Pular para o conteúdo principal

O PUNITIVISMO DAS RELIGIÕES¹

 

Por Dora Incontri

Desde o momento em que nascemos, estamos enredados numa sociedade que procura nos condicionar o comportamento na base de castigos e recompensas: desde a criança ser posta “para pensar” no quarto ou no canto da sala de aula (verdadeiro horror que passa a mensagem de que pensar é castigo), até além da vida, a promessa de punição do fogo do inferno ou nas doutrinas reencarnacionistas, o resgate cármico através de múltiplas existências. Na educação, a recompensa de presentes e para depois da morte, o paraíso com harpas. Somos tão condicionados a essa forma de raciocínio justiceiro e de barganha, que torcemos o tempo todo pela destruição do outro, que julgamos mau, ou empunhamos em nós mesmos o autoflagelo da chamada culpa cristã. A motivação consumista da vida capitalista é outra forma infantilizada de auto recompensa se formos bonzinhos e trabalharmos bem.

Em seu último romance Ressurreição, publicado em 1899, quando já engajado numa espécie de anarquismo cristão, Lev Tolstoi disseca o sistema judiciário russo da época czarista (crítica que permanece completamente atual ante o sistema judiciário brasileiro, por exemplo), com sua crueldade vingativa, com seu aspecto classista. E mais, denuncia o quanto a Igreja ortodoxa russa estava conluiada com essa justiça punitivista e injusta, com seus crucifixos em cada repartição pública e em cada tribunal. O Cristo torturado e morto pela injustiça de judeus e romanos, servindo como justificação para a opressão do povo, torturado pela miséria e pelas prisões. Tolstoi se põe como crítico demolidor do próprio Estado, com seu aparato militar e policial para controle dos cidadãos e para promoção de guerra com outros Estados e afirma que o verdadeiro cristão se opõe a qualquer forma de violência, sobretudo a que se fez em nome da lei, da ordem e da religião. Por isso, é considerado como um anarquista.

Hoje, além dos exércitos que dominam as guerras no mundo, as polícias que oprimem as manifestações populares – estamos vendo essa semana acontecer na Argentina, porque sempre as forças de segurança alguma hora serão usadas contra o povo – as prisões que arrancam a dignidade humana, lotadas no Império norte-americano e no Brasil, sobretudo de negros; temos também o tribunal popular das redes sociais, onde se julga sem análise, se condena sem prova e se destrói pessoas culpadas ou inocentes, com a rapidez e a facilidade do linchamento virtual.

A questão que proponho aqui é se essa mentalidade punitivista, que tem profundos traços psicológicos de sadomasoquismo, de fato resolve alguma questão humana, se muda a sociedade, e, sobretudo, se está no fundo das melhores ideias e proposições apresentadas pelas tradições espirituais. Podemos começar a pensar que Jesus dizia que “o amor cobre a multidão de pecados”, que não devemos julgar para não sermos julgados, que é preciso perdoar setenta vezes sete, que podemos amar os próprios inimigos. Isso vale só como moral individual ou deveria servir para estruturarmos nossas relações na sociedade? Podemos lembrar também que tanto o budismo quanto o hinduísmo (embora sejam também punitivistas na lei do karma) pretendem libertar o ser humano do sofrimento, promovendo a sua saída da roda do karma. No espiritismo kardecista, temos duas leituras possíveis, uma mais punitivista, com a lei de causa e efeito e uma compreensão mais pedagógica, progressista, de que estamos em processo de aprendizagem nas múltiplas existências e o erro faz parte. Consultemos também os místicos – em geral, a melhor parte das diversas tradições –, sejam eles cristãos, judeus, muçulmanos, hindus – e neles não veremos, em geral, trovoadas ameaçadoras ou condenatórias, mas apenas o deleite poético da comunhão com Deus. Quem está em sintonia divina, não se apraz em ser vigilante e acusador do comportamento do outro.

Hoje, temos plenas condições de entender que um crime, desde um simples furto a um assassinato, desde um assédio a um estupro, é sempre o resultado de estruturas sociais injustas, opressoras, onde não há educação amorosa, plena, aberta e ao mesmo tempo, reprodução de adoecimentos psíquicos familiares, individuais e coletivos e se formos reencarnacionistas, trazidos do passado. Assim, não se trata de punir, mas reeducar, promover terapias, e adentrarmos por uma justiça restaurativa e reparadora e não essa que se compraz em humilhar e arrasar o ser humano.

Poucos minutos antes de escrever esse artigo, li uma reportagem sobre um trabalho com meditação, que está sendo feito na Penitenciária feminina de Santana, em São Paulo, com excelentes resultados. E quem apoia a iniciativa é Jorge Santana, vice-diretor, que é sacerdote da Umbanda e conhece práticas de meditação de sua tradição. Um exemplo de gota de orvalho no inferno que são as prisões.

