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ESPIRITISMO E DIREITO DE PROPRIEDADE



           O Espírito André Luiz, na obra Evolução em Dois Mundos, psicografia de Francisco C. Xavier, demonstra o exato momento na trajetória evolutiva do homem em que o homem selvático, ainda preso aos apetites da experiência animal, institui a propriedade de faixa de solo em que lhe encrava a moradia. Buscava nesse momento enobrecer o caráter iniciante, estabelecer regras de conduta, isso fundamentalmente para não impor aos semelhantes ofensas e prejuízos que também não desejava receber. Estava instituído aí o direito natural à propriedade privada, transformado, e interpreta sob novo prisma a sua presença na Terra.

            Allan Kardec cuidou desse assunto em O Livro dos Espíritos, - questão nº 884 -, oportunidade em que os Espíritos Reveladores conceituaram que o direito de possuir é natural, mas que a propriedade legítima foi adquirida sem prejuízo para os outros. Fácil de observar que o direito natural foi instituído conforme o Espírito André Luiz acima descreve. Os Espíritos, no entanto, na pergunta seguinte fazem uma advertência que a legislação humana consagra direitos convencionais que a justiça natural reprova.
            O direito natural, assim é chamado, consciente que é da natureza do homem ser racional, livre e consciente. Esses direitos são inatos e antecedem a qualquer convenção ou outorga do Estado.
            O direito jusnaturalista assim o reconhece, pois o homem já estava instituído desse direito. Vê-se nesse aspecto o imperativo transcendental do direito de propriedade.
            Nessa transcendentalidade, o direito de propriedade traça algumas coordenadas com a Lei Natural, ou Lei de Deus, configuradas no corpo doutrinário do Espiritismo: naturalidade, universalidade, eternidade, imutabilidade, cognoscibilidade, indefectibilidade, defensibilidade, sacralidade, transmissibilidade.
            Partindo dessas dimensões, o Espírito Cheverus denomina o indivíduo não como proprietário, mas apenas ecônomo (depositário, administrador): “Que fizeste, ecônomo infiel, dos bens que te confiei? Esse poderoso móvel de boas obras exclusivamente o empregaste na tua satisfação pessoal.”
            O Espiritismo atribui ao entender o direito de propriedade, estabelece deveres sociais e morais ao “proprietário”.     
            No capítulo XVI:10, de O Evangelho Segundo o Espiritismo, apresenta-se uma síntese do emprego da propriedade, em três situações diferentes:
a)    Quando não se tem – saber prescindir dela;
b)    Quando se apossui – saber empregá-la utilmente;
c)    Quando necessário – saber sacrificá-la.

Um ponto por demais interessante é visto na questão nº 884, de O Livro dos Espíritos, quando os Reveladores Celestes definem que a verdadeira propriedade só é aquela que foi adquirida sem prejuízo de outrem. É muito claro que deverá ser fruto do trabalho, já que este é um direito natural. Contudo, esse direito não se concentra apenas nos aspectos terrenos, mas vai muito além, pois passa pelo domínio moral e espiritual, considerando o aspecto transcendental da propriedade. O “proprietário” em não preenchendo esses requisitos, responderá à justiça divina.
Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), político e economista francês, anarquista, pai do socialismo científico, era radical nesse quesito. Leia-se:

“Eu afirmo que nem o trabalho, nem a ocupação e nem a lei podem criar a propriedade; que ela é um efeito sem causa: sou repreensível?
Quantas queixas se levantam?
- A propriedade é um roubo!”

Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e teórico político, em seu Discurso sobre a Origem das Desigualdades, considerou a propriedade privada, em um primeiro momento coletiva e posteriormente para o caráter privado, como os alicerces para todas as desigualdades civis entre os homens, pois as naturais, são inerentes ao ser humano e por si mesmas, isoladamente, não justificam o surgimento das mesmas.
Ney Lobo (1919-2012), educador paranaense, define três formas de aplicação da propriedade; a esmola, a beneficência e o investimento.
            Proudhon afirma que a propriedade tira todo seu valor (sua renda) da circulação dos produtos e, por conseguinte, ainda revela um fato superior a ela, a força coletiva, a solidariedade do trabalho.
            Alguns pontos da filosofia social espírita de propriedade se tocam com a concepção socialismo, como mostra Lobo, entretanto, sempre considerando o proprietário o ser imortal e viajor das vidas sucessivas. Leia-se:

            CONVERGÊNCIAS
a)    Ambas as doutrinas não reconhecem o homem como proprietário dos bens terrenos no rigor do termo: o socialismo, porque institui o Estado como proprietário; para a filosofia social espírita, somente Deus é o único dono de todas as riquezas.
b)    Ambas as doutrinas – filosofia social espírita e socialismo – guardadas as perspectivas doutrinárias, a propriedade só é considerada como usufruto dos bens da Terra.
c)    A universalização da propriedade estende-se às duas concepções filosóficas. O socialismo, pela coletivização. A filosofia social espírita, pela sucessão de seus detentores através das reencarnações e da Lei de Alternância das Posições Sociais (EE-XVI, 8, § 2º).
d)    As duas doutrinas incutem um sentido altamente restrito à plena propriedade: para o socialismo, a plena propriedade só é a dos bens de consumo, mas, enquanto subsistem, porque são perecíveis; para a Doutrina Espírita, só os bens espirituais (as perfeições conquistadas da inteligência e da moralidade) participam da plenitude e são eternos.

DIVERGÊNCIAS
a)    A filosofia social espírita intitula a propriedade privada como um direito natural e sagrado, para o socialismo não é nenhuma forma de direito, muito menos, sagrado.
b)    No socialismo, o proprietário só poderá ser o Estado, para a filosofia social espírita, tanto o Estado quanto os indivíduos podem ser proprietários, mas só na condição de usufrutuários.
c)    Para o socialismo, a origem da propriedade é espúria e, por isso, ilegítima; para a filosofia social espírita, a origem da propriedade pode ser honesta ou não, da mesma forma que legítima ou ilegítima. Deus é o dono de todas as riquezas.
d)    Para a filosofia social espírita, o emprego das riquezas pode ser bem ou mal empregado  social e espiritualmente, em qualquer tipo de sociedade; o socialismo é essencialmente pessimista: as riquezas geradas no regime capitalista e em mãos de particulares são empregadas antissocialmente.
e)    O desejo de possuir bens e propriedades, para o espírita, é natural, assim como também o direito de defendê-los; o socialismo entende que o desejo de possuir como um efeito psicológico do regime capitalista, não sendo assim natural, e que desaparecerá num sistema em que a propriedade esteja coletivizada.
f)     O socialismo é implantado pela coletivização da propriedade, e exige um Estado forte e totalitário que suprime a liberdade; a filosofia social espírita tende à privatização da propriedade que conduz à democracia e à liberdade.
g)    Para o socialismo, a coletivização é, a um só tempo, a extinção da propriedade particular, concentrando-a na esfera do Estado; para a filosofia social espírita, adotando esse termo, a coletivização, seria apenas justa e indispensável preocupação com o bem comum, com o bem-estar de todos os irmãos.

É imperativo anotar que a concepção espírita de propriedade, apesar da sua transitoriedade, tem aspectos metafísicos, fundamentalmente para a plena propriedade que é daqueles “tesouros que se juntam nos céus, que os ladrões não roubam, nem a ferrugem e a traça consomem.” (Mt, 6:19).
É um “jus” metafísico que a Doutrina Espírita anuncia e proclama.

Referências:
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: LAKE, 2000.
____________. O evangelho segundo o espiritismo. São Paulo: EME, 1996.
LOBO, Ney. Filosofia social espírita. Rio de Janeiro: FEB, 1991.
XAVIER, Francisco C. Evolução em dois mundos. Brasília: FEB, 1991.

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