabada nos evangelhos, desde que se interpretasse em “espírito e verdade”, conforme as orientações de Kardec e Roustaing.

            Para um representante da USPB, o “espiritismo” defendido por Bezerra de Menezes pecava pelo seu “caráter acentuadamente religioso”. Esse episódio aprofunda a cisão entre os “científicos” e os “religiosos/místicos”.

            Para Bezerra de Menezes, diz Emerson Giumbelli, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atuando no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, em sua obra O Cuidado dos Mortos, prêmio Arquivo Nacional de 1995, uma das obras que serve de apoio para essa série sobre o movimento espírita brasileiro:

 

“De um lado, Bezerra de Menezes reafirma o caráter fundamental do ‘espiritismo’ como ‘religião’, mas nega que isso redunde na transformação de uma ‘seita’ ou ‘igreja’ voltada para um ‘culto externo’. Por isso, não acha que ‘religião’ e ‘ciência’ sejam incompatíveis ou que o ‘espiritismo’ despreze a segunda, pois “ciência verdadeira é a que emana da religião, com a qual foi criada por Deus, sendo o espiritismo a consubstanciação das duas: ciência religiosa ou religião científica”.

 

            Grande equívoco de Dr. Bezerra de Menezes. A “religião espírita” surge da realidade da ciência espírita com a comprovação da realidade do Espírito. Como Allan Kardec condicionou que se a ciência evoluísse em algum ponto a Doutrina Espírita se ajustaria à ciência, a religião espírita deixará de existir caso a realidade do Espírito venha a ser negada, diz o professor Alysson Mascaro.

            Poucos espíritas têm noção das consequências dessa visão de Dr. Bezerra de Menezes para o futuro, não só do movimento espírita brasileiro, como também do Espiritismo no Brasil. A cisão dos científicos e dos místicos não representou apenas questões doutrinárias, mas especificamente grupos com práticas distintas com suas formas e dinâmicas. Tudo isso foi determinante para comprometer os pilares centrais do ideal de Kardec pensado no Projeto 1868: a popularização do Espiritismo como religião dogmático-igrejeira, contrariando o pensamento de Kardec, obviamente, inviabilizando de uma vez por todas a construção da unidade de princípios, resultando na fissura abissal que se vivencia no movimento espírita brasileiro.

            As considerações aqui presentes são históricas e não há nenhum laivo de negativar a importância do espírita Dr. Bezerra de Menezes, enquanto encarnado, e o Espírito Bezerra de Menezes para o Espiritismo no Brasil.

 

Referências:

GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: Rio de Janeiro. 1997.

KARDEC, Allan. Obras póstumas. Brasília: FEB, 2019.

SITE

<https://www.youtube.com/watch?v=gBi52aggOOc>.


           


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

“BANDIDO MORTO” É CRIME A MAIS

  Imagens da internet    Por Jorge Luiz   A sombra que há em mim          O Espírito Joanna de Ângelis, estudando o Espírito encarnado à luz da psicologia junguiana, considera que a sociedade moderna atinge sua culminância na desídia do homem consigo mesmo, que se enfraquece tanto pelos excessos quanto pelos desejos absurdos. Ao se curvar à sombra da insensatez, o indivíduo negligencia a ética, que é o alicerce da paz. O resultado é a anarquia destrutiva, uma tirania do desconcerto que visa apagar as memórias morais do passado. Os líderes desse movimento são vultos imaturos e alucinados, movidos por oportunismo e avidez.

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

OS FANATISMOS QUE NOS RODEIAM E NOS PERSEGUEM E COMO RESISTIR A ELES: FANATISMO, LINGUAGEM E IMAGINAÇÃO.

  Por Marcelo Henrique Uma mensagem importante para os dias atuais, em que se busca impor uma/algumas ideia(s), filosofia(s) ou crença(s), como se todos devessem entender a realidade e o mundo de uma única maneira. O fanatismo. Inclusive é ainda mais perigoso e com efeitos devastadores quando a imposição de crenças alcança os cenários social e político. Corre-se sérios riscos. De ditaduras: religiosas, políticas, conviviais-sociais. *** Foge no tempo e na memória a primeira vez que ouvi a expressão “todos aprendemos uns com os outros”. Pode ter sido em alguma conversa familiar, naquelas lições que mães ou pais nos legam em conversas “descompromissadas”, entre garfadas ou ações corriqueiras no lar. Ou, então, entre algumas aulas enfadonhas, com a “decoreba” de fórmulas ou conceitos, em que um Mestre se destacava como ouro em meio a bijuterias.

REENCARNAÇÃO E O MUNDO DE REGENERAÇÃO

“Não te maravilhes de eu te dizer: É-vos necessário nascer de novo.” (Jesus, Jo:3:7) Por Jorge Luiz (*)             As evidências científicas alcançadas nas últimas décadas, no que diz respeito à reencarnação, já são suficientes para atestá-la como lei natural. O dogmatismo de cientistas materialistas vem sendo o grande óbice para a validação desse paradigma.             Indubitavelmente, o mundo de regeneração, como didaticamente classificou Allan Kardec o estágio para as transformações esperadas na Terra, exigirá novas crenças e valores para a Humanidade, radicalmente diferenciada das existentes e que somente a reencarnação poderá ofertar, em face da explosiva diversidade e complexidade da sociedade do mundo inteiro.             O professor, filósofo, jornalista, escritor espírita, J. Herc...

A PROPÓSITO DO PERISPÍRITO

1. A alma só tem um corpo, e sem órgãos Há, no corpo físico, diversas formas de compactação da matéria: líquida, gasosa, gelatinosa, sólida. Mas disso se conclui que haja corpo ósseo, corpo sanguíneo? Existem partes de um todo; este, sim, o corpo. Por idêntica razão, Kardec se reportou tão só ao “perispírito, substância semimaterial que serve de primeiro envoltório ao espírito”, [1] o qual, porque “possui certas propriedades da matéria, se une molécula por molécula com o corpo”, [2] a ponto de ser o próprio espírito, no curso de sua evolução, que “modela”, “aperfeiçoa”, “desenvolve”, “completa” e “talha” o corpo humano.[3] O conceito kardeciano da semimaterialidade traz em si, pois, o vislumbre da coexistência de formas distintas de compactação fluídica no corpo espiritual. A porção mais densa do perispírito viabiliza sua união intramolecular com a matéria e sofre mais de perto a compressão imposta pela carne. A porção menos grosseira conserva mais flexibilidade e, d...