domingo, 17 de abril de 2016

NO DIA 18 DE ABRIL DE 1857(*)


No dia 18 de abril de 1857, pela manhã, um camion à chevaux se deteve na Rue Montpensier, em frente da Galeria d’Orléans, no Palais Royal, Paris. O ajudante de cocheiro, trajando uniforme cinzento, amarrotado e sujo, saltou da boleia e dirigiu-se à Livraria DENTU, situada na entrada do peristilo. Empurrando a porta de vidraça, atrás da qual conversavam dois homens, o moço dirigiu-se a um, que era o gerente:

— Bom dia, Senhor CLEMENT!

E apresentou-lhe um papel.

— Bom dia, Maurice! — respondeu-lhe CLEMENT. Um pouquinho atrasado, não?
— Fizemos o possível, mas fomos despachados com demora na última barreira.

O gerente leu rapidamente a nota de entrega, remetida de Saint-Germain-en-Laye pela Tipografia DE BEAU, e gritou uma ordem:
— BITTARD! Recolha, por favor, essa mercadoria.

Não tardou a atender-lhe um empregado magro e alto, de avental azul, puxando, por uma corda, uma carreta de quatro roldanas pequenas. Aparentava vinte e cinco anos. Arrastou o carrinho até à porta da Rue Montpensier, saindo por ali com Maurice, seu velho conhecido. Conversando futilidades, auxiliado pelo cocheiro e o ajudante, BITTARD carreou para o interior da loja, em dois lotes, vários pacotes cúbicos envoltos em papel grosso e tendo, numa das faces, uma etiqueta branca com o frontispício impresso dum livro. A rua tinha, a essa hora matinal, poucos transeuntes. Na maior parte, crianças com suas amas em busca do parque real. O homem que conversava com o gerente era um freguês amigo. Vendo entrar literatura nova, seguiu CLEMENT ao fundo da loja espiou o letreiro dum dos pacotes. Depois disse, despedindo-se:

— Bem, meu caro. Você agora tem afazeres. Vou importunar um pouco o Senhor DENTU. (1)
— Até logo, DU CHALARD. (Jornalista do Courrier de Paris)

O freguês subiu a escadinha da sobreloja examinando, de passagem, as lombadas dos livros, alinhados em prateleiras e bem espanados. O gerente começou a conferência da mercadoria chegada. Contou primeiro vinte pacotes. Depois, abriu um deles, verificou em duas colunas unidas, sessenta brochuras. O bilhete de entrega rezava o total de mil e duzentos volumes. Dando o resto da mercadoria como conferido, rubricou o canhoto da nota e despediu Maurice com um sorriso e uma gorjeta de prata. Em seguida, apanhando um dos exemplares cuja capa cor-de-cinza leu com interesse, pôs-se em posição de falar com alguém da sobreloja:

— Senhor DENTU, acaba de chegar O LIVRO DOS ESPÍRITOS.
— Suba um exemplar, por favor! — respondeu de lá, um homem, com cerca de trinta anos, louro, de estatura mediana, que estava num birô repleto de papéis e tinha ao lado, numa poltrona MAPLE, seu amigo DU CHALARD, jornalista de profissão, aparentando a mesma idade.

O ascensor manual, empregado pelo gerente para remeter o livro à sobreloja, fez tilintar uma campainha ao chegar perto da mesa duma mulher cinquentona, vestida de preto, que examinava uns papéis. Ela apanhou o volume, mirou-lhe o verso e o reverso e mandou o rapaz Adrien, que trabalhava numa escrivaninha a seu lado, aparar-lhe as folhas numa pequena guilhotina manual. Era a Viúva Mélanie DENTU que, havia pouco mais dum ano, confiara ao filho Edouard-Henri Justin-DENTU a direção do estabelecimento tradicional da família, dirigido por ela desde o falecimento do esposo. Continuava porém a trabalhar com o filho, não só pelo hábito, adquirido desde o casamento, como para ajudar o Edou, segundo explicava aos fregueses. Espontadas as páginas, Adrien correu o polegar no corte para despregar as folhas e trouxe o livro à diretora. Esta, depois de rápido exame da composição tipográfica — durante o qual manifestou no semblante sinais de descontentamento — levou o volume ao filho, dizendo-lhe:

