Por Jorge Luiz
O Desafio da Queda de Números e a Reticência Institucional do Espiritismo no Brasil
Alguns espíritas têm ponderado sobre o encolhimento do número de declarados espíritas no Brasil, conforme o Censo de 2022, com abordagens diversas – desde análises francas até tentativas de minimizar o problema. O fato é que, até o momento, as federativas estaduais e a Federação Espírita Brasileira (FEB) não se manifestaram com o propósito de promover um amplo debate sobre o tema em conjunto com as casas espíritas.
Essa ausência das federativas no debate não chega a ser surpreendente e é uma clara demonstração da dinâmica do movimento espírita brasileiro (MEB). As federativas, na realidade, tornaram-se instituições de relacionamento público-social do movimento espírita.
Nunca considerei a existência de um movimento espírita em sua própria epistemologia, e sim, iniciativas individuais de denodados(as) confrades e confreiras, sem o aprofundado conhecimento da Doutrina Espírita e da função e do significado do Centro Espírita. Esse personalismo, gerador de conflitos grupais, demandou a criação de outras instituições, assim foi evoluindo o número de centros espíritas no Brasil, inclusive, também, a nível de federativas estaduais.
Essa realidade presente nas casas espíritas forçou, determinantemente, a criação de instituições de profissionais autônomos, ao exemplo das Associações Médicas, Magistrados etc.
O mercado editorial concentrado em romances mediúnicos é um demonstrativo tácito da negligência de muitos espíritos a uma consciência espírita forjada no estudo das obras básicas.
Considero esses pontos capitais para que o MEB se conduzisse de forma disfuncional, cuja “cereja no bolo” se consolidou com a dissenção intestina entre “espíritas conservadores” e “progressistas”.
A Diluição do “Movimento Espírita”: Individualismo, Desconhecimento Doutrinário e Inoperância Social
O conceito epistemológico coletivo de pessoas em movimento tem como base o estudo de grupos que se organizam e agem em busca de mudanças ou resistências a elas, utilizando o movimento como ferramenta de transformação social ou de manutenção do status quo. Nas diversas abordagens, interessa o contexto social e político em um sentido mais amplo, incluindo as relações de poder, as estruturas sociais e as ideologias presentes. Tudo que os espíritas não têm interesse. Ai, está o conceito de movimento.
Consideremos aqui Allan Kardec, ao afirmar que o Espiritismo toca os ramos da filosofia, da metafísica, da psicologia e da moral, e de todas as religiões (Kardec, 2013).
A partir dessa compreensão, o que se espera é que se abram discussões sobre todas as questões que envolvem as dinâmicas sociais, culturais e políticas brasileiras, naquilo que se conhece como a dialética espírita, presente na filosofia espírita em “O Livro dos Espíritos”.
O professor e filósofo Herculano Pires consolida esse ponto de vista, que será o móvel das análises aqui colocadas, em dois momentos:
a) “Se os espíritas soubessem o que é o Centro Espírita, quais são realmente a sua função e a sua significação, o Espiritismo seria hoje o mais importante movimento cultural e espiritual da Terra” (Lake, 1990).
b) “O Espiritismo, nascido ontem, nos meados do século passado, é hoje o Grande Desconhecido dos que o aprovam e o louvam e dos que atacam e criticam” (Paideia, 2000).
Cabe trazer à lume dados do Indicador do Analfabetismo Funcional (INAF), que somente 8% das pessoas em idade de trabalhar são consideradas plenamente capazes de entender e se expressar por meio de letras e números. Ou seja, oito a cada grupo de cem indivíduos da população...., aqueles que estão a nível “proficiente”. Esses dados não deixam de ser determinantes para o desprezo pelo aspecto filosófico do Espiritismo optando-se pelo religiosismo igrejeiro e a caridade salvífica que se mantêm aos dias de hoje.