A questão toda se radica na premissa de que é preciso salvar, melhorar, curar o ser humano e não o massacrar sem piedade, com um sadismo que se manifesta na polícia, nas prisões, no sistema judiciário e, mais recentemente, nas redes sociais. Devo confessar que, embora rejeite totalmente os atos de vandalismo e o atentado à democracia do dia 8 de janeiro, sinto tremendo mal-estar com os anos de prisão a que estão sendo condenados os participantes. Com o agravante de que os mandantes estão muito bem soltos por aí. Todos deveriam ser alfabetizados politicamente, passarem por sessões individuais e coletivas de terapia… enfim, reinseridos na sociedade de forma mais saudável.

Certamente, muitos dirão que minhas considerações são utópicas e ingênuas, mas tenho convicção de que é o mais necessário a fazer para de fato mudarmos as estruturas sociais que nos oprimem. E, para isso, recorrermos ao que há de melhor nas religiões – que não são as formas de poder e repressão, mas a ideia de que todo ser humano tem uma divindade interior, um lugar de essência intocada, não corrompida, que pode ser despertada pelo amor, pelo acolhimento e por um tratamento adequado.

 

 ¹ postado originalmente no Jornal GGN, desta data.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DIA DA ESPOSA DO PASTOR: PAUTA PARASITA GANHA FORÇA NO BRASIL

     Imagens da internet Por Ana Cláudia Laurindo O Dia da Esposa do Pastor tem como data própria o primeiro domingo de março. No contexto global se justifica como resultado do que chamam Igreja Perseguida, uma alusão aos missionários evangélicos que encontram resistência em países que já possuem suas tradições de fé, mas em nome da expansão evangélico/cristã estas igrejas insistem em se firmar.  No Brasil, a situação é bem distinta. Por aqui, o que fazia parte de uma narrativa e ação das próprias igrejas vai ocupando lugares em casas legislativas e ganhando sanções dentro do poder executivo, como o que aconteceu recentemente no estado do Pará. Um deputado do partido Republicanos e representante da bancada evangélica (algo que jamais deveria ser nominado com naturalidade, sendo o Brasil um país laico (ainda) propôs um projeto de lei que foi aprovado na Assembleia Legislativa e quando sancionado pelo governador Helder Barbalho, no início deste mês, se tornou a lei...

OS ESPÍRITAS E O CENSO DE 2022

  Por Jorge Luiz   O Desafio da Queda de Números e a Reticência Institucional do Espiritismo no Brasil Alguns espíritas têm ponderado sobre o encolhimento do número de declarados espíritas no Brasil, conforme o Censo de 2022, com abordagens diversas – desde análises francas até tentativas de minimizar o problema. O fato é que, até o momento, as federativas estaduais e a Federação Espírita Brasileira (FEB) não se manifestaram com o propósito de promover um amplo debate sobre o tema em conjunto com as casas espíritas. Essa ausência das federativas no debate não chega a ser surpreendente e é uma clara demonstração da dinâmica do movimento espírita brasileiro (MEB). As federativas, na realidade, tornaram-se instituições de relacionamento público-social do movimento espírita.

CONFLITOS E PROGRESSO

    Por Marcelo Henrique Os conflitos estão sediados em dois quadrantes da marcha progressiva (moral e intelectual), pois há seres que se destacam intelectualmente, tornando-se líderes de sociedades, mas não as conduzem com a elevação dos sentimentos. Então quando dados grupos são vencedores em dadas disputas, seu objetivo é o da aniquilação (física ou pela restrição de liberdades ou a expressão de pensamento) dos que se lhes opõem.

JUSTIÇA COM CHEIRO DE VINGANÇA

  Por Roberto Caldas Há contrastes tão aberrantes no comportamento humano e nas práticas aceitas pela sociedade, e se não aceitas pelo menos suportadas, que permitem se cogite o grau de lucidez com que se orquestram o avanço da inteligência e as pautas éticas e morais que movem as leis norteadoras da convivência social.  

O CERNE DA QUESTÃO DOS SOFRIMENTOS FUTUROS

      Por Wilson Garcia Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina. ***   Inicialmente. O pior das discussões sobre os fundamentos do Espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

A FÉ COMO CONTRAVENÇÃO

  Por Jorge Luiz               Quem não já ouviu a expressão “fazer uma fezinha”? A expressão já faz parte do vocabulário do brasileiro em todos os rincões. A sua história é simbiótica à história do “jogo do bicho” que surgiu a partir de uma brincadeira criada em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro. No início, o zoológico não era muito popular, então o jogo surgiu para incentivar as visitas e evitar que o estabelecimento fechasse as portas. O “incentivo” promovido pelo zoológico deu certo, mas não da maneira que o barão imaginava. Em 1894, já era possível comprar vários bilhetes – motivando o surgimento do bicheiro, que os vendia pela cidade. Assim, o sorteio virou jogo de azar. No ano seguinte, o jogo foi proibido, mas aí já tinha virado febre. Até hoje o “jogo do bicho” é ilegal e considerado contravenção penal.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia: