Pular para o conteúdo principal

16.06. 144 ANOS DO PROCESSO DOS ESPÍRITAS





Os espíritas devem considerar-se como soldados num campo de batalha; eles se devem à causa e não podem esperar repouso senão quando a vitória for conquistada. Felizes os que tiverem contribuído para a vitória com o preço de alguns sacrifícios.
(Allan Kardec, RS, out 1867)



Fotografia em que a Sra. Allan Kardec pousa para Bouguet.


            Allan Kardec definiu o Auto-de-Fé de Barcelona – 9 de outubro de 1861 - como o episódio que marcou o início do período de luta na marcha do progresso do Espiritismo. Outro episódio muito significativo desse período, ocorrido cinco anos após a sua desencarnação - 16.06.1875 -,ficou conhecido como “Processo dos Espíritas”, processo judicial tendo como réu o então diretor da Revista Espírita, Pierre-Gaëtan Leymarie, que foi julgado e condenado a um ano em prisão celular e o pagamento de quinhentos francos de multa, sob a acusação de publicar fotografias fraudulentas de espíritos desencarnados.
            Os primeiros relatos dessas fotografias, obtidas nos Estados Unidos, bem como Inglaterra, foram publicados no periódico Herald of Progress de 1º de novembro de 1862. Entretanto, elas só foram se popularizar no ano de 1870, despertando grande interesse do público e da Revista Espírita. Como fonte de pesquisa, mobilizou-se pessoalmente o eminente cientista Si William Crookes.

            Com o propósito de atender às inúmeras solicitações dos assinantes, e em decorrência do alto custo de se obter originais, Leymarie decidiu a fazê-las reproduzir na França, através de um fotógrafo que as copiava, sem nenhuma intenção de ocultar suas origens, imprimindo no verso a expressão “Reproduction de photographies américaines”. As cópias passaram a ser comercializadas a 75 cêntimos, e esse arranjo durou até novembro de 1873.
            Diante dos resultados que vinha obtendo Edouard Buguet, fotógrafo e médium, Leymarie, apesar do reconhecimento da boa-fé dele, resolveu investigar o fenômeno para lhe possibilitar um juízo mais seguro.
            Depois de empreender várias investigações, realizou experiências com a Senhora Allan Kardec, então beirando seus oitenta anos de idade, com arquiteto, com juiz de paz e com a própria filha, de nome Jane, de nove anos de idade. Em todos, os resultados foram positivos, embora nem sempre tão nítidas, o que é compreensível, as imagens dos Espíritos. Várias pessoas atestaram o fenômeno, reconhecendo familiares desencarnados.
            Cinco anos, portanto, após a desencarnação de Allan Kardec, a Revista Espírita publicou inúmeros artigos sobre fotografia de Espíritos, lustrando-os, bem assim as notas informativas que a respeito estampava com as fotos das pessoas que posavam. Em uma delas, Madame Allan Kardec, trazia a imagem do Codificador do Espiritismo, ostentando uma mensagem em francês, transcrita também na Revista Espírita.
            No ano seguinte, precisamente no dia 16 de junho, quarta-feira, instaurava-se um processo que ficaria célebre: o (Processo dos Espíritas) movido em Paris, pelo Ministério Público, tendo como figura de destaque, Pierre-Gaëtan Leymarie, diretor da Revista Espírita.
            É, bem verdade, que houve algumas fraudes fotográficas como bem atestou o médium Bouguet. O fato é que Leymarie não tinha nenhum envolvimento nessas fraudes, como confessou Bouguet. Cerca de 140 testemunhas afirmaram, sob palavras de honra, haver reconhecido personalidades mortas de suas famílias.
            Ademais, o processo que Bouguet desenvolvera, aliado à sua faculdade mediúnica, dificultara a tarefa dos cientistas e dos fotógrafos profissionais em chegar a uma explicação conclusiva sobre as fotografias espíritas por meios de procedimentos comuns; nem a polícia nem a justiça, mesmo que tentassem justificar tal condição, poderiam contribuir para esse desiderato.
            Impossível se expor todos os meandros do processo. O que se pode perceber, entretanto, lendo-se as obras publicadas sobre o assunto, é que o alvo do processo foi o Espiritismo, como doutrina, e não os réus em si. A forma desrespeitosa e descortês que foi tratada a Senhora Kardec é das coisas mais lamentáveis e tenebrosas desse fatídico processo. Ao tentarem fazer de Kardec apenas um compilador, negando-o a condição de escritor, com o propósito de ridicularizá-lo, Madame Kardec reage corajosamente:

“Protesto energicamente contra essa maneira de interrogar e solicito ser ouvida novamente, porque é costume na França respeitar as senhoras, sobretudo quando têm cabelos brancos. Não se deveria interromper-me e mandar-me sentar, após se terem divertido com o que considero inatacável, ou seja, o direito de ter feito construir um túmulo para o meu companheiro de provações, para o esposo estimado e honrado por homens do mais alto valor.”

