Pular para o conteúdo principal

ARES DE RENOVAÇÃO

 

 

Por Jerri Almeida

Durante a pandemia – mas é preciso observar que esse é um fenômeno que vem se expandindo e, portanto, é bem anterior a ela – houve um visível crescimento dos coletivos espíritas [1] na internet. Grupos não necessariamente institucionalizados ganharam visibilidade no período de isolamento social, entre 2019-2020, produzindo Lives com qualidade e profundidade de conteúdos, preocupados em analisar não apenas aspectos metafísicos mas, também, questões sociais, políticas e culturais à luz da filosofia espírita.

Dessa forma, muitos grupos, associações e coletivos espíritas passaram a contribuir nos meios digitais com o debate sobre uma sociedade mais humana e inclusiva, pois o espiritismo não deve ficar alheio aos grandes desafios de nossa época. Não deveríamos reduzi-lo, exclusivamente, ao campo da metafísica, das discussões sobre imortalidade da alma, reencarnação, comunicabilidade com os espíritos, por exemplo. Obviamente, estes assuntos são substanciais e fazem parte indiscutível da natureza, princípios e da própria epistemologia espírita. A partir destas perspectivas fundamentais é preciso ir além, estabelecendo diálogos transversais e multidisciplinar com outras áreas do conhecimento.

É perceptível um crescimento talvez nunca antes visto com tanta intensidade, de espíritas livre pensadores, muitos laicos, progressistas, que romperam com o movimento espírita tradicional, federativo, religioso, retrógrado. Há uma busca pela superação dos ícones sagrados, do dogmatismo febiano, do igrejismo e das verdades absolutas.

Pesquisadores espíritas e livres-pensadores, têm contribuído para fomentar e expandir o debate sobre inúmeros temas, seja discutindo, entre outros, os fundamentos para uma teoria social espírita (Lindemberg, Luiz Gustavo, Signates), trazendo Kardec para o século 21 (Dora Incontri), apresentando elementos para uma teoria espírita de gênero (Alexandre Junior), o certo é que o espiritismo no Brasil retoma uma perspectiva dialética, de resgate dos escritos de Kardec sem, no entanto, sacralizá-los ou tê-los como critério único de verdade.

Bastaria atentarmos para os próprios textos de Kardec para percebermos que o espiritismo, por sua natureza progressista, livre-pensadora, racionalista, humanista, não pretende ser o portador exclusivo da verdade. Trata-se, portanto, de uma filosofia que, pelo seu dinamismo, pode e deve dialogar com outros saberes. Cabe aos estudiosos, ou aos adeptos desta doutrina, apresentar suas contribuições para o debate sobre uma visão profunda do ser humano, da sociedade e do progresso, abrindo-se, ao mesmo tempo, para os contributos dos conhecimentos historicamente elaborados. 

Temerosos ou puristas, os espíritas tradicionais argumentam que é preciso manter a “pureza doutrinária” do espiritismo, fechando-o – ao contrário do que pensava e escreveu Kardec – em verdades prontas, reveladas e totalizantes. Vale, aqui, lembrarmos o manifesto de Nuccio Ordine:

“Nenhuma religião e nenhuma filosofia poderão jamais reivindicar a posse de uma verdade absoluta, válida para todos os seres humanos. Crer que se possui uma só e única verdade significa sentir-se no dever de a impor, também, à força, para o bem da humanidade. O dogmatismo produz intolerância em todos os campos do saber: no plano ético, religioso, político, filosófico e científico.” [2]

E, segue em sua lúcida observação:

“Desse modo, quem está certo de possuir a verdade não a precisa procurar, não sente a necessidade de dialogar, de escutar o outro, de se confrontar de modo autêntico com a pluralidade e com o múltiplo. Somente quem ama a verdade a procura continuamente. E é por isso que a dúvida não é inimiga da verdade, mas permanente estímulo para a sua busca.” [3]

Nenhuma ciência, filosofia ou qualquer outra área do conhecimento basta-se a si mesma. No mundo cada vez mais complexo em que vivemos, o conhecimento se produz através de interações e de trocas. O diálogo com outros saberes não prejudicará, nem mesmo porá riscos aos princípios e fundamentos do espiritismo. Pelo contrário, tornará o pensamento espírita sempre atualizado, consentâneo aos novos tempos e com os dilemas de cada época.