— Prometi ao Senhor RIVAIL remeter-lhe um pacote logo que a obra nos chegasse. Não seria bom mandar o mensageiro deixar, de passagem, alguns pacotes consignados com DIDIER (2) e LEDOYEN (3), que responderam ao nosso prospecto?
— Certamente, Mam. Queira mandar, também, um pacote a AUMONT e outro a SAVY. Paris já está repleta de turistas ávidos das novidades da primavera. Distribuiremos o resto, na próxima semana.

E, pegando o exemplar aparado, voltou-se para o jornalista:

— Este é o trabalho mais sério até hoje publicado na França, sobre os Espíritos.
— Mais sério do que o maçudo livro Dos Espíritos de MIRVILLE? (4) — atalhou DU CHALARD, com ar de crítica.
— Doutro gênero. O livro Dos Espíritos de MIRVILLE é um repertório confuso e enfadonho de fatos, visando a prova da existência de SATAN. Este, que editamos, é uma obra edificante e serena.
— Vejo que Você leu o manuscrito antes de mandá-lo à tipografia.
— Não li senão algumas páginas do prefácio e uns tópicos do texto. Mas lembro-me bem de que por um triz, essa obra não foi parar à mão doutro editor.
— Questão de preço?
— Não; pelo título. Vou contar-lhe o fato. 

Quando o Autor me procurou, no fim do ano passado, eu estava, justamente verificando, pelo inventário, o encalhe de várias obras sobre o Spiritualisme. CLEMENT apresentou-mo, dizendo: 

— “O Professor RIVAIL tem uma importante obra ‘spiritualiste’ para publicar?’ O efeito não podia ser pior. Antes de qualquer explicação do Autor, que se sentara aí, onde Você está, manifestei-lhe má vontade, declarando-lhe que, naquele momento, não nos interessava editar nenhum livro sobre Espíritos, por mais importante que fosse. 

O homem encarou-me complacente, como se estivesse acostumado a aturar livreiros e ia falar-me qualquer coisa, quando lhe disse, com enfado:

— “Esse assunto, meu caro Senhor, não nos interessa mais. É batidíssimo e está fora de voga. A França não se importa mais com o ‘Spiritualisme’, Nosso depósito está repleto de ‘Mesas que rodam’, ‘Mesas que dançam’, ‘Mesas que falam’, ‘Mesas que adivinham’, ‘Mesas’, enfim, que ninguém mais lê. (5). Essa brincadeira já passou da moda!” O homem, porém, continuava sereno e sorridente, a ouvir-me com atenção, como se já esperasse pela minha recusa. 

Respondeu-me, delicadamente:

— “Desejava apenas seu orçamento tipográfico, pois vou editar a obra por minha conta e risco. E possível?”
Embaraçado com sua impassibilidade e querendo, sinceramente, vê-lo pelas costas, disse-lhe que havíamos vendido a tipografia e estávamos dando serviço em concorrência a várias oficinas. E tínhamos tantos manuscritos para remeter ao prelo que, mais um, naquele fim de ano, seria bem embaraçante. E acrescentei:
— “Por que o Senhor não consulta diretamente uma tipografia, se quer editar a obra por sua conta?”

Nesse instante subiu ‘Mam’, que estava chegando à loja. Cumprimentou afavelmente o Autor e, sem conhecer minha atitude, perguntou- lhe interessada:

— “Trouxe afinal seus cadernos Professor?” E, com espanto meu, continuou:
— “É uma honra para nós editar seu livro. Estamos ultimando o inventário para balanço, mas espero ter tempo, no próximo domingo, de examinar seu manuscrito para um cálculo aproximado do custo. Far-lhe-os um orçamento razoável”. Intervi, dizendo a RIVAIL, haver recusado editar-lhe a obra por ignorar a existência dum entendimento anterior com mamãe. 