            As sequelas deixadas pelo Processo dos Espíritas são mais delicadas do que se pode imaginar. Pode-se incluí-lo como um dos fatores principais dos que motivaram a transnacionalização do Espiritismo da França para o Brasil.
            O doutor Canuto de Abreu, eminente historiador espírita, em carta dirigida a Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, inserta no tomo 3, da belíssima obra “Allan Kardec – Meticulosa Pesquisa Bibliográfica e Ensaios de Interpretação”, datada de 17 de fevereiro de 1977, expressa o seguinte:

“Fui amigo pessoal de Paul Leymarie, filho ilustre perseguido da heroína (Marina P.G. Leymarie). Procurei um exemplar de Procès nas livrarias especializadas, porque tinha escrúpulos em pedir a Paul um exemplar desse livro desaparecido das prateleiras espíritas. Porém, baseando-me em estudos antigos, tenho condições de informar que em Paris, desde o Procès, em conversas com crentes e estranhos, é sistematicamente ‘evitado’ como ‘ofensivo’ chamar alguém de ‘espírita’. Um dia perguntei o porquê ao secretário de nossa embaixada na França e ele me respondeu: porque se tornou sinal de ‘trapaceiro”, prefira dizer ‘psiquista’. Isso se deve à repercussão do Procès: provou-se a inocência da vítima da perseguição, mas o povo francês conservou essa contrariedade.”
           
            O que se pode concluir, é que na realidade o “Processo dos Espíritas” foi uma autêntica peça inquisitorial, só concebível se se reportar aos tempos da Idade Média. Leymarie recebeu manifestações de solidariedade, confiança e integral apoio moral de todas as partes do mundo espírita. Madame Leymarie, a seu turno, enquanto tinha curso o “processo”, reuniu vasta documentação formando um volume da coleção anual da Revista Espírita, resumo publicado no Brasil pela FEB, sob o título Processo dos Espíritas.
Marina P.G. Leymarie
            No final de tudo, Leymarie é proclamado por seus amigos como “mártir da Terceira Revelação” – livre de qualquer suspeita. A justiça considera que ele foi enganado na sua boa-fé, e procede à sua reabilitação.
            Gabriel Dellane, foi duro e objetivo a respeito das causas que levaram a esse processo. Assim ele afirma:

“Se tivemos que experimentar uma condenação contra nós, foi porque nos desviamos da rota traçada por Allan Kardec. Este inovador era contrário à retribuição dos médiuns e tinha para isso boas razões. Em sua época, os irmãos Davenport muito fizeram falar de si, mas, como ganhavam dinheiro com suas habilidades, Allan Kardec afastou-se deles, prudentemente.”

              A luta continua...  
           


REFERÊNCIAS
ÁUBRÉE, Marion & LAPLATINE, François. A mesa, o livro e os espíritos. Alagoas. Edufa. 2009;
BEZERRA, Florentino. O Processo dos espíritas. São Paulo. USE/Madras. 2004;
LEYMARIE, Madame P.-G. Processo dos espíritas. Rio de Janeiro. FEB. 1977;
WANTUIL, Zêus & THIESEN, Francisco. Allan Kardec (Pesquisa bibliográfica e ensaios de interpretação). Rio de Janeiro. 1988.

Comentários

  1. Muito bom!
    Passadas 14 décadas, percebe-se que os adversários do Espiritismo mudaram suas estratégias, mas o combate à Doutrina e àqueles que a professam é feito na mesma intensidade.
    Por isso, "Trabalho, Solidariedade, Tolerância!"

    ResponderExcluir
  2. Amigo Jorge, estou muito grata com essa matéria até desconhecida , pelos espíritas.
    Foi tão importante para mm, que em 03 de julho estarei participando de um CULTO ECUMÊNICO, DOS FORMANDOS EM DIREITO.
    Sem perigo de julgamento e nem prisão.
    De coração muito obrigada.
    Abraço fraternal.
    Luíza de Marilac

    ResponderExcluir
  3. Olá, amigo (a)
    Não podemos ter um movimento espírita sem memória, principalmente quando se trata de fatos dessa natureza. Vencemos batalhas, mas a luta continua. Não podemos baixar a guarda.
    Abraços!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo em gênero e grau amigo Jorge Luiz. Se na atualidade conseguimos emergir com a mensagem espírita é porque a sociedade civil não admite mais o cerceamento dos direitos individuais e de grupo, mas o Espiritismo ainda é atacado pelas sombras do pensamento religioso e científico sempre que há uma margem qualquer de espaço. Roberto Caldas

