Pular para o conteúdo principal

HÁ GUERRAS E GUERRAS, ENSINA O ESPIRITISMO

 


            Na tentativa de entender os fatos, a Doutrina Espírita sempre atiça a mente do Espírito encarnado quando surge o torpor de algum evento catastrófico. Com a guerra que ora sacode a humanidade, não poderia ser diferente.

            De etimologia germânica, a palavra ‘guerra’ deriva do normando – werren – revolta, discórdia, peleja. Vê-se, pois, que ela vai assumir teor bélico com o progresso armamentista da Humanidade. O que se vê anteriormente são conflitos em que o homem utiliza os mosquetes, os canhões e os veleiros, algo mais ou menos campal, que mais se pareciam duelos coletivos.

            Importante notar que o período que se inicia com a Idade Moderna (Século XVI), até a formação dos nacionalismos e dos imperialismos (Século XIX), é que vai acontecer a integração dos continentes, o que se conhece hoje como globalização. Esses episódios, certamente, subsidiaram os diálogos entre Allan Kardec e os Espíritos Reveladores, que se estudam no livro III, questões nº 742 a 745, de O Livro dos Espíritos, onde assinalam que há guerras e guerras.Partindo dessas premissas se conclui que o Espiritismo ensina que as guerras que a Providência Divina permite são aquelas que fomentam a liberdade e o progresso dos povos. Há outras que são movidas pelas ambições do poder e das riquezas, dentro do livre-arbítrio do homem. Nesses casos, aqueles que as provocarem necessitarão de algumas existências terrenas para expiar as mortes que causarem.

            Em um primeiro momento, causa estranheza a posição dos Espíritos, notadamente pelo pacifismo de Jesus e do Espiritismo. Na realidade, isso decorre mais pelo atavismo que carregamos do Jesus mítico, de herança das nossas romagens pelas outras agremiações religiosas. Para entender os ensinamentos em questão precisa-se remeter à historicidade de Jesus, reconhecendo-o como revolucionário.

            Jesus era um judeu campesino, analfabeto e que concentrou todo o seu ministério em pequenas localidades da Galileia, especificamente em Nazaré. Foi nesse universo que ele, de forma dialógica, formatou o reino de Deus, em oposição ao reino de César; isto é de fundamental importância. Ainda mais, segundo John Dominic Crossan, teólogo irlandês, “antes, durante e depois de Jesus, os camponeses da Palestina estavam num estado de distúrbio político, (...) tipo de movimento que é “relativamente espontâneo, desorganizado (...) com uma considerável participação popular, podendo incluir greves políticas violentas, quebra-quebras, brigas políticas e rebeliões localizadas.” Sua mensagem é tão viril que, no primeiro momento que Jesus saiu do habitat do seu ministério, indo a Jerusalém, foi preso e executado.

Embora minoria, até o princípio do Século III a comunidade cristã era formada pelas classes mais baixas da sociedade. Era notório o ódio de classes do proletariado para com os ricos, situação que persiste até hoje no que se designa lutas de classes. Este é o ponto crucial para o entendimento da construção do reino de Deus.

Assim como as Parábolas são elaboradas pelas coisas comezinhas do dia a dia, as bem-aventuranças – não nos termos que ficou conhecido – trazem os pilares fundamentais para a realização do reino de Deus: a justiça, a paz, a comensalidade, a igualdade de gênero. Tudo isso se contrapondo ao império de César que era pavimentado pela injustiça, pela guerra, pela carestia, além da presença dos impostos, da fome e do patriarcado. O reino de Deus de Jesus é interditado aos ricos, são várias as passagens no Evangelho que atestam essa condição. Com a adesão dos ricos ao movimento cristão, o Cristianismo vai perdendo seu caráter revolucionário. Ao se tornar a religião oficial do Império, a condição se agravou pelo revisionismo pelo qual os evangelhos foram submetidos, principalmente o de Mateus, que passou a ser conhecido como o “Evangelho das Contradições” e também o “favorito da Igreja”.

Karl Kautsky (1854-1938), filósofo tcheco-austríaco, jornalista, teórico marxista e um dos fundadores da ideologia social-democrata, registrou como a própria Igreja concluiu a esse respeito: “o caráter audacioso e revolucionário do primitivo entusiasmo e socialismo cristão havia sido tão transformado em medíocre oportunismo eclesiástico que já não parecia uma ameaça à existência de uma igreja organizada e em paz com a sociedade humana”.Com esse astuto revisionismo – diz Kautsky – o Sermão da Montanha perdeu todo o seu traço de ódio de classe, que é movido por opressores e oprimidos.

O reino de Deus não era algo metafísico, mas é uma atitude individual e coletiva na sua construção diária, para uma sociedade mais justa e igual. Este paradigma passa a ser o grande motor das civilizações. Leia-se em Atos dos Apóstolos que as primeiras comunidades cristãs se alinhavam a essas verdades.

 Ver-se-á em muitos episódios através dos tempos a sede para que esses ideais sejam vividos, e muitos Espíritos apelam para a violência, indevidamente. Viu-se isso na Revolução Francesa e na Revolução Russa que, apesar das guerras, passados os momentos de sofrimento, a Humanidade avançou nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

Faça-se um exercício de lógica e expectemos o movimento do proletariado em direção àquilo que se conhece como “ditadura do proletariado”, em uma medição de forças com o setor dominante do mundo que resultará em um grande, como seria entendido pela Providência Divina? Pode-se pensar que isso seja insensatez?

            Há insensatez maior em um sistema de governança mundial que gasta bilhões de dólares para a indústria armamentista e contra o terrorismo e que tem de conviver – segundo a Oxfam Internacional – com a morte, pela fome,  de 11 pessoas por minuto, números que superam as mortes por COVID-19 que eram de 7 à época dos estudos. Ao associar à pandemia, a fome, até o final de 2021, afetou aproximadamente 12 mil pessoas por dia.

