sexta-feira, 27 de maio de 2022

DIÁRIO DA MAMA 5 - O CORPO EM LUTA

 

Arte de Camila Soato

Por Dora Incontri

São 5 horas da manhã, quando escrevo esse texto, em noite dividida entre horas de sono profundo e momentos de incômodos aflitivos. O corpo reage ante o veneno injetado para combater o câncer.

Ontem foi o dia da minha primeira quimioterapia, iniciando o que os médicos chamam de fase vermelha, dois meses de ataque com duas drogas pesadas. O dia transcorreu da melhor maneira possível. Saí de Bragança Paulista cedo, dia ensolarado – graças a Deus o frio intenso passou – estava disposta e animada.

Almocei em São Paulo, para ir alimentada, como me recomendaram. E parti para as longas horas no AC Camargo. Cheguei às 12:30 e saí às 18:15. Minha amiga-irmã materna, Claudia Mota, me acompanhou em cada segundo, cheia de cuidados, mimos e suporte amoroso.

Não tenho palavras para louvar a competência e o humanismo desse hospital, onde meu pai já tratou durante 20 anos de um câncer nas cordas vocais e sempre teve o mesmo acolhimento. (Hoje ele está curado, em remissão desde 2018).

Passei pela consulta da oncologista clínica, que me explicou longamente todo o processo, todos os cuidados necessários – até com marcas de cremes e pasta de dente (infantil!) a serem usadas, respondeu uma lista de perguntas que levei por escrito. No final, pedi a ela que retirasse um momento a máscara a retirei a minha, para podermos nos ver de fato, rosto inteiro, sorriso aberto, num momento de encontro humano: Dr.ª Milena Shizue Tariki.

Das mãos dela, passei para o corpo de um técnico e várias enfermeiras que me examinaram, me cuidaram e me tutoraram no processo da químio – todas de uma delicadeza exemplar.

Um espanto sempre presente, que eu já conhecia no caso do meu pai, os médicos sabem e nem ligam. Tanto meu pai quanto eu temos pressão muito boa, 12/8. Basta estar no hospital para algum procedimento, embora estejamos aparentemente calmos, bem-humorados e sem aflições, a pressão dispara: a minha ontem estava 15/9. O nome disso é síndrome do jaleco branco.

E o dia foi transcorrendo, numa sala privativa, com vista linda, contemplando o dia ensolarado, com a selva de São Paulo à frente e as montanhas ao fundo, ainda garantindo que existe algo da natureza… Passou entre explicações e aplicações de remédios: anti-enjoo, cortisona, e por fim as ditas cujas. A primeira foi suave. Levei minha caixinha de som, presente do meu irmão para essa fase, e estava flutuando em vibrações de amor e de paz. Centenas de mensagens recebidas, de afeto sincero e palpável e preces de todas as religiões, que me embalaram o dia. Na segunda droga, tivemos que interromper na metade, pois a náusea e a tontura vieram. Para-se a químio, 20 minutos de dramim na veia, alívio, término da segunda dose. Quando veio o mal-estar, desliguei a música e recorri à respiração.

 


Antes de sair, pregaram um aparelhinho em minha barriga, que vai disparar depois de 27 horas, uma substância para ajudar a não deixar a imunidade cair. Nesses primeiros dois meses, todas as vezes que aplicar a químio (ao todo 4 vezes) terei esse aparelho armado do meu corpo, que depois de disparar o remédio automaticamente, devo descartá-lo numa caixa e levar ao AC Camargo para incinerar. Tive, claro, a curiosidade de ler toda a bula do dito cujo no Google, e saber o quanto custa: uma módica quantia de 5 mil reais cada um!!! O valor de um só é muito mais do que eu pago pelo meu convênio mensal.

Saí zonza do hospital, enfrentei (sem dirigir obviamente) 2 horas de trânsito até em casa e cheguei para a sopinha feita pela Nena, uma pessoa que trabalhou comigo 10 anos, muito amiga e querida, com mão santa na cozinha, que quando soube do meu câncer se dispôs a vir ajudar nos dias em que eu precisasse. Estou cercada de todo amor possível.

Agora sim, a palavra certa e válida é gratidão (já escrevi que ando achando essa palavra muito desgastada: a pessoa recebe uma pequena informação ou um favor corriqueiro e a outra já vem com a profunda e vasta gratidão).

 

Reflexões do dia:

Apesar da intensa vivência emocional, física e espiritual do dia todo, não consigo e nem quero me desligar das questões sociais. Faço parte de um pequeno grupo privilegiado no Brasil, que terá acesso a esse centro de referência em oncologia. E as mulheres espalhadas pelo país afora que não terão esse mesmo tratamento? Durante anos, minha maior tensão financeira tem sido pagar o convênio, muitas vezes fiquei com ele suspenso, quase o perdi, lutei como leoa para continuar, porque ele salvou a vida deu uma filha espiritual amada e precisava continuar o tratamento do câncer do meu pai. Muitas vezes pedi empréstimo em banco, para amigos, doações de familiares, que continuam me ajudando. Num certo momento, em que não conseguia mais pagar, tentei transferir meu pai para o tratamento dele para o SUS no AC Camargo e tive o pedido negado.

Nos longos em que acompanhava meu pai no AC Camargo, muitas vezes me confortei pelo fato de que encontrava nas salas de espera, pessoas que estavam ali por convênios e pessoas que estavam pelo SUS, recebendo o mesmo tratamento.

Isso acabou. Pelo que ouvi dizer, o SUS praticamente não tem mais nada no AC Camargo. Nos últimos anos, com o avanço dos desgovernos neoliberais, as poucas conquistas que tínhamos (era preciso avançar muito mais) estão escorrendo como água entre os dedos do povo empobrecido e esquecido. E isso me dói nesse momento. Ainda mais numa semana em que recebemos a notícia de um projeto repulsivo de um grupo de militares de permanecerem no poder até 2035 e dois itens dos mais revoltantes é a extinção do SUS e da educação pública gratuita. Tenho o privilégio (esse convênio é a continuidade de algo que meu pai pagava há 30 anos quando trabalhava no mundo corporativo), mas não fico confortável em ter, sem que tantos não tenham.

Sinto gratidão por todas as circunstâncias e pessoas que me ajudaram a chegar até aqui e até um certo alívio por ter sido teimosa em lutar por isso, e sinto indignação, incômodo e mal-estar porque a maioria não terá o que estou tendo – e todos merecem ter.

 * * *

 Já são 6 horas da manhã: dor de cabeça, palpitação, glicemia alta, uma sensação de que engoli um cabo de guarda-chuva, em paz de espírito e reflexiva, eis meu relato do dia. Restará um espaço para um pouco de poesia?

 

Meu corpo se rebela

 

Em incômodos inquietos.

Mas abro a janela

Da alma tranquila.

 E ao longe cintila

 O amor de tantos afetos

 De cuidados repletos.

 O que apenas me revela

 Que Deus é sempre por perto.

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