Pular para o conteúdo principal

IDEOLOGIA, CONSERVADORISMO E RELIGIOSISMO NO MOVIMENTO ESPÍRITA

 


 O movimento espírita hegemônico no Brasil: federativo, conservador e religioso, fechado em seus mitos e em sua suposta “pureza doutrinária”, algo do tipo: “somos os defensores do verdadeiro espiritismo”, sobrevive de seu próprio dogmatismo. Não é ignorado de todos que conhecem a história do espiritismo em solo brasileiro, que a Federação Espírita Brasileira (FEB) tentou adiar ao máximo possível o estudo do espiritismo. Certamente, havia uma intencionalidade presente nesse intento: preservar seu status quo. A falta de conhecimento dos espíritas gerou uma dependência absurda dos chamados órgãos unificadores.

Orientação pautada em sua própria ideologia, formatada com base nas ideias religiosas que vinham da França, assinadas na obra de J.B. Roustaing, obra, aliás, que se tornou paradigmática para o grupo de espíritas que se sucedeu, ao longo do tempo, na direção dessa instituição. A própria Revista Espírita, publicada sob direção de Kardec entre 1858 a 1869, só foi traduzida para o português muito tardiamente, na década de 1980. Não incentivar o estudo do espiritismo, por mais que Allan Kardec tivesse estimulado essa prática em vários de seus textos, parecia ser condizente com a ideia de uma instituição que pretendia ser referência e “emissária” do espírito Ismael, “responsável pelo Brasil” e, de alguma forma, um (suposto) mentor da FEB

No entanto, a necessidade de estudo foi transgredindo ao paradigma febiano. Deolindo Amorim, na década de 1940, em suas conferências alertava os espíritas para que estudassem as obras de Kardec de forma crítica, dialética e integrada. Ele próprio ministrava suas aulas no Instituto de Cultura Espírita. Por sua vez, Herculano Pires, com seu senso crítico de filósofo, insistia para o estudo, de fato, dos textos de Kardec, combatendo enfaticamente o roustanguismo da FEB e seu projeto de poder hegemônico de um espiritismo desfigurado.

Somente em 27 de novembro de 1983, sem conseguir mais evitar campanhas de estudo sistematizado que começavam a ser implantadas em alguns estados como São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, a FEB lança sua campanha a nível nacional. Excluindo das referências bibliográficas de suas apostilas pensadores como Herculano Pires, Deolindo Amorim, Humberto Mariotti, entre outros, e optando por centralizar suas referências em autores mediúnicos, cujas obras não haviam sofrido nenhum tipo de análise crítica, a FEB deixava claro sua proposta de estudo doutrinal/dogmático, acrítico, apostilar, com o intuito de reforçar sua ideologia religiosa e conservadora.

Como bem escreveu Alexandre Júnior:

“Junto com este formato [apostilar de estudar o espiritismo no movimento federativo] veio a possibilidade de escolha da literatura como referencial teórico para os estudos sistematizados de espiritismo e, como uma grande demonstração da importância dos critérios de quem seleciona conteúdos para currículos em planos de ensino, vimos prevalecer forte influência de Jean Batista Roustaing e a preferência pelas obras de Chico Xavier e Divaldo Pereira Franco, em detrimento de obras de José Herculano Pires e Deolindo Amorim, por exemplo. Além do distanciamento do estudo das obras consideradas básicas do espiritismo, como de toda a Revista Espírita, o que nos leva a crer e concordar que existe, realmente, um espiritismo tupiniquim, de acordo com a obra de Sandra Jacqueline Stoll, Espiritismo à Brasileira, publicada pela editora da Universidade de São Paulo, em 2003”. (JÚNIOR, Alexandre. Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidades. Um diálogo com as Questões Sociais. Recife: CBA Editora, 2022. p.45.)

O espiritismo no Brasil, assim, distanciou-se de Allan Kardec para se aproximar dos médiuns de referência, insuspeitos, sacralizados em sua literatura fundamentalmente religiosa. O estudo praticado pelas instituições espíritas, com base na cultura apostilar e doutrinária da FEB vem se esvaziando de sentidos e significados. Senta-se em volta de uma mesa e faz-se uma prece inicial obrigatória na “abertura” (imagine começar um estudo sem prece????). Depois, vem a sessão de leitura, algumas considerações com base no recorrente discurso da “reforma íntima”, tudo, claro, muito superficial, com exemplos ilustrativos, mas sem análise crítica dos textos, sem discussão com autonomia para outras possibilidades interpretativas, nem mesmo para a inclusão de autores fora da seleta indicação bibliográfica constante na apostila. E, finalmente, a prece de encerramento! Na semana que vem tem mais.

Nos últimos tempos, há uma profusão de grupos espíritas rompendo com essa estrutura. Espíritas que se cansaram desse modelo simplista, ensinado e orientado pelo movimento hegemônico. Bebem de outras fontes! Questionam o sumiço de Kardec ou da superficialidade de como seus textos são tratados nos estudos oficiais. Os espíritas progressistas estão aumentando, significativamente, no Brasil, felizmente. Coletivos e grupos não institucionalizados, virtuais ou não, pensadores espíritas autônomos, vêm produzindo conteúdos muito significativos, em constante diálogo com outras áreas do conhecimento. Longe das interpretações moralistas e das abordagens que insistem numa teologia do medo e do castigo à luz da reencarnação, o olhar progressista, livre-pensador, laico e humanista do espiritismo aprofunda ideias com suavidade e leveza, sem a pretensão de colocar pontos finais em questões complexas.

