domingo, 24 de julho de 2022

HUMANOS, ESPÍRITOS, HUMANOS!

 

Por Jerri Almeida

Há milhares de anos, abandonamos as cavernas e a vida nômade de coletores-caçadores, para adentrarmos no mundo da cultura, das representações, dos códigos de escrita, da comunicação e da urbanização. Em sua longa jornada no planeta Terra, o homo sapiens se defronta com a morte, com a insegurança e com inúmeras incertezas. Portador de afetividade, o Sapiens é um ser que sorri, sofre, chora, é imaginativo, violento, esperto, engenhoso, criativo, amante, egoísta, solidário, capaz de alimentar ilusões e projetos ambiciosos. Como dizia Sófocles: “Não existe nada mais maravilhoso-apavorante que o homem.” [1] A história da filosofia é a tentativa, por vezes frustrante, de compreender o ser humano.

De Sócrates a Freud, a natureza humana tem suscitado inúmeros questionamentos e interrogações. O Sapiens é predador, irracional – por vezes – expressa sua louca agressividade, mas também sua genialidade e amorosidade. Entre práticas de escravidão e guerras, surgem também ações humanitárias em prol da vida e da dignidade humana.

Quem é o homem, afinal?

O sociólogo Edgar Morin tentou sintetizar na expressão Sapiens-demens. Ou melhor, o homem é Sapiens, demens, faber, economicus, ludens e consumans. [2] Antes, ou bem antes dele, não faltaram pensadores que tentaram conceituar o homem. Para Aristóteles o homem era “um animal político”, para Rabelais “um animal que ri”, para Descartes “um ser que pensa”, para Kant, “um ser que julga”, para Marx “um ser que trabalha”, para Freud “um ser dominado por suas pulsões inconscientes”.

Na famosa Enciclopédia elaborada no século XVIII, por Diderot e d'Alembert, consta uma interessante definição para o verbete homem: “ser que sente, reflete, pensa, que perambula livremente sobre a superfície da Terra, que parece estar à frente de todos os outros animais, os quais ele domina, que vive em sociedade, que inventou as ciências e as artes, que tem uma bondade e uma maldade que lhe são únicas, (...) que fez leis etc. (...) É composto por duas substâncias, uma chamada alma, outra conhecida pelo nome de corpo.” [3] Definir é sempre limitar. O filósofo André Comte-Sponville, para fugir dessa armadilha, simplesmente ou jocosamente, afirmou que: “É um ser humano todo ser nascido de dois seres humanos.” [4]

Seres humanos são pessoas complexas. Muitos estão preocupados com o mercado econômico, outros com o dilema de para onde viajar nas férias, outros, ainda, alimentam culpas e ressentimentos por não terem aproveitado suficientemente suas oportunidades ou nem terem podido viajar. Mas, qual o lugar que o humano ocupa na sociedade contemporânea? Nascemos humanos, mas necessitamos urgentemente nos humanizar.

Para a filosofia espírita, a humanidade não é um mero fatalismo biológico. A existência nos fala de nossa própria essência, que é preciso prospectar. E, descobrindo a essência, descobrimos o homem. Essa é a grande aventura humana. A essência, na perspectiva desvelada por Allan Kardec, é o Espírito: ser imortal e pluexistencial que se desenvolve e progride por meio de suas múltiplas experiências. A humanização do humano e a espiritualização do Espírito implicam numa mesma lógica: o melhoramento pessoal e social.

O progresso necessita ocorrer numa dinâmica integrativa entre o indivíduo e o grupo social. Por isso, Kardec didaticamente apontou ou esquematizou o conjunto das Leis Morais, constantes na terceira parte de O Livro dos Espíritos. Na sociedade contemporânea, o humano foi reduzido ao status de “consumidor” consumido pelo trabalho e escravo do que não possui. A sociedade do descartável e do cansaço é, também, uma sociedade da decepção. O humano-espírito, é um sujeito oprimido pela estrutura econômica, pela cobrança por desempenho e carente – na sua essência - de uma cultura humanizadora que promova sua dignidade existencial.

O problema, no entanto, levantado pelo filósofo Byung-Chul Han é a desumanização que o próprio ser humano se impõe na contemporaneidade, o que ele chama de “autoexploração”:

“A sociedade do desempenho é uma sociedade de autoexploração. O sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se nesse processo uma autoagressividade, que não raro se agudiza e desemboca num suicídio. O projeto se mostra como um projetil, que o sujeito de desempenho direciona contra si mesmo”. [5]

Trata-se, numa análise ampla, do indivíduo-humano-espírito que, vivendo na sociedade capitalista, trava uma guerra constante consigo mesmo, desumaniza-se, desnaturaliza-se frente ao “eu-ideal”, enquanto o “eu-real” sente-se acossado por suas autorreprimendas, seja pelo sentimento de fracasso ou pela cobrança social de sucesso, felicidade e de positividade.

A filosofia espírita oferece contribuições interessantes para um novo paradigma cultural. A percepção de um homem “interexistêncial”, reencarnante, abre horizontes mais confortadores sobre a natureza do “Eu” e do “estar-no-mundo”. Se vivemos numa sociedade individualista, onde o egoísmo enferruja as engrenagens da justiça social, e desumaniza o humano, é preciso que tais engrenagens sejam lubrificadas, periodicamente, pelo amor, pela ética e pelo próprio humanismo. A não alienação do sujeito em relação ao mundo, não implica numa sujeição, desse sujeito, aos valores utilitaristas do mundo.

Se os aspectos apresentados por Aristóteles, Rabelais, Descartes, Kant, Marx, Kardec, Freud e Morin, estiverem corretos, então isso significará que o ser humano/espírito é ainda mais complexo do que o nosso tímido senso comum imagina. É na complexidade, portanto, que percebemos a magnitude do ser humano!

 

NOTAS

1. Citado por MORIN, Edgar. O Método 5. A humanidade da humanidade. A identidade humana. Trad. Juremir Machado. 5ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 115.

2.MORIN, Edgar. Op. cit. p. 18 - 116.

3.Homem, Diderot [8, 256] Verbete integrante da Enciclopédia - Volume 2, de Diderot e d'Alembert, organização Pedro Paulo Pimenta e Maria das Graças de Souza. São Paulo: Editora Unesp, 2015, págs. 360-361.

4. COMTE-Sponville, André. Apresentação da Filosofia. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 128.

5.HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Trad. Enio Paulo. 2ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2021. p. 101.

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