quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A DEFESA DO FETO E SUAS SUBJETIVIDADES


Em todos os episódios que a sociedade se posiciona em defesa do feto, mesmo entre os espíritas, fica um vazio ainda não preenchido pelos defensores da vida. E esse vazio só será realmente preenchido após a resposta à seguinte pergunta: a vida se resume só ao feto?

Allan Kardec faz um convite vibrante para os espíritas acerca desse assunto, quando ele se refere ao conceito espírita de educação, na questão n° 625, de “O Livro dos Espíritos”. É um chamado viril ao ativismo espírita:

 

“Quando se pensa na massa de indivíduos diariamente lançados na corrente da população, sem princípios, sem freios, entregues aos próprios instintos, deve-se admirar das consequências desastrosas desse fato?”

 

            O grande mestre Jean Henrich Pestalozzi mostra de onde Allan Kardec se inspirou, via o homem como essência divina assim se reportar:

 

“O homem é por natureza, se abandonado a si mesmo, selvagem, ocioso, ignorante e ambicioso sem limites. (...) Este é o homem; se deixado a si mesmo, cresce selvagemente: ele rouba como come e mata como dorme. O direito de sua natureza é a sua necessidade, a base de sua justiça é o prazer, os limites de suas exigências são sua ociosidade e a impossibilidade de conseguir mais.”

 

            Essas duas considerações emitem um verdadeiro enunciado social para se construir uma agenda pedagógica na busca do homem novo.

       Discorrer, portanto, sobre o abortamento na visão espírita é demasiadamente desnecessário ante a clareza com que os Espíritos e Allan Kardec fazem em todo o corpo doutrinário e obras acessórias, além de autores encarnados.

            As citações de Pestalozzi e Kardec postulam a necessidade de sociedade e famílias funcionais, que o indivíduo tenha, no mínimo, direito à moradia, saúde, trabalho, educação e segurança. Em não dispondo desses recursos, fica comprometida a finalidade da encarnação, conforme dizem os Reveladores Celestes, que é se aperfeiçoar e enfrentar a sua parte na obra da encarnação. A família espírita é um grupo de espíritos normalmente necessitados, desajustados, em compromisso inadiável para a reparação, graças à contingência reencarnatória. Entende-se, dessa forma, que o planejamento reencarnatório tem necessidades básicas negadas aos Espíritos. Vê-se que as desigualdades sociais são enfermidades do organismo social. A vida, portanto, se desdobra em processos de aperfeiçoamentos que visam, conforme preceitua Kardec, na educação que consiste na arte de formar caracteres, porque a educação é conjunto de hábitos adquiridos.

            A bandeira do ativismo espírita deve ser sim contra o abortamento, mas, acima de tudo, em defesa pela Vida. E a vida contempla muitas narrativas sociais e econômicas que influenciam nas diversas matizes do abortamento.

            A pandemia da Covid-19 aprofundou a crise do capitalismo e expôs o flagelo do desemprego, as habitações precárias para suportar quarentenas, a precariedade dos transportes públicos propiciando as contaminações e a fragilidade do sistema de saúde, teoricamente bem organizado, mas vem sendo submetido a um desmonte desde o golpe patrocinado pela burguesia nacional em 2016. A crise, portanto, não é da Covid, mas sim de um modo de produção, o capitalismo. Aqui fica patente que o capitalismo não pode resolver as questões da saúde coletiva, do assalariado ou da habitação. São essas variáveis que devem constar na agenda do ativismo espírita. Todas as mazelas sociais e morais do Brasil, e aí se inclui o abortamento, são gestadas por esse sistema de produção. Um sistema que começa com a colonização, escravidão, caças às bruxas (mulheres), desde o seu início até aos nossos dias. Atribuir a responsabilidade exclusivamente à mulher, e até mesmo em crianças como tempos visto, é de uma hipocrisia sem tamanho.

            Vê-se, pois, que em decorrência disso, a defesa do feto passa por uma análise de diversas subjetividades que vão desde a situação de gênero, até nas questões que envolvem o “abortamento masculino” (abandono paterno), “abortamento social” (questões financeiras).

            O jurista, escritor espírita e filósofo do direito marxista brasileiro Alyssom Mascaro, em sua obra “Crise e Golpe”, atesta que sem a participação popular, a atual crise alcançará um grau de flagelo social altíssimo, e que certamente se recomporá com uma ainda maior dominância neoliberal, e que ao invés de freá-lo, permitirá o seu avanço ainda mais imunizado. A crise é estado normal do sistema capitalista. No capitalismo, a crise é a solução da crise. E Mascaro atesta:

 

“Se se olha para muitas décadas para trás, nunca houve, como agora, tanta possibilidade de desfraldar a unificação de sentido das massas trabalhadoras e desprovidas de capital do mundo em favor do socialismo. É chegado o momento da tentativa não só de reagir ao capital com remendos ou com clamores de misericórdia. Crise econômica e alteração brusca de subjetividades.”

 

            O movimento disruptivo no contexto espírita, que vem se autodenominando “espíritas progressistas”, é um bom sinal dentro desse combalido movimento espírita. As discussões que vêm se ampliando em lives já mostram um direcionamento para a evolução dessas pautas e não há outra alternativa senão essa via.

            Portanto, essas e outras subjetividades do sistema de governança no seio do movimento espírita podem e devem ser elencadas para a superação dessa anemia de ações. Como afirma o evangelista Mateus, “ninguém põe remendo de pano novo em roupa velha, pois o remendo forçará a roupa, tornando pior o rasgo.”. Os espíritas também podem e devem, pois dispõem de elementos doutrinários para isso, além de buscarem novas subjetividades pós-pandemia.

 

Referências:

INCONTRI. Dora. Pestalozzi - educação e ética. São Paulo: Scipione, 1996.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: LAKE, 2000.

MASCARO, Alyssom. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2020.

 


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