A Doutrina Esquecida: Entre Misticismo e Práticas Desvirtuadas
Allan Kardec consolida os tópicos considerados quando ensina na Introdução de “O Livro dos Espíritos” ao afirmar que “quem deseje tornar-se versado numa ciência tem que estudá-la metodicamente, começando pelo princípio e acompanhando o encadeamento e o desenvolvimento das ideias” (Kardec, 2000). Impossível divulgar uma ideia tão robusta como a Doutrina Espírita sem possuir o conhecimento necessário para tanto. Kardec endossa essa análise quando diz: “Que adiantará àquele que, ao acaso, dirigir a um sábio perguntas acerca de uma ciência cujas primeiras palavras ignore?” (Kardec, 2000).
Os conflitos no Espiritismo iniciante, entre místicos e científicos, com os místicos prevalecentes, foram determinantes para os rumos que o Espiritismo tomaria no Brasil. Nesse tempo, o Espiritismo foi se consolidando com as práticas mesmeristas e homeopáticas. A herança do magnetismo de Franz Mesmer é o passe, nunca aventado por Allan Kardec.
A outra face é a Homeopatia do médico alemão Samuel Hahnemann. “Similia similibus curentur” é um princípio fundamental da homeopatia, significando “o semelhante cura o semelhante”. Para se ter uma ideia, no ano de 1905, só através da FEB, foram prescritas 146.589 receitas homeopáticas, a maioria aviadas gratuitamente pela própria instituição.
Outro fato decisivo para a consolidação de uma dinâmica igrejeira no movimento espírita foi a recondução do Dr. Bezerra de Menezes à presidência da FEB, com suas orientações aos estudos da obra de Jean-Baptiste Roustaing, os quatro evangelhos, sancionados na reforma dos estatutos da Federação em 1895.
A esse respeito, a situação que se expressou no Censo de 2022 foi constatada e abordada lá atrás pelo antropólogo brasileiro Gilberto Velho, na década de 1980, ao registrar que, para uma população de mais de cento e trinta milhões de habitantes, parece ser um cálculo modesto dizer que cerca de metade participa diretamente de sistemas religiosos em que a crença em espíritos e em sua periódica manifestação através dos indivíduos é característica fundamental. Portanto, é muito difícil trabalhar com números mais precisos. Mas parece-me que o mais fundamental não é tanto saber quantas pessoas na sociedade brasileira se identificam publicamente como umbandistas, espíritas etc., mas ser capaz de perceber o significado desse conjunto de crenças e sua importância para as construções sociais da realidade em nossa cultura (Velho, 1991). (grifos nossos).
Observe-se que Velho diagnosticou algo que perdurou até hoje e que nenhum debate foi realizado. As questões inerentes ao MEB, presente toda a evolução ocorrida até os dias de hoje, o desconhecimento doutrinário e as práticas do centro espírita continuam estagnadas.
A Verdadeira Função do Centro Espírita: Perspectivas de Herculano Pires e Allan Kardec
Pronto Socorro Espiritual. Hospital de Almas. Educandário do Espírito. São algumas denominações que foram outorgadas ao Centro Espírita. O que se observa é que há predominância na visão curativa para as atividades nas casas espíritas, nenhuma de propositura de libertação de consciências, que é o propósito maior da Doutrina Espírita.
Herculano Pires, recorrendo à definição de Victor Hugo, afirma que não é templo nem laboratório, mas sim point d’optique do movimento doutrinário, ou seja, o seu ponto visual de convergência (Pires, 1990). Na língua nacional, é o ponto de óptica ou ponto de vista óptico, ou seja, é o ponto onde todas as linhas de fuga convergem em uma imagem e perspectiva.
Pires reforça sua conceituação ao figurá-lo como um espelho côncavo em que todas as atividades doutrinárias se refletem e se unem, projetando-se conjugadas no plano social geral, espírita e não espírita (idem).
