Pular para o conteúdo principal

ERRATICIDADE

 

Por Marcelo Henrique

Se as Inteligências Invisíveis foram unânimes ao afirmar a Kardec não existir, no espaço, lugares de contemplação estéril ou beatitude ociosa, vale dizer que em tudo vige a Lei do Trabalho e todas as situações envolvem o compromisso e a vinculação dos Espíritos laboriosos, porque cada qual possui o seu papel, concorrendo para a grande obra, na exata medida de seu mérito e adiantamento.

***

 León Denis, na esteira de Allan Kardec, em duas magistrais obras, “Depois da Morte” e “O grande enigma”, ensina que o ser humano pertence a dois mundos: pelo corpo físico, ao visível e pelo fluido, ao invisível. Por conseguinte, importa fazer uma ilação, no que tange às duas realidades: o sono é a separação temporária, enquanto a morte, a definitiva.

Assim, enquanto Espíritos, somos seres errantes, justamente porque seguimos sem conseguir domar plenamente nossas paixões – kardecianamente, as “más inclinações”, o que nos endereça à repetição de uma vida desordenada, quando na esfera corporal (física), quase sempre embebidos na inquietude e na incerteza. E, quando desencarnados, uma vez que “em a Natureza nada dá saltos”, somos a exata continuidade do que vivemos na encarnação – com nossos gostos, simpatias, afeições e condicionamentos. Ao desencarnarmos, então, todos passamos à condição de erraticidade (estado dos Espíritos imperfeitos), permanecendo na ambiência do plano que acabamos de deixar.

É por isso que alguns estudiosos espíritas – incluso o Professor Herculano Pires – afirmam que, na Terra (e é importante falar daquilo que conhecemos – Mundo de Expiações e Provas –, deixando de cogitar de como seja a morada em planos mais avançados – e considerando que já conhecemos a condição imediatamente inferior à qual nos encontramos – Mundo Primitivo), tem-se a convivência de duas humanidades (a encarnada e a desencarnada), em profunda simbiose, em termos de relações e influências, desembocando no conceito de que (mais ou menos) somos seres interexistentes – porque participamos, ao mesmo tempo das duas realidades, corporal e espiritual.

Erraticidade, assim, não é “lugar geográfico” – que a literatura mediúnica “sem controle”, “sem exame”, “sem aferição” cultua com nomes (mais ou menos pomposos), porque o imaginário “popular” dos espíritas – a imensa maioria egressa de religiões ou igrejas e suas construções de gozo e dor – precisa se vincular a âncoras de sustentação na imaterialidade. Umbrais, Vales ou Colônias são, assim, a exata correspondência, em “ambiente espírita” da tríade Inferno, Purgatório e Céu, dos cristãos. Erraticidade é condição (estado espiritual, mental, psíquico, sensorial) da maioria dos Espíritos que viveram na Terra, os quais, na generalidade ainda não são nem bons nem maus, porquanto sejam ainda fracos e muito inclinados às coisas materiais.

Se os poetas, inspirados, falam no “sétimo céu” e no “fogo eterno” para ilustrar os sentimentos (nitidamente humanos, enquanto características da imperfeição) que estão presentes no cotidiano de todos nós, enquanto “variações de humor” ou “estados d’alma”, pode-se dizer que, nas experiências cotidianas, de fato, experimentamos o gozo do Céu e a dor do Inferno, em repetidas cenas do dia. Alegria e Tristeza, Gratidão e Mágoa, Esperança e Desilusão, Desprendimento e Apego, Temperança e Excesso, Sanidade e Loucura, são os estados antagônicos experimentados por aqueles que estão “em marcha”, sujeitos à Lei do Progresso.

Na Erraticidade, a maior parte dos Espíritos levitam ou flutuam – já que a matéria não lhes impõe qualquer obstáculo, pairando entre o justo e o injusto, a verdade e o erro, a luz e a sombra, de modo indeciso. Se, porventura, se encontrarem – transitoriamente, porque ninguém jaz abandonado à própria sorte e pela eternidade nestas condições – na melancolia, no insulamento, na obscuridade, nos sentimentos de vingança e ódio, em realidade, é porque aguardam um instante onde possam usufruir da simpatia, do acolhimento, da benevolência e do amor que lhes sejam dirigidos, na esperança disso encontrar.