E acrescentei, constrangido:

— “Se não tem muita pressa, deixe conosco seus cadernos. Quantos exemplares pretende? ‘Mam’ fez- me perceber, com um olhar, que ela se incumbia de tratar da impressão e convidou Autor a descer até a loja. Lá ficaram conversando com CLEMENT e passei a cuidar do inventário Poucos dias depois encontrei, sobre meu birô, para assinar, um memorando remetendo o trabalho à Tipografia DE BEAU com o aviso, em vermelho, do punho de ‘Mam’: ‘Urgente e preferencial’. 

Perguntei a ela:

— “Sempre vamos editar esta droga?” 

Respondeu-me:

— “Droga não, querido. Comecei a correr os olhos sobre as laudas para um cálculo do custo e só abandonei a leitura quando cheguei ao fim da ‘Introdução’, que é enorme. Não fiz outra coisa, nestes últimos dias, senão ler e meditar essa obra verdadeiramente impressionante. E como me fez bem essa leitura, filho! Examine-lhe uma ou outra página, ao acaso, e verá que não estou exagerando”. Enquanto ela falava, risquei, com forte traço azul, o aviso de urgência, não vendo, comigo mesmo, motivo para preferir aquele manuscrito a outros de entrada mais antiga. E, a contragosto, por dever de ofício, examinei a fachada que é, em geral, a única página que o editor lê para organizar os prospectos e anúncios da obra. 

Depois, atendendo aos pedidos de ‘Mam’, deitei a vista sobre as primeiras linhas do prefácio. Aí, de início, se me deparou uma lição de Filologia, que é meu fraco. Quando me dei conta, estava afundado na leitura, aceitando, plenamente, os argumentos do Autor. E como diante de mim se achava mamãe a convidar-me para o almoço, confessei-lhe: 

— “Mam. Você tem razão. A obra parece esplêndida.”
— Ela tem sempre razão, interveio DU CHALARD lisonjeiro, olhando, sorridente, para Madame DENTU.

Edouard prosseguiu:

— Faltando-me o tempo e não gostando de ler manuscritos, examinei, perfunctoriamente, as passagens para as quais minha mãe me chamou a atenção e remeti a obra à tipografia com a recomendação de ‘urgente e preferencial’ restaurada por mim. Era eu, então, o mais apressado a lançar O LIVRO. E afirmo-lhe, com a minha hereditária intuição de livreiro: 

Se essa obra não fizer sucesso entre os ‘spiritualistes’ não sei o que mais poderá animá-los. Quer lê-la?

— Certamente, e com prazer.
— Pois tome este exemplar; já está aparado. Dirá, depois, seu parecer aos leitores do ‘Courrier’ (6)
—Obrigado, Edouard. Vou ler, com satisfação. Não sou, porém, competente para um exame crítico do ‘Spiritualisme’, mormente depois de tanta gente categorizada haver dito muito contra e a favor. O que lhe posso assegurar é ser o assunto bem atraente e não estar, como você pensa, fora de moda. Os Espíritos ainda constituem, em muitas rodas sociais, sobretudo elegantes, o entretenimento predileto e impressionante.

Intervindo na palestra, perguntou a Viúva:

— Gosta do ‘Spiritualisme’, Senhor DU CIIALARD?
— Sim, madame. Tenho atração por ele. Fui dos primeiros, em Paris, a verificar o fenômeno quando a ‘Mesa que roda’ surgiu entre nós. Afirmo-lhe, porém, que o ‘Spiritualisme’ não veio modificar minha velha convicção...
— Supõe seja mistificação?
— Não, Madame. Não me fiz entender. Creio ser o ‘Spiritualisme, uma doutrina verdadeira. Para mim os Mortos se comunicam com os Vivos. Mas...
— Acredita, então?

