Pular para o conteúdo principal

O BRAZIL ESTÁ MATANDO O BRASIL

 


 Por Jorge Luiz

         

        O título foi tomado de empréstimo da música “Querelas do Brasil”, interpretada pela saudosa brasileira Elis Regina, lançada em 1978, ano em que o Brasil ainda estava em plena ditadura, embora se anunciasse uma distensão política pelos militares, não existindo nenhum sinal de redemocratização, o que só viria acontecer com a Constituinte e a Constituição de 1988. A letra é uma profunda reflexão sobre a identidade nacional e as contradições presentes na sociedade brasileira, principalmente a subserviência da elite brasileira ao capitalismo estadunidense.

            A democracia brasileira, com apenas 36 anos, sofre nos dias atuais um período de incertezas, assim como as democracias do mundo inteiro, com apelos do extremismo de direita, e proclamados flertes com o fascismo. Esses flertes possibilitaram ao Governador do principal estado da Federação nomear, como Secretário de Segurança do Estado, um ex-integrante do grupo Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar – ROTA, expulso pelo impulso instintivo em matar, investigado pelo menos por 16 homicídios. Para ele, o bom policial precisa ter no mínimo, três ocorrências letais. Postulante ao cargo máximo da República brasileira, a necropolítica instalada do seu Estado têm resultados espantosos: até dezembro, 712 pessoas foram mortas por policiais, 74% a mais no mesmo período de 2023, aponta o Ministério Público.¹É a política do “bandido bom é bandido morto”, recentemente, legitimada por parcela dos brasileiros.

            O mundo, através de suas guerras, dá uma mostra da real simbiose entre a violência e o poder, violência essa, que levou a Achille Mbembe, cientista político camaronês, a cunhar o termo necropolítica para definir o pensamento eurocêntrico que, através da escravidão, negou aos negros o status de seres humanos. A consolidação do modelo de sociedade capitalista vem fomentando na sociedade uma massa de excluídos, decorrente da saturação do mercado de trabalho que precisa ser gerido e controlado pela máquina estatal.

O poder e a violência, embora sejam fenômenos distintos, geralmente apresentam-se juntos. Onde quer que se combinem, o poder é, conforme verificamos, o fator fundamental e predominante (Arendt, 1969). Para Hanna Arendt, entretanto, os governos se fundam no poder que não precisa de justificativas, sendo inerente à própria existência das comunidades políticas; mas precisa, isto sim, de legitimidade (idem). A legitimidade vem da sociedade, em uma democracia, pelo voto. A violência não se institui por si só. O Brasil é um país doente.

A sociedade brasileira está doente. O discurso de ódio que nela se estabeleceu nos últimos anos fez emergir dos porões dos inconscientes de muitos os sentimentos mais sórdidos que a alma humana pode produzir. O Espírito Joanna de Ângelis assim define esse estágio nas sociedades: a tecnologia desalmada e a sociologia escrava dos interesses de grupos e de governos insensíveis criaram os gigantes que agora se voltam contra as mesmas. Havendo eliminado o sagrado mediante a zombaria, o desrespeito pelas heranças culturais e antropológicas na imortalidade da alma e em Deus, desestruturam o ser humano e nada lhe ofereceram como substituto, deixando-o órfão de valores idênticos, portanto, sem rumo (Franco, 2000). É o estágio que Èmile Durkheim menciona como anomia, estado de ausência de regras, que pode levar ao isolamento dos indivíduos em relação à coletividade, gerando crises e patologias sociais (Durkheim, 2000).

Esse fenômeno, que é produzido pelo neoliberalismo, tem gerado uma massa de indivíduos que não satisfaz o processo das lutas de classes – explorador/explorado – resultando em uma procissão de excluídos, que passa a ser descartável, terminando nas penitenciárias, quando não, alvo de genocídio. Como exemplo, temos recentemente o jovem que foi lançado de uma ponte, com três metros de altura, sobre um córrego, sem praticar nenhum delito, e nem ao menos foi indagado o nome ou exigido seus documentos. É a barbárie instalada. Quem sofre mais são os jovens das periferias dos grandes centros, preferencialmente, os negros. O Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2023, aponta que 70% da população carcerária do Brasil – 850 mil pessoas – cerca de 470 mil pessoas são negras. Esse fenômeno é também estudado no contexto da necropolítica de Mbembe.

Allan Kardec, por sua vez, não deixa passar despercebida essa doença social, e diagnostica: “Quando se pensa na massa de indivíduos jogados cada dia na torrente da população, sem princípios, sem freios e entregues aos seus próprios instintos, deve-se espantar das consequências desastrosas que resultam?  (Kardec, 2000, questão nº 685 “a”)

A violência, a qual é referendada em uma sociedade, demonstra que essa sociedade perdeu a sua própria referência de funcionalidade, e o apelo à violência na realidade soa como um pedido de socorro. Arendt pondera considerações que não devem ser perdidas de vista: Em um conflito entre a violência e o poder, o resultado é raramente duvidoso. Se a estratégia enormemente poderosa e bem-sucedida de resistência não violenta de Gandhi houvesse se defrontado com um inimigo diverso – a Rússia, de Stalin; a Alemanha, de Hitler; ou o Japão do período anterior à guerra, ao invés da Inglaterra – o resultado não teria sido a descolonização, mas sim o massacre e a submissão (Arendt, 1969).