Se as Inteligências Invisíveis foram unânimes ao afirmar a Kardec não existir, no espaço, lugares de contemplação estéril ou beatitude ociosa, vale dizer que em tudo vige a Lei do Trabalho e todas as situações envolvem o compromisso e a vinculação dos Espíritos laboriosos, porque cada qual possui o seu papel, concorrendo para a grande obra, na exata medida de seu mérito e adiantamento (meritocracia espiritual). Os que estão mais avançados se envolvem em tarefas maiores e atendem àqueles que ficaram à margem do caminho. São, de fato, as ocupações dos Espíritos o móvel para que as individualidades (desencarnadas) prossigam em seu curso eterno, arrastados irresistivelmente para um estado superior, posto que entregues a ocupações diversas.

Denis insiste em florir a árvore kardeciana para dizer que há conhecimento (ciência) a adquirir, avanços a realizar, onde dores, remorsos, sacrifícios, devotamento, expiações e provas estarão associados ao elemento amor que parece ser o elo de ligação para todas as situações que o Espírito experimenta, na carne e fora dela. Tudo, pois, segue em movimento – ainda que a aparência, em alguns momentos, seja a de estar estacionado. E a constatação evidente, diante das experiências dos colóquios com os desencarnados, é que tanto as faculdades intelectuais quanto as qualidades morais permanecem e não se alteram com o fenômeno transitório da morte. Em outras palavras, a individualidade não se consagra superior ao que seja nem regride a ponto de esquecer o que vivenciou (e o que aprendeu).

Denis reforça a função do perispírito, como elemento intermediário com função específica e importante, porquanto seja o “locus” de registro (ou de ressonância) das vivências do ser espiritual. Ao despertar na nova condição, imaterial, a de desencarnado, o ser vai compulsando e resgatando todas as experiências pregressas – tanto a da vida que acabou de se exaurir, quanto as anteriores – recompondo o conjunto de conhecimentos, sentimentos, sensações, atos e percepções e, as mais das vezes, vê despertar na memória as realidades adormecidas, sobretudo das existências mais remotas.

À semelhança das Experiências de Quase-Morte (EQMs), individualidades que comparecem aos laboratórios mediúnicos – mesas de comunicação de grupos espíritas – atestam que, no instante da morte, os sucessivos quadros da vida recém-encerrada se desenrolam sucessivamente como um filme de trás para a frente, em pormenores, revivendo-se, em mais ou menos tempo, as sensações agradáveis ou desagradáveis, correlacionadas a todos os atos da vida inteira.

Resgatando importante conceito derivado da cátedra dos Espíritos Colaboradores na obra kardeciana, de que é na consciência que se encontram grafadas as Leis Universais (Espirituais), de tal maneira que é impossível escusar-se de seu cumprimento (obediência), é esta mesma consciência, em estado desperto, sem as limitações e os obstáculos do envoltório corporal – e, nele, as visões parciais e os entendimentos limitados pelos sentidos físicos – que opera um “julgamento” espiritual, com o instantâneo balanço dos atos da existência. O diferencial, no entanto, não é, como à moda humana, a existência de um tribunal, uma promotoria e um julgador, já que o veredito é dado pelo próprio Espírito, em autoexame, disso derivando a “sorte” tanto no pós-morte quanto na próxima encarnação.

Considera, Denis, a morte como um segundo nascimento, daí a majestade da afirmação de Kardec – “nascer, viver, morrer, renascer ainda e progredir continuamente, tal é a lei” – e o ingressar e abandonar os mundos (físico e espiritual) se dá pela mesma razão ou segundo a mesma lei. O filósofo francês, poeticamente, que no crepúsculo da fronteira entre os dois mundos, a alma recebe as impressões do mundo em que está ingressando, ao mesmo tempo em que os fantasmas da existência finda lhe povoam a memória.

E como a condição existencial, dos Espíritos, não é a do insulamento, nas idas e vindas, nos sentimos envolvidos e aconchegados pelas almas afins, que conservam os laços de proximidade, bem-querência, sentimento e afeição. E esta condição, para uns e para outros, é favorecedora dos experimentos mediúnicos – daí termos um bom número de desencarnados, em mesas mediúnicas, explicitando acerca do pós-morte recém-ocorrido.

Vale dizer, ainda, que estas mudanças de realidade, conceituadas como transformações do Espírito, ora encarnado, ora desencarnado, ocasionam estados de perturbação. Em especial, versando sobre a transição decorrente da morte (desencarnação), podemos listar três causas: 1) a mudança de meio; 2) a mudança das condições de expressão do Espírito; e, 3) da mudança dos meios de ação.

Ao renascer para o mundo invisível, a individualidade permanece algum tempo (variável) sem tomar conhecimento em relação ao seu estado e ao seu destino. Nestas situações, conforme os relatos mediúnicos, o Espírito ouve os murmúrios (remotos ou próximos) dos dois mundos, pode entrever os movimentos e gestos, sem definição ou precisão e não consegue quantificar nem tempo, nem espaço. Segue, pois, tateando nas estradas do Além!