A atitude confiante da interlocutora e o olhar perscrutador de Edouard exigiam-lhe uma resposta clara e sincera. Contudo, o jornalista achou conveniente justificar sua crença:

— Quando eu era menino, ainda em minha província natal, um estranho acontecimento, surgido de improviso, me fez acreditar na existência das Almas de defuntos. Um vizinho falecera. Curioso, vi o cadáver já vestido e no caixão. Ficando em casa, de noite, enquanto meus pais faziam o velório, ouvi alguém abrir a porta da sala. Pensando serem eles, saltei da cama e fui a seu encontro. E dei de cara com o defunto, pálido e triste, a sorrir para mim. A visão durou segundos. Podem imaginar o susto! Corri ao quarto da arrumadeira, uma velha que nos servia há muitos anos, e contei-lhe, nervosamente, o fúnebre encontro. Só voltei a meu quarto, acompanhado dela, quando meus pais regressaram de madrugada. Desde então, fiquei absolutamente convicto, de que as Almas aparecem e podem sorrir aos Vivos...

— Influência talvez da sua educação religiosa, insinuou DENTU.
— Não, respondeu-lhe o jornalista. Minha mãe, apesar de católica, primava em tolerância pelas ideias avançadas de meu pai, materialista, Fui até os dez anos instruído por um tio positivista, amigo pessoal de LITTRÉ (7) e diretor duma escola particular.
Em mim a crença nas almas resultou dum fato: Vi. Não proveio da influência doméstica nem colegial. Ao contrário: Em casa, com meu pai, e na escola, com meu tio, muita vez me disseram, a propósito da visão, que acreditar em Almas era ser supersticioso. Antes de eu ver o fantasma, minha mãe falava-me de DEUS, dos Anjos, dos Santos e dos Demônios, nunca porém, de Almas de defuntos. E, depois que vi o fantasma, explicou-me que a visão não passava dum sonho. Aos quinze anos, querendo extirpar a minha suposta superstição, passei a ler os enciclopedistas, abundantes na biblioteca de meu pai.
Procurei, nesses livros antirreligiosos, abafar, sob o sarcasmo dos incrédulos, a lembrança da minha visão. Mas, essa cultura balofa, jamais venceu a minha crença.

Desde aquela noite do defunto fiquei, para sempre, um místico. Por isso falei-lhe que o ‘Spiritualisme’ não me veio abalar a convicção antiga. A ‘Mesa’ me demonstrou que a minha crença repousava numa realidade objetiva e não numa superstição.

