Pular para o conteúdo principal

DOR CARMIM

 

   Jorge Luiz             

        Os valores divergem muito. A sociedade capitalista é assim, mercantiliza tudo. Os números tornam as coisas frias, como frio é o capitalismo. Estima-se, no entanto, que educar um filho, dependendo da classes sociais, desde os primeiros meses do nascimento até a conclusão de uma formação superior, pode chegar a três milhões de reais. Isso é insignificante diante dos segundos e horas de devotamento e cuidado que se dedica até a formação de um filho em cidadão de bem. Os valores da educação de um filho são incomensuráveis, se não o fosse, assim, só seriam educados os eleitos pela riqueza. A Doutrina Espírita explica.

            Allan Kardec, comentando a questão 199 “a”, de O Livro dos Espíritos (L.E.), considera a infância de relativa inocência, adequada para se imprimir os melhores hábitos que nortearão seu caráter. Esse é o maior investimento. Na questão nº 208, os Espíritos Reveladores são bem objetivos:

 

“Pois bem, os Espíritos dos pais têm como missão desenvolver os de seus filhos pela educação. É para eles uma tarefa: se falharem, serão considerados culpados.”

 

             Sim, uma missão. E que missão! Para os que buscam ser missionários no movimento espírita, não há tarefa mais honrosa que essa: devolver, ao Criador, um Espírito imortal em condições moral e ética melhores das que quando o recebemos, na condição de filho.

            Seria redundância tecer considerações mais profundas do desvelo que os pais dedicam aos filhos. Entretanto, a Doutrina Espírita nos faz reconhecer que somos companheiros em uma jornada que se chama vida, que somos educadores e educandos. Kardec assim se expressa nos comentários à questão nº 685 “a”, em (L.E.):

 

“Há um elemento que não se ponderou bastante, e sem o qual a ciência econômica não passa de teoria: a educação. Não a educação intelectual, mas a moral, e nem ainda a educação moral pelos livros, mas a que consiste na arte de formar caracteres, aquela que cria os hábitos, porque educação é o conjunto de hábitos adquiridos.”

 

            Roberto Shinyashiki, psiquiatra e consultor organizacional, define essa jornada entre pais e filhos como “companheiros de viagem de trem”. Ele diz:

 

“Quando nasci, entrei no trem em que estavam meus pais, eles já conheciam algumas coisas sobre a viagem e sobre o trem. Certamente parte de seus conhecimentos correspondiam à verdade e outra parte não passava de ilusões.

 

            A metáfora é perfeita. A viagem continua e logo os filhos dos filhos nascem a quem serão repassados os conhecimentos recebidos e as novas descobertas realizadas no percurso empreendido. Esse é o grande mistério da vida.

            Shinyashiki emoldura, espiriticamente, (sem sê-lo, acredito) ainda de forma mais brilhante a sua metáfora:

 

“Pais e filhos, somente companheiros. Nem guias, nem professores, muito menos proprietários...

Pais e filhos, o maior e mais belo encontro da vida, cúmplices no aprender e desvendar os mistérios de cada um; amigos nas transformações, pois este é um dos grandes segredos da vida: quase tudo é provisório!”

 

            A expectativa da viagem é que os pais desçam do trem primeiro que os filhos. Isso nem sempre ocorre. Quando o filho desce do trem primeiro que os pais, e isso ocorre de forma dramática, violenta, cruel, na mais tenra idade, como as 4 crianças da creche em Blumenau(SC), ou os 242 jovens da boate Kiss, ou tantos anônimos que são vítimas da ausência ou da violência do próprio Estado, nas ruas, ruelas das periferias e favelas. A dor dos pais é inacessível. Sempre me coloco no lugar dos pais que passam por essas situações.

Quantos ais nessa viagem foram atendidos, para cuidar de um tombo; ajudar a sair de uma situação difícil; acolher no colo antes as situações febris da doença. Esses últimos ais não foram ouvidos. Quisera ter sido, pois, se daria a vida em troca da do filho e essa dor não doeria tanto como a dor carmim; da cor margenta (mistura de vermelho e violeta) . A dor da morte pela defesa de um filho seria para o Espírito do pai como cântaros de bênçãos e cânticos celestiais. A dor carmim não tem localização, dói na superfície e profundidade ao mesmo tempo. Dói intensamente que chega a ser insensível. É como no silogismo poético do amor de Luis Vaz de Camões:  É ferida que dói, e não se sente;/ É dor que desatina sem doer. A dor carmim tem seu gradiente e intensidades, na vida, morte e renascimento.

