Pular para o conteúdo principal

“NEM TODO O QUE ME DIZ: ‘SENHOR! SENHOR!’”

 

Por Jorge Luiz

             O título do artigo, pinçado do evangelho de Mateus, 7:21, é um convite a se associar a palavra às atitudes, no cotidiano. Jesus, nessa passagem, deixa claro que não é o vínculo a essa ou àquela denominação religiosa que define a plenitude do indivíduo. O fundamental é a vinculação aos fundamentos éticos e morais que norteiam a Boa Nova.

            Vive-se no tempo em que a demagogia e a hipocrisia permeiam os espaços religiosos com amplas repercussões sociais e políticas. A sociedade brasileira, idêntica a um navio naufragado, segue ao sabor das ondas com destino incerto.

            Essa mesma sociedade, sincrética e atordoada, ouve aos quatro cantos do Brasil estertores vindos de púlpitos religiosos e políticos, seguidos de gestuais catatônicos e uma musicalidade terrorífica, sob a alegação de serem os escolhidos de Deus. Heresia à parte, associa-se, a tudo isso, crimes de todas as ordens, que com certeza, os íncubos e súcubos da Idade Média corariam de vergonha. Tudo isso sob a inspiração de Deus.

            Essas peripécias requisitam a frase célebre de Ralph Waldo Emerson (1803-1882), escritor, ensaísta e filósofo americano: “Suas atitudes falam tão alto que eu não consigo ouvir o que você diz.”

            Já o apóstolo Paulo, escrevendo à comunidade de Coríntios (14:7), recomenda: “Da mesma sorte, se as coisas inanimadas, que fazem som, seja flauta, seja cítara, não formarem sons distintos, como se conhecerá o que se toca na flauta ou na cítara? Ora, Paulo é didático. Se para as coisas inanimadas há essa exigência, imagine para os seres inteligentes da Criação (questão n.º 76, de O Livro dos Espíritos – L.E.)

            A realidade é que a mentira se instituiu nas sociedades como a pós-verdade, além de outros eufemismos que alimentam as redes sociais através de um neologismo importado do Tio Sam, conhecido por “fake news”; em outros momentos, “fatos alternativos”.

            No dia 28.05.2024, o Parlamento brasileiro, sob a liderança do conhecido “Centrão” (que de centro não tem nada), decidiu sob efusivas comemorações o veto à tentativa de se tipificar as “fake news” como crime de comunicação de massa, com pena de até cinco anos, se utilizadas para persuasão eleitoral, isso com apoio de parlamentares que representam congregações religiosas. O placar foi escandaloso para uma democracia. Na quarta-feira (29.05.2024), com certeza, houve, no Salão Negro do Congresso, um culto promovido pela Frente Parlamentar Evangélica, contrariando o conceito de Estado laico, louvando, sob cânticos, Senhor! Senhor! É a heteronomia que caracteriza as sociedades da cultura de massa. É a dissociação entre o falar e o agir, principalmente no processo da comunicação.

            Para essa situação esdrúxula do parlamento brasileiro, ao estudar o bem e o mal, Martin Buber (1878-1965) filósofo, escritor e pedagogo, austríaco e naturalizado isralense, considera que quem escolhe a mentira em vez da verdade, intervém com sua decisão diretamente nas decisões na luta do mundo. Mas, diz ele, isto produz efeito em primeiro lugar examente no seu ser: uma vez que se entregou à mentira do ser, portanto ao não-ser, que se arvora em ser, cai em poder dele (o senhor dos demônios). Portanto, não há nada a comemorar como visto no Congresso Nacional.

            Quem define muito bem esse sectarismo disfarçado de religião, denominado neopentecostalismo – aqui registro o respeito a todos os fiéis –, com destaque às principais lideranças, é o ativista francês, Félix Guattari (1930-1992):

“No Terceiro Mundo, como no mundo desenvolvido, são blocos inteiros da subjetividade coletiva que se afundam ou se encarquilham em arcaísmos, como é o caso, por exemplo, da assustadora exacerbação dos fenômenos de integrismo religioso”.

            O Brasil se encontra nesse labirinto de inverdades, associadas ao fanatismo e aos fundamentos religiosos retrógrados, onde a democracia se asfixia em pautas exclusivamente moralistas, de hábitos e costumes, em nome da tradição.