— E escreveu a respeito? — indagou Edouard.
— Sim. Antes de aparecer a ‘Mesa’ eu havia esboçado um trabalhinho filosófico à moda de LAMENNAIS (8). Minhas conclusões, um tanto avançadas para a época, não ficavam longe da solução dos Americanos. Se tivesse publicado o ensaio, seria hoje, precursor em vez de adepto. Mas, temi a opinião pública..., e as autoridades.
— Por que não o lança agora, adaptado à teoria americana? (9) — insinuou DENTU.
— Pensei nisso. Mas o insucesso de HENNEQUIN (10), nosso desditoso amigo, me deixou apreensivo. Por outro lado, um publicista profissional precisa, para viver tranquilo, estar em dia com todos os acontecimentos, sem se deixar empolgar por nenhum deles, quando o assunto é controvertido.
— Poderia subscrever o trabalho com um pseudônimo, sugeriu Edouard.
— Como fez o professor RIVAIL, aduziu Mélanie.
—Seria logo descoberto. Meu jornal poderia considerar-me suspeito de frequentar sociedades secretas, que a polícia vem considerando reuniões de inimigos do regime.
— Tem razão, concordou DENTU. Seu jornal apoia o Governo. Hoje, toda cautela é pouca para quem deseje viver em paz. Quem está com a vara é a Igreja e ela não perdoa inimigos nem suspeitos.
— E Você, Edouard? Crê no ‘Spiritualisme’. — indagou DU CHALARD.
— Comigo o caso foi diferente: Criei-me num meio místico. Meu pai era amigo pessoal de PUYSEGUR (11) e DELEUZE (12) e correspondia-se com DE BARBARIN, BILLOT e outros magnetizadores da Escola Espiritualista. Mamãe e papai entregavam-se, com entusiasmo, ao estudo e à prática do Magnetismo transcendente. Por isso, a crença nos Espíritos, me foi transmitida com o leite do peito...
— Nosso lar, interveio Mélanie, era, de fato, o cenáculo dos grandes Magnetistas, quando vivia meu marido. Reuniam- se, em nossa casa, uma vez por semana, para palestrar sobre o Magnetismo ou ensaiar alguma sonâmbula. Nestes últimos quarenta anos, nenhuma livraria editou mais obras sobre o Magnetismo e ciências correlatas do que a nossa.
— Eu sei, interveio DU CIIALARD, e lembro-me de ter sido sua casa que lançou, entre nós, o primeiro livro sobre o ‘Spiritualisme’.
— De fato, logo que surgiu, em Brémen (13) o caso da ‘Mesa Magnética’, como então, se dizia na Alemanha, enviei para lá, o Senhor CLEMENT. Com os dados por ele colhidos ‘in loco’ e as informações por mim obtidas, de nosso correspondente em Londres, pudemos lançar o primeiro livro escrito na Franca sobre o ‘Spiritualisme’ americano.
— Foi a pioneira desse movimento literária, sustentou DU CHALARD.
— Naquele tempo, falou DENTU, eu ainda não dirigia a Livraria, mas acompanhava as nossas edições com grande interesse. Ferdinand SILAS (14) era meu amigo de escola e se incumbiu de coordenar os dados obtidos por mamãe e CLEMENT. Conseguimos um formidável êxito de livraria, O Livro — lembra-se? — foi lançado no mesmo dia em que a imprensa parisiense, pela primeira vez, tratou da ‘Mesa Magnética’. Num só mês largamos três edições melhoradas. Na segunda, demos um velho ensaio de BALZAC (15), apropriado ao caso, para mostrar que os Alemães não andavam adiante de nós. Na terceira, acrescentamos um prefácio de DELAAGE (16), provando que nós, os Magnetistas, já havíamos previsto o Spiritualisme americano. Lançamos assim, em trinta dias, dez mil exemplares, esgotando-se as tiragens.
Dentre outras obras publicou Initiation aux mystéres du magnetisme (Paris, Dentu, 1847); Le monde occulte ou Mystéres du magnetisme devoilles par le somnambulisme (Paris, P. Lesigne, 1851); Le Monde prophétique (Paris, Dentu, 1853) e L’étemité dévoilé ou vie future des ámes aprés la mort (Paris, Dentu, 1854)
— E, ao mesmo tempo, imprimimos várias obras particulares, tratando de tal assunto, aduziu a Viúva.
— Minha atenção para o fenômeno, disse DU CHALARD foi despertada, justamente, pelo folheto de SILAS.
E, após um instante:
— Mas, a minha pergunta, Edouard, ainda não foi respondida: Você crê nos Espíritos?
— Como lhe ia dizendo, eduquei-me num ambiente místico. Para mim eram, um fato, a imortalidade e o aparecimento da Alma, quando evocada magneticamente. Minha crença porém, ao invés de consolidar-se com a ‘Mesa’, como aconteceu a Você, arrefeceu-se diante dela. Explico-lhe. Estreando-me na direção da livraria, coube-me editar ‘As Mesas Rotantes’ do Conde Agénor DE GASPARIN (17). As conclusões desse ilustre Protestante, resumidas verbalmente por ele, em nossos colóquios, durante a impressão da obra, deixaram-me confuso, incrédulo, cético. A dúvida na veracidade de minha crença penetrou-me o espírito e, como um incêndio, devorou toda a minha fé na Espiritualidade. Fiquei largo tempo, sem saber se acreditava nos Espíritos, como meus pais e os amigos HENNEQUIM e DELAAGE, ou numa ‘força’ de natureza ‘material’, como afirmava DE GASPARIN.
— Meu filho, sustentou Mélanie, inclinou-se francamente, para os negadores. Sua atitude, quase de hostilidade contra nossa crença, entristecia-me, pois eu ‘sabia’ a verdade.
— Na vida comercial intensa em que logo me encontrei, desculpou-se DENTU, não era possível, como queria ‘Mam’, aprofundar o estudo a fim de chegar, experimentalmente, a uma conclusão pessoal. Era assim, forçado a considerar as hipóteses mais prudentes dos experimentadores. Fiquei, como DE GASPARIN, crendo nas Almas imortais mas duvidando da sua comunicação pela ‘Mesa’. E assim me mantive, até o dia em que li o prefácio deste livro.
— Bravos! — exclamou contente DU CHALARD. Posso então chamá-lo ‘irmão em crença’. Eu já desconfiava disso, dada sua intimidade com DELAAGE, SILAS e nosso infeliz HENNEQUIN.
— Sim, de fato, sou hoje um crente convicto. Mas como é DELAAGE. Para mim, o ‘Spiritualisme’ americano serve apenas de prova da verdade religiosa revelada por JESUS. Continuo na minha velha fé cristã.
— O importante, respondeu o jornalista, é crer. Podemos divergir em matéria doutrinária. Mas negar a comunicação dos Mortos, nesta altura dos fatos, é negar a luz do Sol em pleno meio-dia.
— Na comunicação dos Mortos eu creio, repetiu DENTU.
— Graças a O LIVRO DOS ESPÍRITOS, aduziu Mélanie.
— Considero DE GASPARIN, falou o jornalista, uma pena brilhante que só tem rival em RENAN (18). Mas julgo ‘As mesas Rotantes’, apesar de seu estilo maravilhoso e de seu fundo experimental, uma obra insincera e tendenciosa, escrita visando mais a defesa de SATAN do que à Ciência. E tão profundamente sectária que, apesar de DE MERVILLE e DES MOUSSEAUX sustentarem a mesma tese satânica, DE GASPARIN os ataca de rijo por serem escritores católicos.
— Eu diria mais, interveio Mélanie. E uma obra parcial, pois só tratou duma parte do fenômeno — o movimento — sem cuidar das manifestações inteligentes e sobre-humanas que a ‘Mesa’ produz e ele testemunhou muita vez.
— Estou de pleno acordo com ‘Mam’, apoiou DENTU. Na realidade DE GASPARIN procurou, dum lado, ignorar a inteligência do fenômeno e, doutro lado, defender a teologia protestante. Seu móvel, porém, não foi somente sectário. Agenor é um sábio, um verdadeiro cientista.
— Sem dúvida! — sustentou DU CHALARD. Mas seu ataque aos Unitaristas americanos (19), que aderiram ao ‘Spiritualisme’ e o propagam como um aviso divino, é prova de seu sectarismo.
— Tenho agora a certeza, atalhou DENTU, que Você vai apreciar este livro e dizer em seu jornal alguma coisa boa sobre ele.
— É possível. Vou lê-lo com atenção. E poderei desancar o Autor, se a obra não me agradar?
— À vontade! Assim esgotaremos a edição mais depressa... Mas olhe: Nada publique sem eu primeiro registrar O LIVRO. Como sabe, a nova Lei de Imprensa é severa e exige que, antes de comentada ou anunciada nas gazetas, a obra esteja aprovada pela Censura e arrolada no ‘Boletim Bibliográfico’ do ‘Journal de la France’ (20).
— Sei disso, concordou o jornalista.

(*) extraído da obra "O Livro dos Espíritos e Sua Tradição Histórica e Lendária.


(1)     C. DU Chalard, jornalismo do Corrier de Paris.

(2)     DIDIER e (3) LÉDOYEN, o primeiro editor e o segundo livreiro. Didier Et Cie., Libraires-Editeurs, 33, Quai des Augustins e Ledoyen, Libraire, Galeria d’Orleans, 31 au Palais-Royal (em Paris, França) editaram, em 1860, a segunda edição de “Le Livre des Esprits”, inteiramente refundida e consideravelmente aumentada, por Allan Kardec, selon le ‘enseignement donné par les Esprits supérieurs à l’aide de divers médiums. Esta segunda edição é que se nos tornou conhecida, popularizada, constituindo raridade exemplares da primeira edição, de 1857. O Dr. Canuto Abreu,desencarnado em 02/05/1980, em São Paulo, por ocasião das Comemorações do Primeiro Centenário de Espiritismo em São Paulo, em 18 de abril de 1957, publicou O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec— 1857, reproduzindo, em bilíngüe, aquela primeira edição.
(4) M. de Mirville a été l´un des premiers à affirmer et à prouver le fait de l’existence des Esprits et de leurs manifestation; son premier ouvrage celui des, manifestations fluidiques, a précéde de Livre des Esprits, et puissamment contribué à la propagation de l’idée eu frayant la voie à la doctrine qui devait éclore plus tard. C’est done à tort que certaines personnes considérent l‘auteur comme un antagoniste; il est oppose à la doctrine philosophique du Spiritisme, en ce sens que, conformement à 1‘opinion de l’Eglísecatholique, il nevoit dans ces phénomènes que 1‘ouvre exclusive du démon. Cette conclusion à part, ses ovrages, et lê premier principalement, sont riches en faits spontanés trés-instructifs, appuyés sur des preuves autentiques (Allan Kardec, Catalogue Raisoné des Ouvrages Pouvant Servir à Fonder une Bibliothéque Spirite, 2a. cd., 1869) O Museu do Livro Espírita em organização pelo Lar da Família Universal (São Paulo, Brasil) possue, em seu acervo, um exemplar, de 1854, DES ESPRITS et de leurs manifestation fluidiques - Pneumatologie.
(5) Kardec assinala esse período como “o da curiosidade”. (Revue Spirite, setembro, 1858)
(6) No ‘Courrier de Paris’ de 11 de junho de 1857, DU CHALARD deu seu parecer estampando extenso artigo,do qual destacamos: O LIVRO DOS ESPÍRITOS do Senhor ALLAN KARDEC é página nova do próprio grande livro do infinito e, estamos persuadidos, uma marca será posta nesta página. Seria lamentável que pudessem pensar que aqui estamos a fazer reclame bibliográfico; se tal se pudesse admitir, preferiríamos quebrar a pena. Não conhecemos o autor mas proclamamos, bom som, que gostaríamos de o conhecer. Quem escreveu aquela introdução que abre O LIVRO DOS ESPÍRITOS deve ter a alma aberta a todos os sentimentos nobres.” (Revue Spirite, janeiro, 1858).
(7) Maximilien Paul Emile LITTRÉ — Filósofo, filólogo e político, n. em. em Paris (18/01/1881). Foi membro da Academia Francesa, eleito em 1871. Célebre positivista e discípulo de Augusto Comte.
(8) LAMENNAIS (ou LA MENNAIS) (l’abbé Félicité-Robert de) — Filósofo e místico, n. em St. Malo em 1788, m. em Paris em 1854. Publicou Sur la lutte de bons et mauvais génies, condenada pela Congregação do Index. Censurado pelo Papa, afastou-se da Igreja. Foi membro da Assembléia Nacional Francesa em 1848.
(9) Revue Spirite (abril de 1869) reproduz do Salut, de Nova Orleans, a declaração de princípios aprovada na quinta convenção nacional, ou assembléia dos delegados dos espíritas das diversas partes dos Estados Unidos. A comparação das crenças sobre essas matérias, entre o que se chama escola americana e a escola européia, é uma coisa de grande importância, de que cada um poderá convencer-se. A recomendação é de Kardec, vale a pena reportar-se à fonte.
(10) HENNEQUIN (Victor-Antoine), n. em Paris em 1816, em. em 1854. Advogado, deputado, publicista et singulíer illuminé. Publicou Sauvons le genre humain, ditado pelo espírito Ame de la Terre, em 1853. Tendo enlouquecido, o acontecimento foi muito explorado pelos opositores do Espiritismo. Falam muito do caso Victor Henequim, porém esquecem-se que, antes de se ocupar com os Espíritos, já ele havia dado provas de excentricidades nas suas idéias (Allan Kardec — O que é o Espiritismo — FEB — Rio de Janeiro — 1945— 9ª. ed. — pág. 68).
(11) PUYSÉGUR (Armand Marie Jacques de Chastenet, marquis de), continuador de MESMER, em 1787, ao assistir o camponês Victor Rasse, com os recursos do magnetismo, produziu o sono hipnótico, que denominou de “Sonambulismo Artificial”. Assim, casualmente, Puységur descobriu a um só tempo o sonambulismo a sugestão mental e a transmissão do pensamento. (Michaelus — Magnetismo Espiritual — FEB — Rio de Janeiro — 3ª. ed. — 1977— pág. 10)
(12) DELEUZE (Joseph Philippe François), naturalista, bibliotecário do Museu de História Natural em França, célebre magnetizador e diretor da Escola Naturista (de Magnétologia), n. em Sisteron, em 1753, e. em Paris, em 1835. Iniciou seus estudos e suas observações sobre o magnetismo em 1785. Publicou ‘Mémoires sur le faculté de prevision’ (1836), ‘Histoire critique du magnétisme animal’ (1849). ‘Instruction practique sur le magnétisme animal’ (1850) e ‘Correspondence’, em dois volumes, em 1838/9, com Billot (Dr. G. P.)
(13) Em abril de 1853, ‘ecoa de Brémen, importante cidade (alemã) à margem do rio Weser, a notícia da primeira manifestação da ‘mesa girante’, ‘com a qual não se sonhava antes da chegada do vapor de Nova Iorque, o Washington... O novo fenômeno é importado da América’ (Zêus Wantuil — As Mesas Girantes e o Espiritismo — FEB — Rio de Janeiro — 1ª. ed. — pág. 26)
(14) SILAS (Ferndinand) publicou Instruction explicative et pratique des tables tournantes (Paris, Houssiaux et Dantu, 1852(1 ed.) e 1853(2 e 3 ed).
(15) BALZAC (Honoré de), romancista francês, n. en Tours (1799/1850). E vasta a sua produção bibliográfica, Destacamos a Comedie humaine, uma série de romances, dentre os quais Ursula Mirouet e Seraphite, este traduzido para o português por Wallace Leal V. Rodrigues, sob o título O céu em nossas almas (LAKE- livraria Allan Kardec Editora - São Paulo -1952-1 ed.)
(16) DELAAGE (Henri), magnetista e magnetizador, autor de livros mystico magnétiques, amigos de Alexandre Dumas, de Rigobolche e outros, com uma conversação embaraçada, por um vício de linguagem e, no entretanto, como homem do mundo, muito gentil, delicado e simpático. Nasceu em Paris em 1825.
(17) DE GASPARIN (Agénor Etienne,comte), francês n. em Orange (1810) e m. em Genève (1871). Político e literato foi um dos observadores e pesquisadores que iniciaram, em França, o estudo dos novos fenômenos que a abalaram no século passado e que deram origem ao movimento espiritualista moderno. E autor de Des ta bles tournantes, du sur naturel et généralet des esprits. L’auteur a constaté la réalité dês phénomènes, mais il cherchait à les expliquer san le concours des Esprits (Allan Kardec, Catalogue Raisonné des Ouvrages Pouvant Servir à Fonder une Biblio théque Spirite — Paris — 1869)
(18) RENAN (Josef Ernest), filósofo, filólogo, critico e historiador francês,. em Tréguier (Côtes du Nord), m. em Paris (1823/1892). Escritor de excepcional habilidade, historiador audacioso e erudito, escreveu, entre outras obras, Histoire des origines du christianisme (1863/1881), que compreende Vie de Jésus, Lês Apôtres. L’ Ecclésiaste Chretienne e outros. A respeito de a Vida de Jesus há extenso comentário de Kardec em a Revue Spirite (maio-junho de 1864) e em Obras Póstumas (2 p. titulo 26).
(19) Partidários do Unitarismo, doutrina que não reconhece senão uma pessoa em Deus, como os socinianos.
(20) NAPOLEÃO III (Carlos Luiz Napoleão Bonaparte), n. em Paris (França) em. em Chiselhurst (Inglaterra) (1808/1873), imperador da França, na época — de 1852 a 1858 — exercia um poder absoluto.


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