Por Jorge Luiz
Logo após a desencarnação de Allan Kardec, na Revista Espírita de maio de 1869, foi publicada pequena biografia dele, onde se tornou conhecido o lema da sua bandeira: Trabalho, Solidariedade e Tolerância. Não há nada sobre esse tema além disso. No entanto, a vida de Allan Kardec, naquilo que se sabe, foi exemplo vivo dessa divisa. Leia-se o que diz ainda essa biografia, acerca da tolerância, tema desta resenha:
“A tolerância absoluta era a regra de Allan Kardec. Seus amigos, seus discípulos pertenciam a todas as religiões: israelitas, maometanos, católicos e protestantes de todas as seitas; de todas as classes: ricos, pobres, sábios, livres-pensadores, artistas e operários etc. ... Todos puderam vir aqui, graças a esta medida que não compromete nenhuma consciência e que será um bom exemplo.”
Inicialmente tratada sob o aspecto religioso, a tolerância sofreu várias metamorfoses ao longo da história. Os nomes mais importantes na modernidade foram John Locke, François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire, e John Stuart Mills. A frase de Voltaire marcou essa época, “posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.”
Já na contemporaneidade, temos Norberto Bobbio, John Rawls e Ives Charles Zarka.
A tolerância, no entanto, vai assumir o seu real protagonismo e se torna a virtude das democracias, quando da Declaração dos Princípios da Unesco sobre a Tolerância, proclamada na 28ª Conferência Geral, realizada em 25/10 a 16/11/1995, em seu artigo 1º, item 1.13, que diz:
“A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito. Implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos”.
“A fim de mobilizar a opinião pública, de ressaltar os perigos e de reafirmar nosso compromisso e nossa determinação de agir em favor do fomento da tolerância e da educação para a tolerância, nós proclamamos solenemente o dia 16 de novembro de cada ano como o dia Internacional da Tolerância.”
Comemora-se, no mundo, dias para tudo, desde que se gere business. No dia para se comemorar a tolerância, como virtude das democracias, as iniciativas passam ao largo. Nem nas escolas isso acontece, apesar dessa exigência também constar na mesma Declaração:
“A educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância. A primeira etapa da educação para a tolerância consiste em ensinar os indivíduos quais são os seus direitos e suas liberdade a fim de assegurar seu respeito e de incentivar a vontade de proteger os direitos e a liberdade dos outros.”
O Brasil dos dias atuais é um exemplo vivo de que a democracia não se impõe sem o suporte e o esclarecimento da ideia de tolerância. O que pensa diferente, em termos ideológico e religioso, tem de ser eliminado, o neopentecostalismo brasileiro é um exemplo desse cenário. Já no campo político, que dialoga com o neopentecostalismo, temos “o bolsonarismo” com enxertia com a extrema-direita mundial, a qual pode engendrar um monstro como fenômeno social.
Hans Kung (1928-2021), teólogo suíço, considera que:
“Não haverá paz entre as nações se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões se não existirem padrões éticos globais. Nosso planeta não irá sobreviver se não houver um etos global, uma ética para o mundo inteiro.”
Considero que Allan Kardec, ao inserir a tolerância em sua bandeira, inspirou-se nas vidas sucessivas. A tolerância, sem sombra de dúvidas, é a virtude da reencarnação, pois é nela que se expressam as nossas diferenças, apesar de evidenciar as nossas semelhanças, naquilo que é o nosso ponto de partida: simples e ignorantes, questão n.º 115, de O Livro dos Espíritos (L.E.).
Em um outro momento nesse espaço, escrevi sobre a reencarnação como sinergia do Espírito (veja), concluindo com a seguinte frase:
“A reencarnação é proposta Divina para uma Sinergia do Espírito que, criado pelo amor e para amar, transita da diversidade para a similaridade, e à unicidade como determinismo Divino, explicitada pela afirmativa de Jesus – João, 10:30 – ‘Eu e o Pai somos um’”.
O pensamento sinergético realiza-se em seu plus dos seus processos – 2+2=5. No resultado, estão as diferenças entre os Espíritos, através dos diversos renascimentos.
Humberto Mariotti, médico e escritor brasileiro, estudando os padrões e competências dos pensamentos – linear, sistêmico e complexo –, que fortalece a tolerância no sistema do Espírito, enquanto encarnado, afirma: “(...) um dos princípios fundamentais do pensamento sistêmico: o que é importante não são as partes do sistema em si, mas o modo como elas se inter-relacionam.”
Infelizmente, na dinâmica das atividades nas instituições espíritas, nega-se a convivência sobre os auspícios da tolerância, quando não se deserta da instituição, classifica-se o outro como obsediado.
Em um belo aforismo, Bernard Shaw (1856-1950) dramaturgo irlandês, afirma: “Não faças aos outros aquilo que não gostarias que fizessem a ti: eles podem não gostar.” A tolerância é assimétrica, ela não guarda relação com a Lei dos Profetas (Mt, 7:12).
A tolerância está inserta com muita intensidade na definição de caridade, na questão n.º 886, em o (L.E.): “Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”
A tolerância, apesar de tudo, é diferente de outras virtudes, ela tem limite, se não fosse assim, os intolerantes dominariam o mundo. Veja-se que já há um movimento mundial para se reagir a esses intolerantes que tentam destruir a democracia.
André Conte-Sponville (1952-1983), filósofo materialista francês, a esse respeito, considera que: “Ao contrário do amor ou da generosidade, que não têm limites intrínsecos e outra finitude além da nossa, a tolerância é então essencialmente limitada: uma tolerância infinita seria o fim da tolerância.”
E ele continua com uma advertência duríssima: “Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo com os intolerantes, e se não defendermos a sociedade tolerante contra seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados, e com eles a tolerância.”
Leonardo Boff nos incita de forma didática a uma compreensão didática da tolerância e deixa claro quando temos que agir com os intolerantes. Ele define a tolerância como ativa ou passiva. A ativa, é virtuosa. Diz ele: “Esta consiste na atitude de quem positivamente convive com o outro porque tem respeito por ele e aceita a riqueza multifacetada da realidade.”
Na passiva, necessita de atenção de todos, pois ela pode ser confundia com indiferença, pusilanimidade ou comodidade. São naqueles momentos que desviamos os olhares quanto aos sofrimentos de nossos irmãos, tal qual Jesus relata na “Parábola do Bom Samaritano” (Lc, 10:25-37).
Boff também nos convida a não sermos tolerantes com as agressões às questões climáticas.
Tome-se tento!
Referências:
BOFF, Leonardo. Virtudes para um outro mundo possível. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.
_____________. Obras póstumas. Brasília: FEB, 1987.
_____________. Revista espírita – maio 1869. Brasília: FEB, 2004.
MARIOTTI, Humberto. As paixões do ego. São Paulo: Palas Athenas, 2000.
Belo artigo!! Sugiro que seja publicado nas mais diversas plataformas digitai. A humanidade necessita urgentemente dessa reflexão
ResponderExcluirBrilhantismo texto. Muito bem fundamentado. Concordo que não devemos ser tolerantes com os intolerantes para salvarmos a tolerância.
ResponderExcluirGratidão pelos comentários. Vamos compartilhar! Jorge.
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