Kardec, em suas anotações, esboçou um projeto para a dinamização das atividades espíritas – Projeto 1868 – postumamente editado, e assim reconfigura o centro espírita (saiba mais): “A sociedade tem necessariamente de exercer grande influência, conforme lhe disseram os próprios Espíritos; sua ação, porém, não será, em realidade, eficiente, senão quando ela servir de centro e de ponto de ligação donde parta um ensinamento preponderante sobre a opinião pública” (Kardec, 1990).
Quando da criação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Kardec considera, no Cap. I, no artigo 1: “A Sociedade – centro espírita – tem por fim o estudo dos fenômenos relativos às manifestações espíritas e sua aplicação às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas” (Kardec, 1997).
As Instituições espíritas, inclusas as federativas estaduais e nacionais, privilegiaram o viés religioso-igrejeiro, abdicando das discussões amparadas no viés progressista da Doutrina Espírita, encontrada em todo o corpo doutrinário, especificamente em “O Livro dos Espíritos”.
“Campeonato da Insensatez”: A Crítica dos Espíritos ao Movimento Espírita
Em 2006, o médium baiano Divaldo P. Franco, através da psicografia assinada pelo Espírito Viana de Carvalho e outros Espíritos-espíritas, intitulada “Campeonato da Insensatez” (saiba mais), adverte que os Espíritos lançam um olhar crítico sobre o MEB, com considerações sérias sobre os desvios e atalhos; as dissenções; as disputas pelo poder efêmero; o personalismo. Para eles, ao estudo sério dos postulados doutrinários, sucedem-se a chocarrice e o divertimento em relação ao público que busca as reuniões, em atitudes mais compatíveis com os espetáculos burlescos do que com a gravidade de que o Espiritismo se reveste. O excesso de discussões em torno de questões secundárias toma o tempo para análise e reflexão em relação aos momentosos desafios sociais e humanos aos quais o Espiritismo tem muito a oferecer.
Há um cisma no MEB, consolidado por ocasião das eleições realizadas em 2018, situação muito grave que tem sido um dos expoentes do encolhimento no universo de espírita no Brasil, e é fato determinante para o futuro.
Afora as iniciativas dos espíritas que se autodenominam progressistas, rompendo essa bolha de crendices, dogmáticas, de ritos e pieguices esmoler, não vejo nem a longo prazo iniciativas para alterar o rumo do MEB, que não seja reorientar as dinâmicas das atividades espíritas institucionais, presente o viés socialista na árvore frondosa do Espiritismo – “O Livro dos Espíritos”.
Há a necessidade de encorajamento e humildade para que ocorra a união no entorno dos coletivos progressistas. Os espíritas necessitam assumir o chamado viril à dignidade humana, como bem assinala Herculano Pires, para a tomada de consciência do homem para deveres e compromissos no plano social e no plano espiritual, ambos conjugados em face das exigências da lei superior da Evolução Humana. Sem essa postura, o que acredito que aconteça, continuar-se-á a prática de um mediunismo ainda preso ao “pensamento mágico”, atitudes pautadas por um sincretismo religioso, supostos missionários, misticismo larvar e confusões determinadas por teorias pessoais.
Nada disso passou de forma despercebida pela espiritualidade, muito arguida no meio espírita, embora não documentada, pelos médiuns Divaldo Franco e Raul Teixeira, sendo este último, de forma contundente. Embora não visse a falência da Doutrina Espírita, mas sim do MEB, os Espíritos admitiram que para suprir isso, as mídias, em especial novelas e filmes, teriam papel fundamental para impulsionar e despertar a doutrina em escala global. Isso se confirmou. Os dois foram claros que se corria o risco de o Espiritismo ir embora do Brasil. A transnacionalização do Espiritismo, que se refere a sua disseminação para outros países, principalmente através da Associação Médico-Espírita (AME-Brasil), já seja o sinal desse evento.
