terça-feira, 6 de junho de 2023

EDIÇÕES ANTIRRACISTAS DAS OBRAS DE KARDEC - O QUE PENSAR?¹

 

 

Por Dora Incontri

Nesta semana, dia 18 de abril, foi publicada a segunda obra de Kardec, O Livro dos Espíritos numa edição antirracista, depois de no ano passado, ter sido lançado O Evangelho segundo o espiritismo, com esse mesmo subtítulo. Apresso-me a escrever esse artigo, para me contrapor às críticas raivosas (e até caluniosas) que estão sendo feitas a estas publicações, mesmo por espíritas que se afirmam progressistas.

Como todos sabem, sou da linhagem kardecista-herculanista e, portanto, jamais apoiaria qualquer coisa que viesse a ferir os princípios fundamentais do espiritismo – entretanto, são trechos mesmos das obras de Kardec que ferem esses princípios. E, como ele mesmo recomendou, é preciso usar o bisturi da crítica para limpar o espiritismo de ideias que pertenciam ao contexto histórico, europeu (leia-se eurocentrista), colonialista e racista que fazia parte da estrutura da sociedade em que ele viveu, atuou e foi influenciado por essas correntes.

Qualquer leitor contemporâneo, minimamente progressista e conectado com os problemas de racismo estrutural que observamos na sociedade brasileira e mundial, sente sucessivos incômodos na leitura das chamadas obras básicas de Kardec. O tempo inteiro há uma hierarquização de “raças”–termo que caiu em desuso, porque hoje consideramos que só existe uma raça, a humana. “Raças selvagens, primitivas”, entre elas estão negros, nativos de outras regiões do planeta, ou seja, aqueles que não pertencem ao “topo da civilização”, branca, europeia. Assim pensavam todos os europeus do século XIX. Assim pensava Kardec, assim pensavam os médiuns que com ele trabalhavam, assim pensavam muitos espíritos, que embora com algum conhecimento espiritual, ainda estavam impregnados dos preconceitos terrenos (coisa que também o próprio Kardec recomenda analisar).

Como a nossa história está manchada pela escravização e genocídio dos povos de origem africana e dos povos originários das Américas, e como o extermínio e a discriminação ainda estão dolorosamente vivos em nosso país do século XXI, essas teses de hierarquia racial, que eram consideradas científicas no século XIX, nos constrangem tremendamente e, claro, desrespeitam e ferem os negros, indígenas e todas as pessoas sensíveis a essa temática.

Em 2008, o Ministério Público da Bahia já chamou atenção para trechos das obras de Kardec que sugeriam discriminação e racismo e 9 editoras espíritas, entre elas a FEB, assinaram um compromisso de publicarem notas de contextualização dessas passagens. Alguém já viu essas notas? Mesmo existindo, estão escondidas, envergonhadas. Aliás, ninguém lê nota de rodapé.

Mas o tema exige debate, reparação histórica, atenção de todos e todas, para que o racismo não continue se perpetuando na sociedade brasileira, incluindo-se os centros espíritas, majoritariamente dirigidos por uma elite branca (e recentemente em grande parte de extrema-direita, com quase nenhuma sensibilidade social).

Então, sim, é preciso que se faça uma edição estampada na capa, como antirracista, é preciso que os comentários às passagens problemáticas saiam de um lugar imperceptível para um foco mais nítido. As duas edições feitas pelo Coletivo Espíritas à Esquerda têm exatamente essa intenção, e fazem isso sem nenhuma adulteração do texto original.

Cito o impecável prefácio, que está na presente publicação do Livro dos Espíritos:

 “…o objetivo primacial do projeto da Coleção Antirracista de Kardec é a reparação do sofrimento que negras e negros vivem diariamente nas instituições espíritas, quando, em seus grupos de estudos, palestras e eventos, deparam-se com as passagens racistas da literatura espírita que os diminui, humilha e violenta. E, como consequência dessa forma historicamente racista de entender as diferenças étnicas e culturais, negras e negros costumam, na maioria das instituições espíritas, participar apenas como subalternos, coadjuvantes, apoio às atividades operacionais e principalmente como beneficiários de obras assistencialistas, sendo raro vê-los ocupando cargos de direção nessas instituições. E esse projeto, portanto, é também, além de uma proposta de reparação, uma forma de estimular e instrumentalizar todas as pessoas para o debate antirracista dentro do movimento espírita, considerando as consequências do racismo institucional nele presentes.”

E mais adiante, sem jogar o bebê junto com a água suja, o prefácio ainda afirma que os erros históricos que devemos corrigir e criticar não invalidam o espiritismo como um todo, mesmo porque o que deve prevalecer é a proposição ética da fraternidade humana.

“Se já se admite no movimento espírita os erros de cosmologia e biologia de suas obras, conforme prescrição do próprio Kardec sobre a evolução do conhecimento espírita, é nossa obrigação reconhecer os fragmentos racistas em seus textos. Tais erros históricos não desmerecem toda a doutrina espírita, pois os princípios do espiritismo expostos em seus textos, quando bem compreendidos e praticados, destruirão “os estúpidos preconceitos de cor” (o que está entre aspas é citação de Kardec).”

Diante disso, não consigo entender por que a oposição agressiva de alguns espíritas, comparando indevidamente essa edição antirracista à adulteração feita no Evangelho segundo o Espiritismo por alguns membros da Federação Espírita do Estado de São Paulo, na década de 70, do século passado, e que foi, com toda justiça, combatida por Herculano Pires. Aquela era de fato uma mudança nos textos de Kardec – aliás, por sugestão de Chico Xavier, que foi chamado por Herculano a vir a público pedir desculpas e se desdizer. E era uma mudança absolutamente tosca. Por exemplo, ao invés de se usar a expressão “espíritos maus”, mudava-se para “espíritos menos bons”. Não se tratava de um debate social e político urgente como o racismo. (Toda essa história está no livro Na Hora do Testemunho, de Herculano Pires.)

O mais grave de todo esse episódio atual é que a gritaria em torno da edição antirracista foi tão grande, que muita gente veio me dizer que as obras de Kardec estão sendo modificadas. Ficou essa mentira no ar. Por isso também resolvi escrever esse texto.

E parabenizo o Coletivo Espíritas à Esquerda, com quem a Associação Brasileira de Pedagogia Espírita tem feito várias parcerias, pela coragem, pelo bom senso e por atender uma das muitas urgências que temos, para uma releitura crítica e serena das obras de Kardec.

 

¹Artigo originalmente publicado no site da associação brasileira de pedagogia espírita.

 

Um comentário:

  1. Dora e sua lúcida avaliação , sua criticidade sempre lógica e elegante. Doris Madeira Gandres.

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