“No Brasil, o percentual da população que vive em extrema pobreza quase triplicou desde o início da pandemia, passando de 4,5% para 12,8%, aponta a Oxfam. ‘No final de 2020, mais da metade da população – 116 milhões de pessoas – enfrentava algum nível de insegurança alimentar, das quais quase 20 milhões passavam fome”, diz o relatório’ (1)

Acredito que seja o bastante para que nós espíritas enxerguemos que o Espiritismo ensina que haverá sempre guerras e guerras, e a que se desenrola entre Rússia e Ucrânia é, na verdade, uma bestialidade, e nenhuma relação tem com o processo da transição da Terra de um Mundo de Provas e Expiações para Mundo de Regeneração, obviamente, nenhuma relação com a implantação do reino de Deus.

Em artigo na revista Carta Capital, de 23/03/2022, o jornalista Aldo Fornazieri escreveu sobre os estudos que apontavam para um período de declínio de guerras expectado a partir da década de 1990, com o colapso da União Soviética. Perante essa nova possibilidade, teve-se a sensação de que o mundo estava vivendo um período de paz mais longo entre as nações. Com o evento da Rússia/Ucrânia, surge uma nova pergunta: “As guerras de nosso tempo servem para quê?”

Essa modesta opinião espírita, de alguma forma, responde a pergunta do jornalista Fornazieri. Enquanto os ideais do reino de Deus – justiça, comensalidade e igualdade – não reinarem na Terra, a Humanidade terá que conviver sempre com as possibilidades de conflitos nacionais e internacionais.

 

Notas:

       (1)   https://www.dw.com/pt-br/mundo-tem-11-mortes-por-fome-por-minuto-estima-oxfam/a-58216949

 

Referências:             

CROSSAN, John Dominic. O Jesus histórico. Rio de Janeiro, 1994.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo, 2000.

KAUTSKY, Karl. A origem do cristianismo. Rio de Janeiro, 2010.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O MOVIMENTO ESPÍRITA MUNDIAL É HOJE MAIS AMPLO E COMPLEXO, MAS NÃO É UM MUNDO CAÓTICO DE UMA DOUTRINA DESPEDAÇADA*

    Por Wilson Garcia Vivemos, sem dúvida, a fase do aperfeiçoamento do Espiritismo. Após sua aurora no século XIX e do esforço de sistematização realizado por Allan Kardec, coube às gerações seguintes não apenas preservar a herança recebida, mas também ampliá-la, revendo equívocos e incorporando novos horizontes de reflexão. Nosso tempo é marcado pela aceleração do conhecimento humano e pela expansão dos meios de comunicação. Nesse cenário, o Espiritismo encontra uma dupla tarefa: de um lado, retornar às fontes genuínas do pensamento kardequiano, revendo interpretações imprecisas e sedimentações religiosas que se afastaram de seu caráter filosófico-científico; de outro, abrir-se à interlocução com as descobertas contemporâneas da ciência e com os debates atuais da filosofia e da espiritualidade, como o fez com as fontes que geraram as obras clássicas do espiritismo, no pós-Kardec.

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

A CULPA É DA JUVENTUDE?

    Por Ana Cláudia Laurindo Para os jovens deste tempo as expectativas de sucesso individual são consideradas remotas, mas não são para todos os jovens. A camada privilegiada segue assessorada por benefícios familiares, de nome, de casta, de herança política mantenedora de antigos ricos e geradora de novos ricos, no Brasil.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

ALLAN KARDEC E A DOUTRINA ESPÍRITA

  Por Doris Gandres Deolindo Amorim, ilustre espírita, profundo estudioso e divulgador da Codificação Espírita, fundador do Instituto de Cultura Espírita do Brasil, em dado momento, em seu livro Allan Kardec (1), pergunta qual o objetivo do estudo de uma biografia do codificador, ao que responde: “Naturalmente um objetivo didático: tirar a lição de que necessitamos aprender com ele, através de sua vida e de sua obra, aplicando essa lição às diversas circunstâncias da vida”.

PRÓXIMOS E DISTANTES

  Por Marcelo Henrique     Pense no trabalho que você realiza na Instituição Espírita com a qual mantém laços de afinidade. Recorde todos aqueles momentos em que, desinteressadamente, você deixou seus afazeres particulares, para realizar algo em prol dos outros – e, consequentemente, para si mesmo. Compute todas aquelas horas que você privou seus familiares e amigos mais diletos da convivência com você, por causa desta ou daquela atividade no Centro. Ainda assim, rememore quantas vezes você deixou seu bairro, sua cidade, e até seu estado ou país, para realizar alguma atividade espírita, a bem do ideal que abraçaste... Pois bem, foram vários os momentos de serviço, na messe do Senhor, não é mesmo? Quanta alegria experimentada, quanta gente nova que você conheceu, quantos “amigos” você cativou, não é assim?

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

JESUS E A QUESTÃO SOCIAL

              Por Jorge Luiz                       A Pobreza como Questão Social Para Hanna Arendt, filósofa alemã, uma das mais influentes do século XXI, aquilo que se convencionou chamar no século XVII de questão social, é um eufemismo para aquilo que seria mais fácil e compreensível se denominar de pobreza. A pobreza, para ela, é mais do que privação, é um estado de carência constante e miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é sórdida porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o ditame absoluto da necessidade que todos os homens conhecem pela mais íntima experiência e fora de qualquer especulação (Arendt, 1963).              A pobreza é uma das principais contradições do capitalismo e tem a sua origem na exploração do trabalho e na acumulação do capital.