Deus, em sua infinita misericórdia, só permite sentir a dor carmim os Espíritos nobres, e, somente assim, se explica como esses pais superam e superaram essa dor. Kahlil Gibran tentou fazê-la a nós compreensível, quando assim falou:

 

“(...). “E se conseguisseis maravilhar-vos com os milagres diários da vossa vida, a vossa dor não vos pareceria menos intensa do que a vossa alegria; e aceitaríeis as estações do vosso coração, tal como haveis aceite as estações que passam sobre o vossos campos.

E passaríeis com serenidade os invernos das vossas mágoas.

Muita da vossa dor é escolhida por vós.  É a poção amarga com a qual o médico dentro de vós cura o vosso interior doente.

Por isso confiai no médico e bebei o seu remédio em silêncio e tranquilidade:

Pois a sua mão, embora dura e pesada, é guiada pela mão terna do Invisível, e o cálice que ele vos dá, embora possa queimar os vossos lábios, foi feito com o gesso que o Oleiro umedeceu com as Suas lágrimas sagradas.”

        

         A dor e o amor, contrários entre si, são ordens do mesmo Amor.

 

REFERÊNCIAS

CAMÕES, Luís Vaz.  O amor é ferida que dói sem doer, 1572.

GIBRAN, Kahlil. O Profeta. Rio de Janeiro.

KARDEC, Allan. O Livro dos espíritos. São Paulo, 2000.

SHINYASHIKI, Roberto. Pais e filhos: companheiros de viagem. São Paulo, 1992.

Comentários

  1. Ao deitar ontem fiquei pensando e rezando pelos pais que estavam passando primeira noite sem os filhos. A dor é insuportável. De outra dimensão. Eu não aguentaria. Ótimo texto Jorge.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Meu amigo Leo,
      Esse exercício que cabe no seu registro, tento fazê-lo sempre. Gratidão, por comentar. Jorge Luiz

      Excluir
  2. Jorge, texto muito sério, sobre tal dor, terrível, dor sem nome, mais que profunda, funda, tão funda, tudo despedaçando, corpo, mente, alma, lá dentro, muitas vezes sem que ninguém perceba...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, amiga Doris!
      Eu ainda não a passei nesse nível, e espero nunca passar. Mas tento ser sempre solidário com aqueles e aquelas que passam por ela. Gratidão, por comentar.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

“TUDO O QUE ACONTECER À TERRA, ACONTECERÁ AOS FILHOS DA TERRA.”

    Por Doris Gandres Esta afirmação faz parte da carta que o chefe índio Seattle enviou ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, em 1854! Se não soubéssemos de quem e de quando é essa declaração poder-se-ia dizer que foi escrita hoje, por alguém com bastante lucidez para perceber a interdependência entre tudo e todos. O modo como vimos agindo na nossa relação com a Natureza em geral há muitos séculos, não apenas usando seus recursos, mas abusando, depredando, destruindo mananciais diversos, tem gerado consequências danosas e desastrosas cada vez mais evidentes. Por exemplo, atualmente sabemos que 10 milhões de toneladas de plásticos diversos são jogadas nos oceanos todo ano! E isso sem considerar todas as outras tantas coisas, como redes de pescadores, latas, sapatos etc. e até móveis! Contudo, parece que uma boa parte de nós, sobretudo aqueles que priorizam seus interesses pessoais, não está se dando conta da gravidade do que está acontecendo...

