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DIVERSIDADE SEXUAL E ESPIRITISMO - O QUE KARDEC TEM A VER COM ISSO?

 


        O meio espírita, por conta do viés religioso predominante, acaba encontrando certa dificuldade na abordagem do assunto sexo. Existem algumas publicações que tentam colocar o assunto em pauta; contudo, percebe-se que muitos autores tentam, ainda que indiretamente, associar a diversidade sexual à promiscuidade, numa tentativa de sacralizar a heterocisnormatividade e marginalizar outras manifestações da sexualidade; outros, quando abrem uma exceção, ressaltam os perigos da pornografia e da promiscuidade, como se fossem características exclusivas de indivíduos LGBTQI+.

            Nesse ponto, deve-se ressaltar o pioneirismo e a sobriedade com que Kardec tratou o assunto em duas obras, ainda que breves, deixando espaço para que encontremos, no século XIX, uma visão mais equilibrada envolvendo também a equipe espiritual que participou da composição das obras fundamentais.

 

O LIVRO DOS ESPÍRITOS

            Já na primeira edição de O Livro dos Espíritos, em 1857, essas perguntas estavam presentes, e a redação permaneceu da segunda edição em diante. Muito provavelmente por conta do regime de exceção, o tema não ganhou outros esclarecimentos, ficando restritos a essas três perguntas:

 

200. Têm sexos os Espíritos?

 

“Não como o entendeis, pois que os sexos dependem do organismo. Há entre eles amor e simpatia, mas baseados na semelhança dos sentimentos.”

 

201. Em nova existência, pode o Espírito que animou o corpo de um homem animar o de uma mulher e vice-versa?

 

“Decerto; são os mesmos os Espíritos que animam os homens e as mulheres.”

 

202. Quando errante, que prefere o Espírito: encarnar no corpo de um homem, ou no de uma mulher?

 

“Isso pouco lhe importa. O que o guia na escolha são as provas por que haja de passar.”

 

Os Espíritos encarnam como homens ou como mulheres, porque não têm sexo. Visto que lhes cumpre progredir em tudo, cada sexo, como cada posição social, lhes proporciona provações e deveres especiais e, com isso, ensejo de ganharem experiência. Aquele que só como homem encarnasse só saberia o que sabem os homens.

 

 

            A primeira conclusão à qual se chega ao analisar a resposta à pergunta 200 é que os sexos estão relacionados com a constituição física, o que nos permite entender que a questão mental possa estar desconectada dela. De certa forma, podemos entender por que há Espíritos que encarnam e desenvolvem conflito com essa constituição física (transexualidade), bem como aqueles que simplesmente não se colocarem sob a influência dela (não binariedade).

            Na questão 201, os Espíritos colocam também que as encarnações podem ocorrer em quaisquer constituições físicas, seja ela masculina, seja ela feminina; o Espírito é indiferente com relação a isso; aqui certamente poderíamos incluir as pessoas intersexo.

            Por fim, a questão 202 apresenta um fato que determina quaisquer escolhas mencionadas nas reflexões, desdobrando as respostas às questões anteriores: as provas pelas quais o Espírito terá de passar na jornada terrena determina a constituição física, especificamente também a parte sexual.

            O comentário de Kardec, para o século 19, já foi bastante libertador no sentido de permitir que pensássemos na escolha em diferentes constituições fenotípicas sexuais como forma de aquisição de diferentes experiências, exatamente para permitir ao Espírito o pleno entendimento de cada posição no planeta, ainda que, quando encarnado, essa experiência ficasse esquecida por conta da nova encarnação.

 

REVISTA ESPÍRITA

            Em janeiro de 1866, temos o último registro em que o autor tenha abordado esse assunto: um artigo da Revista Espírita intitulado “As mulheres têm alma?”. Sem estar preso ao sistema de perguntas e respostas, Kardec é ainda mais explícito nos pontos anteriormente destacados:

(...)