A solução para esse estado de coisas passa, necessariamente, pelos valores que norteiam as sociedades e a família, a partir da definição do que seja cada indivíduo, considerando a sua origem, natureza e destinação. Isso será determinante para se superar todo o estado de desregramento que aflige a humanidade. A Doutrina Espírita como doutrina filosófica-moral é o único apêndice social capaz de fazer fluir um futuro venturoso, revendo o modelo de família existente, fortalecendo os pilares da humanidade do porvir. Assim considera o Espírito Neio Lúcio: “O berço doméstico é a primeira escola e o primeiro templo da alma. A casa do homem é a legítima exportadora de caracteres para a vida comum.”

 

Referências:

ARENDT, Hanna. Sobre a violência. Versão PDF, 1969.

DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 1897.

FRANCO, Divaldo. O despertar do espírito. Salvador: Leal, 2000.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.

XAVIER, F. C. Jesus no Lar. Brasília: FEB, 2019.

 

SITES:

 

¹https://www.brasildefato.com.br/2024/12/04/policia-militar-de-sao-paulo-acumula-casos-de-violencia-e-mata-duas-pessoas-por-dia-em-2024-aponta-ministerio-publico

 

https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/160168/1_necropolitica_estado_brasileiro_gamba.pdf

https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2024-07/estudo-70-da-populacao-carceraria-no-brasil-e-negra

 

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

DIA DE FINADOS À LUZ DO ESPIRITISMO

  Por Doris Gandres Em português, de acordo com a definição em dicionário, finados significa que findou, acabou, faleceu. Entretanto, nós espíritas temos um outro entendimento a respeito dessa situação, cultuada há tanto tempo por diversos segmentos sociais e religiosos. Na Revista Espírita de dezembro de 1868 (1) , sob o título Sessão Anual Comemorativa dos Mortos, na Sociedade Espírita de Paris fundada por Kardec, o mestre espírita nos fala que “estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos, para dar aos nossos irmãos que deixaram a terra, um testemunho particular de simpatia; para continuar as relações de afeição e fraternidade que existiam entre eles e nós em vida, e para chamar sobre eles as bondades do Todo Poderoso.”

ANÁLISE DA FIGUEIRA ESTÉRIL E O ESTUDO DA RELIGIÃO

                 Por Jorge Luiz            O Estudo da Religião e a Contribuição de Rudolf Otto O interesse pela história das religiões   remonta a um passado muito distante e a ciência das religiões, como disciplina autônoma, só teve início no século XIX. Dentre os trabalhos mais robustos sobre a temática, notabiliza-se o de Émile Durkheim, As Formas Elementares da Via Religiosa.             Outro trabalhos que causou repercussão mundial foi o de Rudolf Otto, eminente teólogo luterano alemão, filósofo e erudito em religiões comparadas. Otto optou por ser original e abdicou de estudar as ideias sobre Deus e religião e aplicou suas análises das modalidades da experiência religiosa. Ao fazer isso, Otto conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa experiência e negligenciou o lado racional e especulativo da religião, sempre...

O MEDO SOB A ÓTICA ESPÍRITA

  Imagens da internet Por Marcelo Henrique Por que o Espiritismo destrói o medo em nós? Quem de nós já não sentiu ou sente medo (ou medos)? Medo do escuro; dos mortos; de aranhas ou cobras; de lugares fechados… De perder; de lutar; de chorar; de perder quem se ama… De empobrecer; de não ser amado… De dentista; de sentir dor… Da violência; de ser vítima de crimes… Do vestibular; das provas escolares; de novas oportunidades de trabalho ou emprego…

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

EDUCAÇÃO ESPÍRITA ¹

Por Francisco Cajazeiras (*) Francisco Cajazeiras – Quais as relações existentes entre Educação e o Espiritismo? Dora Incontri – Muitas. Primeiro porque Kardec era um educador. Antes de se dedicar ao Espiritismo, à pesquisa das mesas girantes, depois à codificação da Doutrina Espírita, durante trinta anos, na França, exerceu a função de educador. Foi discípulo de um dos maiores educadores de todos os tempos que foi Pestalozzi. Então o Espiritismo segue uma tradição pedagógica. E o Espiritismo, ele próprio, é uma proposta pedagógica do Espírito. O Espiritismo não é uma proposta salvacionista, ele é uma proposta que pretende que o homem assuma a sua autoeducação como aperfeiçoamento espiritual. Francisco Cajazeiras – Então quer dizer que existe uma educação espírita e uma pedagogia espírita? Dora Incontri – Existe. Existe porque toda filosofia, toda concepção de homem, de mundo, toda cosmovisão desemboca, necessariamente, numa prática pedagógica...