É comum alguns se suporem vivos, em face da semelhança com a ambiência que acabaram de deixar, já que a condição é do Espírito e não de qualquer local (ambiente). Ao permanecerem, ainda, perturbados, não percebem a alteração por que passaram. E isto é a prova inconteste de que os dois mundos, de fato, se interpenetram e que a continuidade das relações, das situações, das experiências, dos “mortos” se dá nos ambientes físicos em que eles existiram por décadas. Ali estão seus gostos, tendências, paixões, afinidades, preferências e, é claro, os entes queridos (encarnados) que aqui remanescem. Por que haveria de ser diferente?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DEMOCRACIA SEM ORIENTAÇÃO CRISTÃ?

  Por Orson P. Carrara Afirma o nobre Emmanuel em seu livro Sentinelas da luz (psicografia de Chico Xavier e edição conjunta CEU/ FEB), no capítulo 8 – Nas convulsões do século XX, que democracia sem orientação cristã não pode conduzir-nos à concórdia desejada. Grifos são meus, face à atualidade da afirmação. Há que se ressaltar que o livro tem Prefácio de 1990, poucas décadas após a Segunda Guerra e, como pode identificar o leitor, refere-se ao século passado, mas a atualidade do texto impressiona, face a uma realidade que se repete. O livro reúne uma seleção de mensagens, a maioria de Emmanuel.

JESUS E A QUESTÃO SOCIAL

              Por Jorge Luiz                       A Pobreza como Questão Social Para Hanna Arendt, filósofa alemã, uma das mais influentes do século XXI, aquilo que se convencionou chamar no século XVII de questão social, é um eufemismo para aquilo que seria mais fácil e compreensível se denominar de pobreza. A pobreza, para ela, é mais do que privação, é um estado de carência constante e miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é sórdida porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o ditame absoluto da necessidade que todos os homens conhecem pela mais íntima experiência e fora de qualquer especulação (Arendt, 1963).              A pobreza é uma das principais contradições do capitalismo e tem a sua origem na exploração do trabalho e na acumulação do capital.

A FÉ NÃO EXCLUI A DÚVIDA

  Por Jerri Almeida A fé não exclui a dúvida! No espiritismo, a dúvida dialoga filosoficamente com a fé. O argumento da “verdade absoluta”, em qualquer área do conhecimento, é um “erro absoluto”. No exercício intelectual, na busca do conhecimento e da construção da fé, não se deve desconsiderar os limites naturais de cada um, e a possibilidade de autoengano. Certezas e dúvidas fazem parte desse percurso!

ESPIRITISMO NÃO É UM ATO DE FÉ

  Por Ana Cláudia Laurindo Amar o Espiritismo é desafiador como qualquer outro tipo de relação amorosa estabelecida sobre a gama de objetividades e subjetividades que nos mantém coesos e razoáveis, em uma manifestação corpórea que não traduz apenas matéria. Laica estou agora, em primeira pessoa afirmando viver a melhor hora dessa história contemporânea nos meandros do livre pensamento, sem mendigar qualquer validação, por não necessitar de fato dela.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

TRAPALHADAS "ESPÍRITAS" - ROLAM AS PEDRAS

  Por Marcelo Teixeira Pensei muito antes de escrever as linhas a seguir. Fiquei com receio de ser levado à conta de um arrogante fazendo troça da fé alheia. Minha intenção não é essa. Muito do que vou narrar neste e nos próximos episódios talvez soe engraçado. Meu objetivo, no entanto, é chamar atenção para a necessidade de estudarmos Kardec. Alguns locais e situações que citarei não se dizem espíritas, mas espiritualistas ou ecléticos. Por isso, é importante que eu diga que também não estou dizendo que eles estão errados e que o movimento espírita, do qual faço parte, é que está certo. Seria muita presunção de minha parte. Mesmo porque, pelo que me foi passado, todos primam pela boa intenção. E isso é o que vale.

ÉTICA E PODER

     Por Doris Gandres Do ponto de vista filosófico, ética e moral são conceitos diferentes, embora, preferivelmente, devessem caminhar juntos. A ética busca fundamentação teórica para encontrar o melhor modo de viver de acordo com o pensamento e o interesse humanos. Enquanto que a moral se fundamenta na obediência a normas, costumes ou mandamentos culturais, hierárquicos ou religiosos – e mais, se fundamenta em princípios de respeito a valores superiores de justiça, fraternidade e solidariedade, ou seja, nas próprias leis naturais, as leis divinas.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...