 

 

NOTAS

[1] IFEHP (Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires), Ágora Espírita, ECK (Grupo Espiritismo com Kardec), Coletivo Maria Felipa, CEPABrasil (Associação Espírita Internacional), Fronteiras do Pensamento Espírita, para citar apenas alguns.

[2] ORDINE, Nuccio. A utilidade do Inútil. Um manifesto. p. 173.

[3] Idem.

Comentários

  1. Boas reflexões; esperemos q esses "ares de renovação" venham a atingir o meio espírita conservador e comodista. Doris Madeira Gandres.

    ResponderExcluir
  2. Importantes reflexões! O conhecimento é dinâmico e ativo. Ninguém pode detê-lo sem a abertura para o debate e para novas pesquisas.
    Na sua codificação, o espiritismo recebeu contribuições as mais variadas e isso não foi motivo de descrença. Sigamos estudando e enriquecendo os seres humanos de conhecimento, pois isso é fé raciocinada.

    ResponderExcluir
  3. Bom texto! É pena que o pensamento crítico-reflexivo não faça parte do cotidiano da maiorria dos brasileiros, situação que tem impacto direto no saber-fazer espírita em nosso país.

    ResponderExcluir
  4. devemos refletir sobre o real sentido da filosofia; espero o dia no qual surgirão novas pesquisas, como as fez Kardec! Médiuns, Espíritos, critérios tais que poderão produzir novas respostas, de acordo com os novos estilos de convivência e vivência dos seres encarnados.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

A ESTUPIDEZ DA INTELIGÊNCIA: COMO O CAPITALISMO E A IDIOSSUBJETIVAÇÃO SEQUESTRAM A ESSÊNCIA HUMANA

      Por Jorge Luiz                  A Criança e a Objetividade                Um vídeo que me chegou retrata o diálogo de um pai com uma criança de, acredito, no máximo 3 anos de idade. Ele lhe oferece um passeio em um carro moderno e em um modelo antigo, daqueles que marcaram época – tudo indica que é carro de colecionador. O pai, de maneira pedagógica, retrata-os simbolicamente como o amor (o antigo) e o luxo (o novo). A criança, sem titubear, escolhe o antigo – acredita-se que já é de uso da família – enquanto recusa entrar no veículo novo, o que lhe é atendido. Esse processo didático é rico em miríades que contemplam o processo de subjetivação dos sujeitos em uma sociedade marcada pela reprodução da forma da mercadoria.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

A CIÊNCIA DESCREVE O “COMO”; O ESPÍRITO RESPONDE AO “QUEM”

    Por Wilson Garcia       A ciência avança em sua busca por decifrar o cérebro — suas reações químicas, seus impulsos elétricos, seus labirintos de prazer e dor. Mas, quanto mais detalha o mecanismo da vida, mais se aproxima do mistério que não cabe nos instrumentos de medição: a consciência que sente, pensa e ama. Entre sinapses e neurotransmissores, o amor é descrito como fenômeno neurológico. Mas quem ama? Quem sofre, espera e sonha? Há uma presença silenciosa por trás da matéria — o Espírito — que observa e participa do próprio enigma que a ciência tenta traduzir. Assim, enquanto a ciência explica o como da vida, cabe ao Espírito responder o quem — esse sujeito invisível que transforma a química em emoção e o impulso biológico em gesto de eternidade.

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

RECORDAR PARA ESQUECER

    Por Marcelo Teixeira Esquecimento, portanto, como muitos pensam, não é apagamento. É resolver as pendências pretéritas para seguirmos em paz, sem o peso do remorso ou o vazio da lacuna não preenchida pela falta de conteúdo histórico do lugar em que reencarnamos reiteradas vezes.   *** Em janeiro de 2023, Sandra Senna, amiga de movimento espírita, lançou, em badalada livraria de Petrópolis (RJ), o primeiro livro; um romance não espírita. Foi um evento bem concorrido, com vários amigos querendo saudar a entrada de Sandra no universo da literatura. Depois, que peguei meu exemplar autografado, fui bater um papo com alguns amigos espíritas presentes. Numa mesa próxima, havia vários exemplares do primeiro volume de “Escravidão”, magistral e premiada obra na qual o jornalista Laurentino Gomes esmiúça, com riqueza de detalhes, o que foram quase 400 anos de utilização de mão de obra escrava em terras brasileiras.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...