A FÉ COMO CONTRAVENÇÃO

  Por Jorge Luiz               Quem não já ouviu a expressão “fazer uma fezinha”? A expressão já faz parte do vocabulário do brasileiro em todos os rincões. A sua história é simbiótica à história do “jogo do bicho” que surgiu a partir de uma brincadeira criada em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro. No início, o zoológico não era muito popular, então o jogo surgiu para incentivar as visitas e evitar que o estabelecimento fechasse as portas. O “incentivo” promovido pelo zoológico deu certo, mas não da maneira que o barão imaginava. Em 1894, já era possível comprar vários bilhetes – motivando o surgimento do bicheiro, que os vendia pela cidade. Assim, o sorteio virou jogo de azar. No ano seguinte, o jogo foi proibido, mas aí já tinha virado febre. Até hoje o “jogo do bicho” é ilegal e considerado contravenção penal.

"ANDA COM FÉ EU VOU..."

  “Andá com fé eu vou. Que a fé não costuma faiá” , diz o refrão da música do cantor Gilberto Gil. Narra a carta aos Hebreus que a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem. Cremos que fé é a certeza da aquisição daquilo que se tem como finalidade.

NÃO SÃO IGUAIS

  Por Orson P. Carrara Esse é um detalhe imprescindível da Ciência Espírita. Como acentuou Kardec no item VI da Introdução de O Livro dos Espíritos: “Vamos resumir, em poucas palavras, os pontos principais da doutrina que nos transmitiram”, sendo esse destacado no título um deles. Sim, porque esse detalhe influi diretamente na compreensão exata da imortalidade e comunicabilidade dos Espíritos. Aliás, vale dizer ainda que é no início do referido item que o Codificador também destaca: “(...) os próprios seres que se comunicam se designam a si mesmos pelo nome de Espíritos (...)”.

FUNDAMENTALISMO AFETA FESTAS JUNINAS

  Por Ana Cláudia Laurindo   O fundamentalismo religioso tenta reconfigurar no Brasil, um país elaborado a partir de projetos de intolerância que grassam em pequenos blocos, mas de maneira contínua, em cada situação cotidiana, e por isso mesmo, tais ações passam despercebidas. Eles estão multiplicando, por isso precisamos conhecer a maneira com estas interferências culturais estão atuando sobre as novas gerações.

A HISTÓRIA DA ÁRVORE GENEROSA

                                                    Para os que acham a árvore masoquista Ontem, em nossa oficina de educação para a vida e para a morte, com o tema A Criança diante da Morte, com Franklin Santana Santos e eu, no Espaço Pampédia, houve uma discussão fecunda sobre um livro famoso e belo: A Árvore Generosa, de Shel Silverstein (Editora Cosac Naify). Bons livros infantis são assim: têm múltiplos alcances, significados, atingem de 8 a 80 anos, porque falam de coisas essenciais e profundas. Houve intensa discordância quanto à mensagem dessa história, sobre a qual já queria escrever há muito. Para situar o leitor que não leu (mas recomendo ler), repasso aqui a sinopse do livro: “’...

JESUS TEM LADO... ONDE ESTOU?

   Por Jorge Luiz  A Ilusão do Apolitismo e a Inerência da Política Há certo pedantismo de indivíduos que se autodenominam apolíticos como se isso fosse possível. Melhor autoafirmarem-se apartidários, considerando a impossibilidade de se ser apolítico. A questão que leva a esse mal entendido é que parte das pessoas discordam da forma de se fazer política, principalmente pelo fato instrumentalizado da corrupção, que nada tem do abrangente significado de política. A política partidária é considerada quando o indivíduo é filiado a alguma agremiação religiosa, ou a ela se vincula ideologicamente. Quanto ao ser apolítico, pensa-se ser aquele indiferente ou alheio à política, esquecendo-se de que a própria negação da política faz o indivíduo ser político.

A REENCARNAÇÃO DE SEGISMUNDO

            O material empírico acerca da comprovação da reencarnação disponível já é suficiente para que a ciência materialista a aceite como lei biológica. Esse material é oriundo de várias matrizes de pesquisas, que sejam das lembranças espontâneas de vivências passadas em crianças, principalmente as encabeçadas por Ian Stevenson (1918 - 2007), desenvolvidas por mais de 40 anos. Da mesma forma, o milhares de casos de regressão de memórias às vidas passadas como terapia, com vistas a soluções para a cura de enfermidades psicossomáticas (TRVP). As experiências de quase morte (EQM), além das pesquisas desenvolvidas pela Transcomunicação instrumental através de meios eletrônicos (TCI).