            Jesus fortalece o seu convite no título em outro momento (Mateus, 5:37), afirmando: “Seja o seu 'sim', 'sim', e o seu 'não', 'não'; o que passar disso vem do Maligno.” Jesus recomenda abandonar a heteronomia, quando se procura viver conceitos éticos que vêm de fora, e buscar a autonomia do pensar, ao se tratar os problemas éticos e morais derivados de dois condicionantes: 1) pensar por si mesmo em termos gerais e éticos; 2) alcançar independência interior suficiente para dirigir sua conduta conforme julgar correto frente às situações concretas.

            Em linhas gerais, o que se conclui é que se vive o fenômeno que David Bohm (1917-1992), físico estadunidense de posterior cidadania brasileira e britânica, diagnosticou como a “doença do pensamento”.

            Ora, ora, como os indivíduos, com as suas subjetividades contaminadas pela ideologia do capital, “fake news”, fanatismo e fundamentalismo religioso, negacionismo, obscurantismo, miséria, fome e sobrevivência, alcançarão a autonomia do pensar? Esse é o grande mal-estar da maior parte da sociedade brasileira, em detrimento do bem-estar de uma minoria que acumula riquezas dia a dia e vive nababescamente. Para alguns, a evolução do número de fiéis nas igrejas neopentecostais parte da busca de esperança na proteção divina, encontrada no acolhimento que essas crenças oferecem.

            Muito difícil para que se alcance a autonomia, que confesso, seria uma maneira de se promover uma revolução, a partir do modo de pensar para se superar esse estado de coisas. Quem fez isso com muita maestria foi o filósofo grego Sócrates (470 a.C - 399 a.C), que, quando preso, acusado de corromper a juventude ateniense, na véspera da sua morte, um dos amigos suplicou-lhe que aceitasse o plano de fuga elaborado. Porém, Sócrates replicou: “A única coisa que importa é viver é honestamente, sem cometer injustiças, nem mesmo a uma injustiça recebida.” Autonomia no pensar. Palavras e atitudes!

            Gurdjieff (1912-1949) místico e mestre espiritual greco-armênio que ensinou a filosofia do autoconhecimento profundo, elaborou uma doutrina muito singular acerca do conhecimento de si, recomendada na questão n.º 919 de o (L.E.). Para Gurdjieff, o indivíduo só pode aproximar-se da verdade se todas as partes que constituem o ser humano: o pensamento, o sentimento e o corpo, são tocadas com a mesma força e da única maneira que convém a cada uma delas, sem isto, o desenvolvimento continuará sendo unilateral e, mais cedo ou mais tarde, deverá deter-se. A partir desse processo, a vida passará a ser real, e a pessoa poderá afirmar “Eu sou”. Assim, plenifica-se, ganha autonomia. Seu sim, é sim; seu não, é não. Trocou o ter pelo ser.

         Senhor! Senhor!

 

Referências:

BUBER, Martin. Imagens do bem e do mal. Rio de Janeiro: Vozes, 1992;

GUATTARI, Félix. As três ecologias. São Paulo: Papirus, 1999.

GURDJIEFF, G. I. A vida só é real quando “eu sou”. São Paulo: Horus, 1975.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.

RIZZINI, Carlos T. Evolução para o terceiro milênio. Brasília: Edicel, 1990.

SÓCRATES. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

 

 

           

           

           

           

Comentários

  1. É uma questão importante, saber quem se é e o porquê. As verdades são múltiplas e as imposições também, então, como se autoconhecer em meio às turbulências do cotidiano. Eu sugiro que nunca percamos de busca compreender a realidade. Será ela que separará as verdades das mentiras.

    ResponderExcluir
  2. Olá, Valnei!
    Bom ver você por aqui. Com certeza. A lucidez espírita mps proporciona essas condições. Jorge Luiz.

    ResponderExcluir
  3. Leonardo Ferreira Pinto1 de junho de 2024 às 20:06

    Mais um ótimo texto Jorge . Um facho de luz sobre as trevas que aumentam com as mentiras. E sim, é melhor ser do que ter.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

ASTRÔNOMO DIZ QUE JESUS PODE TER NASCIDO EM JUNHO (*)

  Por Jorge Hessen Astrônomo diz que Jesus pode ter nascido em junho Uma pesquisa realizada por um astrônomo australiano sugere que Jesus Cristo teria nascido no dia 17 de junho e não em 25 de dezembro. De acordo com Dave Reneke, a “estrela de Natal” que, segundo a Bíblia, teria guiado os Três Reis Magos até a Manjedoura, em Belém, não apenas teria aparecido no céu seis meses mais cedo, como também dois anos antes do que se pensava. Estudos anteriores já haviam levantado a hipótese de que o nascimento teria ocorrido entre os anos 3 a.C e 1 d.C. O astrônomo explica que a conclusão é fruto do mapeamento dos corpos celestes da época em que Jesus nasceu. O rastreamento foi possível a partir de um software que permite rever o posicionamento de estrelas e planetas há milhares de anos.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O NATAL DE CADA UM

