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HÁ EXPLICAÇÕES ESPIRITUAIS PARA A QUEDA DO VOO DA VOEPASS?¹

 

Por Dora Incontri

Lamento voltar a essa coluna, depois de um mês de férias, tocando num tema tão triste e delicado: a queda trágica do voo da VoePass em Vinhedo. Mas não posso deixar de comentar alguns pontos importantes, quando a comoção pública sempre acaba por puxar questões metafísicas e espirituais para tratar de desastres coletivos.

O assunto é sensível, porque a dor é tão absurda para aqueles que a estão vivendo, que se pode dizer que é quase um sacrilégio metermos a colher de ideias particulares no meio do sofrimento alheio. E isso acontece sobretudo com espíritas apressados e superficiais que geralmente vêm a público para dar “explicações” do ocorrido. Desta vez, tive a sorte de não ver ainda nenhuma especulação do tipo, como muitos costumam fazer, e trago logo um texto preventivo de tais disparates.

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Ocorre que no movimento espírita brasileiro há uma simplificação rasteira do que seria a tal da “lei de causa e efeito” ou em terminologia hindu, a “lei do karma”. Ou seja, o sofrimento individual ou coletivo é visto como uma espécie de resgate ou punição de algum malfeito em outras vidas. A releitura crítica que tenho feito de Kardec e das obras espíritas em geral, procura relativizar tal interpretação, entendendo muito mais as dores humanas como contingências de um mundo injusto, mal organizado, sujeito também por sua materialidade a catástrofes naturais ou provocadas – e vendo o sofrimento como aprendizagem, como forma de crescimento espiritual, ideia que também aparece nas obras kardequianas, em contraponto a uma concepção mais punitivista.

O pior é quando tais interpretações kármicas saem do domínio do genérico para serem aplicadas a casos concretos. Cai um avião, incendeia-se uma boate, há uma fome numa região do planeta ou uma certa população é bombardeada e logo se vai buscar uma causa no passado, para justificar o que aqueles seres humanos estão atravessando em destino de dor e tragédia. Com isso, exime-se muitas vezes da busca pela responsabilidade objetiva, presente, criminal mesmo, do evento analisado e as vítimas acabam ainda culpabilizadas… se morreram dessa maneira devem ter sido nazistas reencarnados, piratas saqueadores, criminosos de alguma espécie. Isso cheira a falta total de caridade, sensibilidade e respeito ao luto dos que ficaram e simplismo tosco na interpretação do processo reencarnatório.

Como alguém poderá fazer afirmações tão levianas e intrusivas, sem possuir nenhum tipo de evidência, apenas pelo simples prazer de especular e se projetar como pessoa que sabe decodificar os mistérios da existência?

Não, não sabemos se as pessoas que morrem num desastre coletivo estavam “destinadas” a morrer daquela forma, se estão revisitando algum fato passado ou se são simplesmente vítimas da incúria, da irresponsabilidade, da ganância criminosa de alguns, dentro de um sistema capitalista em que a lucro vale mais que a vida… Ocorre que se quer achar algum tipo de justiça divina entranhada nos fatos humanos. A maioria não se conforma em aceitar que o mundo é cheio de injustiças e elas não têm nada a ver com Deus. São apenas resultado de como (des)organizamos esse planeta.

Mas para que pode servir o espiritismo tratado de forma honesta, sensata e racional, como ele mesmo é, ou qualquer forma de espiritualidade saudável, benéfica e acolhedora? Justamente para oferecer um consolo, uma força real, na oração, na partilha com o outro e, sobretudo, na perspectiva da vida além desta vida. Perspectiva que no espiritismo é mais fortemente enraizada na mediunidade, mas que está presente em todas as formas de espiritualidade. A dor é enorme, o luto vai demorar para amainar, há muitas injustiças que permeiam nossas dores e nossos lutos nesse mundo, mas a vida se estende além e nossos amados continuam vivos, em comunhão conosco.

E mesmo essa oferta de consolação e transcendência que as tradições espirituais fazem – não se pode impô-la de forma invasiva e proselitista. Apenas estarmos ali, ao alcance dos que queiram encontrar algo nesse sentido. Cada qual deve buscar seus refúgios de alívio e, de preferência, também com terapias profissionais, além das fontes religiosas.

Fora isso, ficam minha empatia com as famílias enlutadas, minhas orações pelos que se foram e minha indignação pelos possíveis responsáveis por esta tragédia.

 

¹publicado originalmente no Jornal GGN, nesta data.

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