O contexto atual repercute na quebra de paradigmas, na transgressão do pensamento, na não aceitação de imposições retrógradas em nome de uma suposta autoridade institucional. Não é mais factível a normalização de uma política de rebanho no meio espírita. Os estudos sérios, com base na ampla obra kardequiana sem, no entanto, sacralizá-la ao critério de autoridade absoluta, em diálogo multidisciplinar e transdisciplinar, certamente, produzirão reflexões e aprendizados muito mais significativos.

 

Jerri Roberto Almeida, Osório, (RS) é historiador e professor. Realizou sua especialização em História com uma reflexão acerca das possíveis contribuições da literatura para a construção do conhecimento histórico.                                                                       Em suas reflexões, busca o diálogo entre Espiritismo e Ciências Humanas, demonstrando a importância da inserção do conhecimento espírita no conjunto do saber humano.

 

Comentários

  1. Damos nossas boas vindas ao confrade Jerri de Almeida, novo colaborador do Canteiro de Ideias. Jorge Luiz

    ResponderExcluir
  2. Bem-vindo, e com um artigo forte e necessário!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DEUS¹

  No átimo do segundo em que Deus se revela, o coração escorrega no compasso saltando um tom acima de seu ritmo. Emociona-se o ser humano ao se saber seguro por Aquele que é maior e mais pleno. Entoa, então, um cântico de louvor e a oração musicada faz tremer a alma do crente que, sem muito esforço, sente Deus em si.

SOCIALISMO E ESPIRITISMO: Uma revista espírita

“O homem é livre na medida em que coloca seus atos em harmonia com as leis universais. Para reinar a ordem social, o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se nas mãos; do Espiritismo pode nascer o Socialismo idealista.” ( Arthur Conan Doyle) Allan Kardec ao elaborar os princípios da unidade tinha em mente que os espíritas fossem capazes de tecer uma teia social espírita , de base morfológica e que daria suporte doutrinário para as Instituições operarem as transformações necessárias ao homem. A unidade de princípios calcada na filosofia social espírita daria a liga necessária à elasticidade e resistência aos laços que devem unir os espíritas no seio dos ideais do socialismo-cristão. A opção por um “espiritismo religioso” fundado pelo roustainguismo de Bezerra Menezes, através da Federação Espírita Brasileira, e do ranço católico de Luiz de Olympio Telles de Menezes, na Bahia, sufocou no Brasil o vetor socialista-cristão da Doutrina Espírita. Telles, ao ...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

ESPIRITISMO E POLÍTICA¹

  Coragem, coragem Se o que você quer é aquilo que pensa e faz Coragem, coragem Eu sei que você pode mais (Por quem os sinos dobram. Raul Seixas)                  A leitura superficial de uma obra tão vasta e densa como é a obra espírita, deixada por Allan Kardec, resulta, muitas vezes, em interpretações limitadas ou, até mesmo, equivocadas. É por isso que inicio fazendo um chamado, a todos os presentes, para que se debrucem sobre as obras que fundamentam a Doutrina Espírita, através de um estudo contínuo e sincero.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

É HORA DE ESPERANÇARMOS!

    Pé de mamão rompe concreto e brota em paredão de viaduto no DF (fonte g1)   Por Alexandre Júnior Precisamos realmente compreender o que significa este momento e o quanto é importante refletirmos sobre o resultado das urnas. Não é momento de desespero e sim de validarmos o esperançar! A História do Brasil é feita de invasão, colonização, escravização, exploração e morte. Seria ingenuidade nossa imaginarmos que este tipo de política não exerce influência na formação do nosso povo.

O ESPIRITISMO É PROGRESSISTA

  “O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõe todos os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem - a mão para marchar, na mesma rota ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.”   Revista Espírita – junho de 1868, (Kardec, 2018), p.174   Viver o Espiritismo sem uma perspectiva social, seria desprezar aquilo que de mais rico e produtivo por ele nos é ofertado. As relações que a Doutrina Espírita estabelece com as questões sociais e as ciências humanas, nos faculta, nos muni de conhecimentos, condições e recursos para atravessarmos as nossas encarnações como Espíritos mais atuantes com o mundo social ao qual fazemos parte.

OS ESPÍRITAS E OS GASPARETTOS

“Não tenho a menor pretensão de falar para quem não quer me ouvir. Não vou perder meu tempo. Não vou dar pérolas aos porcos.” (Zíbia Gaspareto) “Às vezes estamos tão separados, ao ponto de uma autoridade religiosa, de um outro culto dizer: “Os espíritas do Brasil conseguiram um prodígio:   conseguiram ser inimigos íntimos.” ¹ (Chico Xavier )                            Li com interesse a reportagem publicada na revista Isto É , de 30 de maio de 2013, sobre a matéria de capa intitulada “O Império Espírita de Zíbia Gasparetto”. (leia matéria na íntegra)             A começar pelo título inapropriado já que a entrevistada confessou não ter religião e autodenominou-se ex-espírita , a matéria trouxe poucas novidades dos eventos anteriores. Afora o movimento financeiro e ...