  Imagens da internet Sabemos todos que “natal” significa “nascimento”, o que nos proporciona ocasião para inúmeras reflexões... Usualmente, ao falarmos de natal, o primeiro pensamento que nos ocorre é o da festa natalina, a data de comemoração do nascimento de Jesus... Entretanto, tantas são as coisas que nos envolvem, decoração, luzes, presentes, ceia, almoço, roupa nova, aparatos, rituais, cerimônias etc., que a azáfama e o corre-corre dos últimos dias fazem-nos perder o sentido real dessa data, desse momento; fazem com a gente muitas vezes se perca até de nós mesmos, do essencial em nós... Se pararmos um pouquinho para pensar, refletir sobre o tema, talvez consigamos compreender um pouco melhor o significando do nascimento daquele Espírito de tão alto nível naquele momento conturbado aqui na Terra, numa família aparentemente comum, envergando a personalidade de Jesus, filho de Maria e José. Talvez consigamos perceber o elevado significado do sacrifício daqueles missionári...

TUDO MUDOU. E AS INSTITUIÇÕES?

  Por Orson P. Carrara Os de minha geração, nascidos nas décadas de 60 a 80 ou 90 e, claro, mesmo anteriores, lembram-se perfeitamente do formato de organização e funcionamento de uma padaria, de uma farmácia ou de um mercado, entre outros estabelecimentos comerciais. Hoje temos tais formatos completamente diferentes. O que antes era balcão único de atendimento mudou para prateleiras abertas, inclusive com auto atendimento para pagamento. Antes levávamos o pão para casa, hoje vamos à padaria tomar café para apreciar outras delícias. Farmácias normalmente eram reduzidas, hoje se multiplicaram com total mudança nos atendimentos, face às facilidades virtuais. Nem é preciso citar mais nada, todos estamos muito habituados às facilidades dos dias atuais.

DIVERSIDADE SEXUAL E ESPIRITISMO - O QUE KARDEC TEM A VER COM ISSO?

            O meio espírita, por conta do viés religioso predominante, acaba encontrando certa dificuldade na abordagem do assunto sexo. Existem algumas publicações que tentam colocar o assunto em pauta; contudo, percebe-se que muitos autores tentam, ainda que indiretamente, associar a diversidade sexual à promiscuidade, numa tentativa de sacralizar a heterocisnormatividade e marginalizar outras manifestações da sexualidade; outros, quando abrem uma exceção, ressaltam os perigos da pornografia e da promiscuidade, como se fossem características exclusivas de indivíduos LGBTQI+.

SOCIALISMO E ESPIRITISMO: Uma revista espírita

“O homem é livre na medida em que coloca seus atos em harmonia com as leis universais. Para reinar a ordem social, o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se nas mãos; do Espiritismo pode nascer o Socialismo idealista.” ( Arthur Conan Doyle) Allan Kardec ao elaborar os princípios da unidade tinha em mente que os espíritas fossem capazes de tecer uma teia social espírita , de base morfológica e que daria suporte doutrinário para as Instituições operarem as transformações necessárias ao homem. A unidade de princípios calcada na filosofia social espírita daria a liga necessária à elasticidade e resistência aos laços que devem unir os espíritas no seio dos ideais do socialismo-cristão. A opção por um “espiritismo religioso” fundado pelo roustainguismo de Bezerra Menezes, através da Federação Espírita Brasileira, e do ranço católico de Luiz de Olympio Telles de Menezes, na Bahia, sufocou no Brasil o vetor socialista-cristão da Doutrina Espírita. Telles, ao ...

A DOR DO FEMINICÍDIO NÃO COMOVE A TODOS. O QUE EXPLICA?

    Por Ana Cláudia Laurindo A vida das mulheres foi tratada como propriedade do homem desde os primevos tempos, formadores da base social patriarcal, sob o alvará das religiões e as justificativas de posses materiais em suas amarras reprodutivas. A negação dos direitos civis era apenas um dos aspectos da opressão que domesticava o feminino para servir ao homem e à família. A coroação da rainha do lar fez parte da encenação formal que aprisionou a mulher de “vergonha” no papel de matriz e destituiu a mulher de “uso” de qualquer condição de dignidade social, fazendo de ambos os papéis algo extremamente útil aos interesses machistas.