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

JESUS E A IDEOLOGIA SOCIOECONÔMICA DA PARTILHA

  Por Jorge Luiz               Subjetivação e Submissão: A Antítese Neoliberal e a Ideologia da Partilha             O sociólogo Karl Mannheim foi um dos primeiros a teorizar sobre a subjetividade como um fator determinante, e muitas vezes subestimado, na caracterização de uma geração, isso, separando a mera “posição geracional” (nascer na mesma época) da “unidade de geração” (a experiência formativa e a consciência compartilhada). “Unidade de geração” é o que interessa para a presente resenha, e é aqui que a subjetividade se torna determinante. A “unidade de geração” é formada por aqueles indivíduos dentro da mesma “conexão geracional” que processam ou reagem ao seu tempo histórico de uma forma homogênea e distintiva. Essa reação comum é que cria o “ethos” ou a subjetividade coletiva da geração, geração essa formada por sujeitos.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O NATAL DE CADA UM

  Imagens da internet Sabemos todos que “natal” significa “nascimento”, o que nos proporciona ocasião para inúmeras reflexões... Usualmente, ao falarmos de natal, o primeiro pensamento que nos ocorre é o da festa natalina, a data de comemoração do nascimento de Jesus... Entretanto, tantas são as coisas que nos envolvem, decoração, luzes, presentes, ceia, almoço, roupa nova, aparatos, rituais, cerimônias etc., que a azáfama e o corre-corre dos últimos dias fazem-nos perder o sentido real dessa data, desse momento; fazem com a gente muitas vezes se perca até de nós mesmos, do essencial em nós... Se pararmos um pouquinho para pensar, refletir sobre o tema, talvez consigamos compreender um pouco melhor o significando do nascimento daquele Espírito de tão alto nível naquele momento conturbado aqui na Terra, numa família aparentemente comum, envergando a personalidade de Jesus, filho de Maria e José. Talvez consigamos perceber o elevado significado do sacrifício daqueles missionári...

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

A ESTUPIDEZ DA INTELIGÊNCIA: COMO O CAPITALISMO E A IDIOSSUBJETIVAÇÃO SEQUESTRAM A ESSÊNCIA HUMANA

      Por Jorge Luiz                  A Criança e a Objetividade                Um vídeo que me chegou retrata o diálogo de um pai com uma criança de, acredito, no máximo 3 anos de idade. Ele lhe oferece um passeio em um carro moderno e em um modelo antigo, daqueles que marcaram época – tudo indica que é carro de colecionador. O pai, de maneira pedagógica, retrata-os simbolicamente como o amor (o antigo) e o luxo (o novo). A criança, sem titubear, escolhe o antigo – acredita-se que já é de uso da família – enquanto recusa entrar no veículo novo, o que lhe é atendido. Esse processo didático é rico em miríades que contemplam o processo de subjetivação dos sujeitos em uma sociedade marcada pela reprodução da forma da mercadoria.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

EU POSSO SER MANIPULADO. E VOCÊ, TAMBÉM PODE?

  Por Maurício Zanolini A jornalista investigativa Carole Cadwalladr voltou à sua cidade natal depois do referendo que decidiu pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia (Brexit). Ela queria entender o que havia levado a maior parte da população da pequena cidade de Ebbw Vale a optar pela saída do bloco econômico. Afinal muito do desenvolvimento urbanístico e cultural da cidade era resultado de ações da União Europeia. A resposta estava no Facebook e no pânico causado pela publicidade (postagens pagas) que apareciam quando as pessoas rolavam suas telas – memes, anúncios da campanha pró-Brexit e notícias falsas com bordões simplistas, xenofobia e discurso de ódio.

A DOR DO FEMINICÍDIO NÃO COMOVE A TODOS. O QUE EXPLICA?

    Por Ana Cláudia Laurindo A vida das mulheres foi tratada como propriedade do homem desde os primevos tempos, formadores da base social patriarcal, sob o alvará das religiões e as justificativas de posses materiais em suas amarras reprodutivas. A negação dos direitos civis era apenas um dos aspectos da opressão que domesticava o feminino para servir ao homem e à família. A coroação da rainha do lar fez parte da encenação formal que aprisionou a mulher de “vergonha” no papel de matriz e destituiu a mulher de “uso” de qualquer condição de dignidade social, fazendo de ambos os papéis algo extremamente útil aos interesses machistas.

DIVERSIDADE SEXUAL E ESPIRITISMO - O QUE KARDEC TEM A VER COM ISSO?

            O meio espírita, por conta do viés religioso predominante, acaba encontrando certa dificuldade na abordagem do assunto sexo. Existem algumas publicações que tentam colocar o assunto em pauta; contudo, percebe-se que muitos autores tentam, ainda que indiretamente, associar a diversidade sexual à promiscuidade, numa tentativa de sacralizar a heterocisnormatividade e marginalizar outras manifestações da sexualidade; outros, quando abrem uma exceção, ressaltam os perigos da pornografia e da promiscuidade, como se fossem características exclusivas de indivíduos LGBTQI+.