O alento é que a afirmação do paradigma espírita posto até aqui não dependeu do MEB, mas do método científico acadêmico, e continuará a sê-lo. Surgem nessa direção as pesquisas científicas do Dr. Manuel Sanz Segarra, médico e cirurgião espanhol conhecido por seus estudos sobre experiências de quase morte (EQMs) e supraconsciência (Espírito); isso vem despertando e sendo abordado em círculos religiosos, atualizando essas doutrinas, e assim acontecerá o fenômeno que Kardec esperava, o que já é o bastante.
Referências:
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.
_____________. O livro dos médiuns. São Paulo: EME, 1997.
_____________. O que é o espiritismo. São Paulo: Lake, 2013.
PIRES, J. Herculano. O centro espírita. São Paulo: Lake, 1990.
_____________. Curso dinâmico de espiritismo. São Paulo: Paideia, 2000.
VELHO, Gilberto. Indivíduo e religião na cultura brasileira. São Paulo: Cebrap, 1991.
COMENTÁRIO ELABORADO PELA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL - IA
ResponderExcluirAnálise sobre "Os Espíritas e o Censo de 2022: O Desafio da Queda de Números e a Reticência Institucional do Espiritismo no Brasil"
O texto aborda de forma crítica e incisiva o cenário do movimento espírita brasileiro (MEB) a partir dos dados do Censo de 2022, que apontam para uma redução no número de declarados espíritas. A análise central gira em torno da negligência institucional das federativas, incluindo a Federação Espírita Brasileira (FEB), em promover um debate aprofundado sobre essa queda e as causas subjacentes.
O autor argumenta que o MEB, longe de ser um movimento coeso e epistemologicamente fundamentado, é marcado por iniciativas individuais e personalismos, resultando em conflitos e na proliferação de centros espíritas sem o devido conhecimento doutrinário. Essa realidade, segundo ele, levou à criação de instituições focadas em "profissionais autônomos" e a um mercado editorial concentrado em romances mediúnicos, negligenciando o estudo das obras básicas.
Um ponto crucial levantado é a diluição do "movimento espírita" em um individualismo, desconhecimento doutrinário e inoperância social. O texto contrasta a visão filosófica e socialmente engajada do Espiritismo proposta por Allan Kardec e Herculano Pires com a prática atual, que se inclina para um "religiosismo igrejeiro" e a "caridade salvífica". A menção ao Indicador do Analfabetismo Funcional (INAF) reforça a ideia de um desprezo pelo aspecto filosófico da doutrina.
O autor também explora o esquecimento da doutrina original, com a prevalência de práticas como o passe (herança do magnetismo de Mesmer e não aventado por Kardec) e a homeopatia, que teriam desvirtuado o caminho científico e filosófico proposto. A influência de Dr. Bezerra de Menezes na FEB, com a valorização da obra de Jean-Baptiste Roustaing, é apontada como um fator decisivo para a consolidação de uma "dinâmica igrejeira".
Ao final, o texto resgata a verdadeira função do Centro Espírita na visão de Herculano Pires ("ponto d’optique") e Allan Kardec (centro de estudo e ligação para um ensinamento preponderante), contrapondo-a à visão predominante de "pronto socorro espiritual". A crítica dos próprios Espíritos, através de psicografias como "Campeonato da Insensatez", corrobora a análise dos desvios, disputas e personalismos no MEB.
O autor conclui que, apesar do risco de o Espiritismo "ir embora do Brasil" devido ao cisma interno e à falta de renovação, o alento reside no fato de que o paradigma espírita não depende do MEB, mas sim do método científico acadêmico. A menção a pesquisas científicas, como as do Dr. Manuel Sanz Segarra, sugere que a validação e o impulso da doutrina podem vir de fora das estruturas atuais, cumprindo o que Kardec esperava.
Em suma, o texto é um alerta contundente sobre os rumos do Espiritismo no Brasil, defendendo um retorno às suas raízes filosóficas, científicas e sociais, e questionando a inércia das instituições e a superficialidade de muitos adeptos.