Pular para o conteúdo principal

BASES DA "FÉ CEGA"


Por Jerri Almeida

A fé abraâmica definiu profundamente o arcabouço teológico e psicológico das relações entre os homens e o “sagrado”. A rigor, devemos lembrar que Abraão é visto como uma figura importante para as três grandes religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, isto porque ele representa uma espécie de “encruzilhada” entre os vários povos. Paulo, por sua vez, argumentará que Abraão foi o “pai da fé”. (Romanos 4: v.16-19  e Gálatas 3: v.7)

            O contato entre Abraão e Javé (Yahveh), na alegoria bíblica, traduz uma relação, certamente, fundadora da fé baseada em quatros pilares fundamentais que constituíram grande influência na tradição do pensamento religioso, permanecendo até hoje: “revelação”, “temor” (Gn 22: 11-12), “submissão” e “fidelidade”. Essa lógica ensejou no Ocidente, principalmente durante o Medievo, a configuração de uma teologia do medo, aspecto que analisaremos oportunamente.

A revelação de um deus que se desvela muito parcialmente a um “escolhido” (Abraão), torna-o emissário de suas promessas (uma grande descendência e a terra de Canaã) e, por isso mesmo, propõe-lhe uma “aliança” ou uma relação de fidelidade. (LAMBERT, 2011 p. 371) Essa “fidelidade” estava baseada numa lógica de submissão e confiança ao poder divino. O contexto javista é, portanto, o da aliança estabelecida com Abraão. Inicia-se uma monolatria (fidelidade a deus) onde o patriarca hebreu apesar de não compreender certas determinações divinas, o exemplo mais claro é o sacrifício de Isaac, se preocupa em obedecê-las com total submissão.

Para Guy Lafon, analisando o fato abraâmico, a fé é a posse antecipada do que se espera, ou um meio de demonstrar certas realidades que não estão assim tão claras ou evidentes. Em suas palavras: “foi pela fé que Abraão, respondendo ao chamado, obedeceu e partiu para uma terra que devia receber como herança, e partiu sem saber para onde iria.” (LAFON, 1998 p. 60) Está presente nessa narrativa, portanto, uma “fé cega” depositada na promessa divina.  Submisso a essa “promessa”, sem nada mais precisar fazer além de crer, Abraão esperava os benefícios divinos.

Num segundo momento, no livro de Isaías (capítulos 40 a 56) podemos identificar a origem de um monoteísmo radical e de uma escatologia. Conhecido pelo nome de “Dêutero-Isaías” ou “segundo Isaías”, temos a introdução do monoteísmo javistico: “Eu sou o primeiro e o último, fora de mim não há deus.” (Isaías 44:6-45:18-22) E ainda: “Sim, sou deus e não há quem seja igual a mim.” (Isaías 46:9) Em relação ao pensamento escatológico, o texto assinala: “Voltai-vos para mim e sereis salvos, todos os confins da Terra, porque eu sou deus e não há nenhum outro.” (Isaías 45:22-56:1-7) A origem de um único deus e, pela sua onipotência, “salvador”, ensejaria uma mentalidade, por um lado, associada a um profetismo escatológico, e por outro, a um estímulo ao medo, como se percebe em Ageu (2:6), quando anuncia que Javé “abalará o Céu e a Terra, o mar e o continente.”

A narrativa bíblica possui uma racionalidade própria, com grande poder de representação. O problema, todavia, é quando esses elementos imagéticos, apropriados por certos grupos e povos, tornam-se verdades fechadas, vistas pelo viés da “letra”. Na medida em que a cultura escrita se proliferava, as tradições orais vão sendo apropriadas pela cultura do livro e, a “letra”, passa a ser um instrumento do “sagrado”: a “palavra de deus está escrita.”

A fé, com o tempo, assume um papel relevante nas estruturas religiosas institucionalizadas. A rigor, a “dúvida” deve ser anulada, pois se torna um instrumento desestabilizador, capaz de fomentar uma ruptura com a submissão ao sagrado. Saindo das tradições mitológicas hebraicas, e tocando rapidamente no pensamento filosófico, vamos identificar que a fé, quando mais elaborada é constituída a partir de um elemento inicial, que é a dúvida. A confiança, quando respaldada numa crença justificada pela razão, demonstra a superação relativa da própria dúvida. Assunto que trataremos com mais profundidade na segunda parte desse trabalho.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

DIA DE FINADOS À LUZ DO ESPIRITISMO

  Por Doris Gandres Em português, de acordo com a definição em dicionário, finados significa que findou, acabou, faleceu. Entretanto, nós espíritas temos um outro entendimento a respeito dessa situação, cultuada há tanto tempo por diversos segmentos sociais e religiosos. Na Revista Espírita de dezembro de 1868 (1) , sob o título Sessão Anual Comemorativa dos Mortos, na Sociedade Espírita de Paris fundada por Kardec, o mestre espírita nos fala que “estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos, para dar aos nossos irmãos que deixaram a terra, um testemunho particular de simpatia; para continuar as relações de afeição e fraternidade que existiam entre eles e nós em vida, e para chamar sobre eles as bondades do Todo Poderoso.”

O MEDO SOB A ÓTICA ESPÍRITA

  Imagens da internet Por Marcelo Henrique Por que o Espiritismo destrói o medo em nós? Quem de nós já não sentiu ou sente medo (ou medos)? Medo do escuro; dos mortos; de aranhas ou cobras; de lugares fechados… De perder; de lutar; de chorar; de perder quem se ama… De empobrecer; de não ser amado… De dentista; de sentir dor… Da violência; de ser vítima de crimes… Do vestibular; das provas escolares; de novas oportunidades de trabalho ou emprego…

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

ANÁLISE DA FIGUEIRA ESTÉRIL E O ESTUDO DA RELIGIÃO

                 Por Jorge Luiz            O Estudo da Religião e a Contribuição de Rudolf Otto O interesse pela história das religiões   remonta a um passado muito distante e a ciência das religiões, como disciplina autônoma, só teve início no século XIX. Dentre os trabalhos mais robustos sobre a temática, notabiliza-se o de Émile Durkheim, As Formas Elementares da Via Religiosa.             Outro trabalhos que causou repercussão mundial foi o de Rudolf Otto, eminente teólogo luterano alemão, filósofo e erudito em religiões comparadas. Otto optou por ser original e abdicou de estudar as ideias sobre Deus e religião e aplicou suas análises das modalidades da experiência religiosa. Ao fazer isso, Otto conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa experiência e negligenciou o lado racional e especulativo da religião, sempre...

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...