As almas ou Espíritos não têm sexo. As afeições que os unem nada têm de carnal e, por isto mesmo, são mais duráveis, porque são fundadas numa simpatia real e não são subordinadas às vicissitudes da matéria.

 

(...) A cada encarnação a alma chega mais desenvolvida; traz novas ideias e os conhecimentos adquiridos nas existências anteriores. Assim se efetua o progresso dos povos. (...)

 

Os órgãos sexuais só existem no organismo. (...)

 

(...) Aquele que foi homem poderá renascer mulher, e aquele que foi mulher poderá renascer homem, a fim de realizar os deveres de cada uma dessas posições, e de submeter-se às provas respectivas.

 

(...) Somente quando chegado a um certo grau de adiantamento e de desmaterialização é que a influência da matéria se apaga completamente e, com ela, o caráter dos sexos. Os que se nos apresentam como homens ou como mulheres assim o fazem para nos lembrarmos da existência em que os conhecemos.

 

(...) Numa nova encarnação, ele trará o caráter e as inclinações que tinha como Espírito; se ele for avançado, será um homem avançado; se for atrasado, será um homem atrasado. Mudando de sexo ele poderá, portanto, sob essa impressão e em sua nova encarnação, conservar os gostos, as inclinações e o caráter inerentes ao sexo que acaba de deixar. Assim se explicam certas anomalias aparentes, notadas no caráter de certos homens e de certas mulheres.

(...)

 

            Na época de Kardec, com o cientificismo bastante forte, temos aqui talvez uma das abordagens mais avançadas moral e cientificamente, pois, além de reforçar que o aparelho sexual é algo completamente conectado à organização física, ele abre uma brecha ao mostrar que a orientação sexual, como atualmente denominamos homo, bi e heterossexualidade, podem fazer parte de “certas anomalias aparentes”, pois o Espírito “Mudando de sexo ele poderá, portanto, sob essa impressão e em sua nova encarnação, conservar os gostos, as inclinações e o caráter inerentes ao sexo que acaba de deixar.”; assim sendo, não haveria nada de anormal na orientação sexual ser de qualquer maneira; o anormal, a bem da verdade, é acreditar que o sexo seja algo ligado ao Espírito, como se existissem Espíritos masculinos e femininos e com a sexualidade ligada a um órgão espiritual ou perispiritual.

            Em artigo posterior, vamos falar de algumas vivências LGBTQI+ baseadas  em depoimentos colhidos de membros do movimento espírita, especialmente no programa de bate-papo que temos no Cejus: Vem de Insta.

 

 

REFERÊNCIAS

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Disponível em <https://kardecpedia.com>. Acessado em 20 set. 2020.

 

_____. Revista Espírita - Jornal de estudos psicológicos. Assunto: “As mulheres tem alma?”, ano 1866, mês de janeiro. Disponível em <https://kardecpedia.com>. Acessado em 20 set. 2020.

 

Comentários

  1. Olha, conheci o fundador do Canteiro de Ideias, éramos trabalhadores da mesma casa espírita, e tive muito receio do que estaria aqui posto, especialmente por eu ser espírita e não ter sido devidamente acolhido nesse espaço que considerava a minha casa... hoje bem afastado da causa espírita, leio esse post e me sinto acolhido e abraçado. Claro que isso nem de longe desfaz os traumas pelos quais passei sendo um adolescente espírita gay de família conservadora...
    Fico muito feliz, com esse post e vou ter imenso prazer em mostrar esse e os demais posts de Felipe Luiz Albani ao meu namorado e aos meus amigos.
    Gratidão por expor o melhor de Kardec e nos ajudar a ver o mundo de uma forma mais humana, espiritualizada e contextualizada.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sinta-se abraçado por mim e por todo mundo que se sente excluído desse sistema que, infelizmente, ainda não nos enxerga como Espíritos imortais.

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