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O CERNE DA QUESTÃO DOS SOFRIMENTOS FUTUROS

 

 I



Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina.

***

 Inicialmente.

O pior das discussões sobre os fundamentos do Espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

A ideia da autonomia moral é alentadora. Antes se dizia: “quem o alheio veste na praça o despe”. Essa palavra é expressiva, mas parcial, pois não abrange um percurso mínimo de explicação de um fato. Bem compreendida, porém, fará sentido e então não será repelida.

O advento do Espiritismo trouxe uma nova visão, revolucionária, para a justiça dita divina, mas, a princípio, talvez pelo afã de tentar aplicar a ideia nova a todos os fatos do domínio da religião constituída, dogmática, se incorreu em excessos, tanto para um lado quanto para outro, à direita e à esquerda.

“Deus deita, mas não dorme”, “a justiça divina não falha”, “quem não pagar aqui, pagará do outro lado” – todas essas expressões, derivadas de um sentimento de pecado e punição, afeito às medidas dogmáticas do antigo “olho por olho, dente por dente”, tiveram o seu imediato correspondente na ideia da interpretação precipitada da reencarnação, desfigurando o foco principal que é, no caso desta reencarnação, o progresso, a evolução do ser espiritual numa dinâmica que envolve o ser coletivo, a vida em sociedade.

De um lado, adotou-se uma ortodoxia: partiu-se para o entendimento equivocado de que todos os sofrimentos na presente vida têm sua causa nos erros de vidas passadas, logo, a reencarnação é feita para o indivíduo pagar esses erros. Erros e pecados são sinônimos, então a ideia antiga permanece. Herculano Pires chega a apresentar um exemplo: nasce uma criança com o braço defeituoso e logo, diz, aparece um sabereta espírita para afirmar que é decorrente de um carma de vidas passadas.

Ao perceber-se a ambiguidade de tal interpretação, sua inabilidade para compreender as novas ideias espíritas, criou-se, como contraponto, a noção de que os sofrimentos da presente vida se devem às condições de vida material e social somente e não a consequências punitivas do passado. O único tribunal a julgar as ações individuais é o da consciência, logo não há punições para essas ações, emanadas de fora da consciência do próprio indivíduo.

A ideia de uma justiça externa ao indivíduo capaz de estabelecer penas à sua futura existência terrena em decorrência de existências anteriores está em dissonância com o Espiritismo. Ponto. Todavia, a ideia de que os sofrimentos da presente vida decorrem unicamente das condições materiais e sociais (herança genética, desigualdade, etc.) não consegue responder nem convencer de fato. Ponto, também.

 

O caminho do meio?

Nem sempre a linha reta é a menor distância entre dois pontos, bem como o caminho do meio pode não ser a melhor vereda do viajante da evolução, especialmente quando certas experiências necessárias já foram suficientemente realizadas. Nesses casos, é até aconselhável tomar atalhos.

 

Sendo a ideia de pecado e punição incompatível com a noção de autonomia e livre-arbítrio, segue-se que se deve à consciência individual a ação de resolver os conflitos criados por si e para si, os quais de alguma forma perturbam e dificultam sua evolução. Aqui somam-se os erros cometidos, as violências praticadas, os ódios e vinganças, ou seja, tudo aquilo que trava a consciência do seu melhor equilíbrio, condição está necessária para uma reencarnação proveitosa.

A base da evolução é conhecimento e amor. Ora, quando a consciência se apropria dessa noção, a tendência é que busque destravar tudo aquilo que a impede de caminhar, ou que a faz estacionar. É este um momento crucial, em que as decisões implicam a busca das condições e recursos para avançar. A próxima vida no corpo físico pode e deve incluir experiências que (1) modifiquem para melhor o quadro moral individual ao eliminar a carga dos eventos negativos acumulados em outras vidas e (2) permitam realizar construções positivas que conduzam o Espírito a estágios mais avançados de felicidade.

As decisões individuais tomadas no sentido de refazer o passado perturbador da consciência podem ser vistas como expiações, cumprimento do carma, pagamento de pecados e coisas que o valham. Não importa o nome que se dê. A essência residirá nessa compreensão de que são decisões do ser autônomo, tomadas por ele no pleno exercício do seu livre-arbítrio, com vistas à sua libertação das amarras morais que retêm ou aprisionam.

Do outro lado, a decisão de viver experiências capazes de impulsionar o indivíduo à frente é o complemento das decisões anteriores, da vivência de experiências libertadoras. Há, então, aí uma espécie de complementaridade, pelo menos no que diz respeito à média dos Espíritos ligados ao planeta Terra em seu estágio de mundo imperfeito.

De tudo isso resulta que a libertação das amarras do passado e o impulso ao progresso são do ordenamento da consciência individual. No entanto, eles só se realizam na usina das relações sociais, em sociedade, com o outro, nunca com o indivíduo apartado do outro. Daí a compreensão de que o avanço individual precisa do meio social para se realizar, ao mesmo tempo em que o progresso social precisa do indivíduo. Inevitável compreender que na reencarnação o ser constrói o mundo para si e para o outro, de forma reciprocamente verdadeira.

 

 [1] Artigo originalmente publicado na edição de março/2023, do Jornal CCEPA Opinião, do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre (CCEPA).

 

Comentários

  1. COMENTÁRIO ELABORADO PELA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL - IA
    O artigo explora a reinterpretação da "justiça divina" e do conceito de sofrimento à luz da autonomia moral e do livre-arbítrio individual, conforme preconizado pelo Espiritismo. O autor argumenta que as discussões sobre o tema frequentemente se desviam do ponto central, caindo em extremismos.

    Inicialmente, o texto critica a visão dogmática que associa todo sofrimento presente a pecados de vidas passadas (carma punitivo), ressaltando que essa interpretação desvirtua o foco da reencarnação, que é o progresso e a evolução espiritual. Por outro lado, também refuta a ideia de que todo sofrimento se deve unicamente a condições materiais e sociais, sem nenhuma ligação com o passado espiritual.

    O artigo propõe um "caminho do meio", onde as dores e provas futuras são vistas como decisões autônomas da consciência individual para resolver conflitos internos, eliminar amarras morais e impulsionar a própria evolução. Essas "expiações" ou "carmas" não seriam punições externas, mas sim escolhas do ser no exercício do seu livre-arbítrio para alcançar equilíbrio e felicidade.

    Por fim, o texto enfatiza que essa libertação e progresso individuais se concretizam nas relações sociais, reforçando a ideia de que o avanço do indivíduo e o progresso da sociedade são interdependentes. A reencarnação, nesse contexto, é um processo de construção recíproca do mundo para si e para o outro.

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