Pular para o conteúdo principal

O ABORTO PATERNO E OS ESPÍRITAS

 

Imagens da internet


Por Jorge Luiz


            O aborto se constitui bandeira ideológico-partidária no movimento espírita brasileiro. Para uma doutrina que expõe essa questão de forma cristalina, chega a soar como heresia a afirmação de que a gênese da ruptura institucional e social-doutrinária entre os espíritas esteja nessa questão. Na realidade, esse tema se constitui um dogma entre os espíritas e suas instituições. Nas questões nº 357 a 359 de O Livro dos Espíritos (O L. E.), os Espíritos Reveladores afirmam que o aborto é um crime e o admitem no caso da criança colocar em risco a vida da mãe:“Preferível é que se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.” É de fácil entendimento que o Espírito abortado poderá vir em uma nova encarnação.

            O aborto é, por demais, debatido no movimento espírita; então, perguntará o leitor a necessidade de se voltar ao debate. Responde-se que é de fundamental importância retomar esse debate no momento em que, segundo dados divulgados pela Associação Nacional de Registradores de Pessoas Naturais (Arpen - Brasil), de janeiro a abril de 2022, foram registrados 56,9 mil bebês por mães solo – recém-nascidos somente com o nome materno – recorde quando comparados a outros anos.

            O aborto paterno, em uma sociedade ainda de prevalência do patriarcado-conservador, pouco é discutido, o que não deveria acontecer entre os espíritas. A Síndrome da Alienação Parental (SAP), rejeição do filho para com o genitor que não detém sua guarda, é a consequência que caracteriza a ausência da figura paterna na educação dos filhos. Isso decorre em virtude da ruptura da vida conjugal: o genitor passa a desenvolver um sentimento de traição, de abandono, e quer se vingar do ex-cônjuge afastando o filho, e passa, em seguida,a criar situações para dificultar ou impedir as visitas, com a finalidade de fazer o filho rejeitar o pai ou a mãe que não possua sua guarda.

            Além da SAP, as crianças, a partir do abandono afetivo, sofrem traumas diante da ausência da figura materna ou paterna e ainda da insuficiência financeira do genitor que possui sua guarda.

            É digno de nota que esse problema está relacionado à própria origem do Brasil. No século XVII, a zona portuária do Rio de Janeiro abrigava uma centena de jovens grávidas abandonadas por marinheiros que passavam na região. Veja só, somente em 2015 é que os cartórios brasileiros passaram a aceitar o registro de crianças sem a presença do pai. As alegações para a não assunção pelos pais são as mais variadas. No entanto, o que se destaca nesse cenário é a posição aguerrida da figura materna. Isso é uma questão estrutural na sociedade brasileira, que ocorre em efeito dominó devido à ausência do Estado e da sociedade para o debate dessas questões.

            Em várias passagens de O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec e Os Reveladores Celestes são unânimes ao afirmarem a respeito da responsabilidade dos pais na educação dos filhos. Na questão nº 208 de O. L. E., está a afirmação:

 

“Nenhuma influência exercem os Espíritos dos pais sobre o filho depois do nascimento deste?”

“Ao contrário: bem grande influência exercem. Conforme já dissemos, os Espíritos têm que contribuir para o progresso uns dos outros. Pois bem, os Espíritos dos pais têm por missão desenvolver os de seus filhos pela educação. Constitui-lhes isso uma tarefa. Tornar-se-ão culpados se vierem a falir no seu desempenho.”

 

            Os espíritas brasileiros são fascinados pelo missionarismo. Para alguns, a missão é com idosos; para outros, os cuidados são direcionados aos moradores de rua e às crianças carentes. Esquecem, contudo, o que diz a questão nº 582, de O L. E., sobre a paternidade como missão:

 

“É, sem contestação possível, uma verdadeira missão. Constitui, ao mesmo tempo, grandíssimo dever, que empenha, mais do que pensa o homem, a sua responsabilidade quanto ao futuro. Deus colocou o filho sob a tutela dos pais, a fim de que estes o dirijam pela senda do bem, e lhes facilitou a tarefa dando àquele uma organização física débil e delicada, que o torna propício a todas as impressões. Muitos há, no entanto, que mais cuidam de endireitar as árvores do seu jardim e de fazê-las dar bons frutos em abundância, do que de endireitar o caráter de seu filho. Se este vier a sucumbir por culpa deles, suportarão os desgostos resultantes dessa queda e partilharão dos sofrimentos do filho na vida futura, por não terem feito o que lhes estava ao alcance para que ele avançasse na estrada do bem.”

           

            A vida do Espírito é de importância Divina desde a concepção à desencarnação, e se prolonga com as consequências das expressões vividas na matéria. Deve-se discutir sim o aborto, mas, acima de tudo, tem-se que se discutir a vida em todas as suas dimensões, enquanto se realiza na matéria. Os laços de família se fortalecem pela reencarnação.

            O abandono paterno no Brasil é, na realidade, uma pandemia. A família monoparental tomou muita visibilidade a partir do reconhecimento pela Constituição Federal. A priori, ela se constitui a partir de um dos pais e seus dependentes. Entretanto, a realidade dura e crua é que essa função é assumida por tradição e cultura da família patriarcal pela mãe. É ela que assume e enfrenta todas as adversidades que a função da família tem na relação com a sociedade, além de não ser reconhecida. São horas intensas de trabalho, má remuneração, muitos afazeres domésticos, além da tarefa de educação dos filhos.

            Apesar da constituição da família monoparental ser  elaborada a partir de várias iniciativas, aqui interessa a decorrência do abandono paterno.

            Interessante que já ocorreram eventos realizados por instituições espíritas onde não se permitia outra composição de família senão a tradicional, apesar da existência de inúmeras famílias monoparentais constituídas por espíritas. Certa feita, membros de família homoafetiva comentaram sobre a possibilidade desse arranjo familiar nesses eventos, o que não se consolidou.

            O que ocorre é que a concepção religiosa do Espiritismo em solo brasileiro trouxe para os espíritas o conservadorismo na questão das relações sociais e políticas, como herança do catolicismo. A criticidade espírita que deveria partir do seu aspecto filosófico reservou-se ao religiosismo sectário, de raízes sincréticas.

            Alexandre Júnior, pedagogo, coordenador do Coletivo Ágora Espírita, aponta três características marcantes do movimento espírita brasileiro: o materialismo, o conservadorismo e a contemplação. A verdade é que o espírita se interessa mais pela vida além túmulo do que pela vida de relação. Essas características apontadas por Júnior, interagindo entre si de forma sinergética, criaram uma “bolha espírita” (termo muito em voga), isolando os espíritas e as suas instituições das mazelas que torna disfuncional a sociedade, principalmente a família, que só é identificada para o exercício do assistencialismo caritativo. Diz ele:

 

“A contemplação é vivenciada pela simples ideia de que bastam a caridade e a oração sem prática de envolvimento com as questões sociais. Esta ação que beira o egoísmo faz com que seus seguidores acreditem na tão necessária, ainda para o nosso país, ação assistencialista, mas critiquem, discordem e apoiem governos que são contra políticas públicas de assistência e promoção social.”

 

            Certa feita ouvi de um espírita que se afirmava capitalista, mas defendia a assistência social. Realmente, um fenômeno! Óbvio que depois de nascido, quem cuidará do indivíduo é a assistência social espírita. Contra o aborto e a favor do abandono. A departamentalização no centro espírita.

            A partir de 2018, com o surgimento dos “espíritas progressistas” que resultaram em coletivos espíritas, essa e outras pautas têm constituído uma agenda de discussão no meio espírita. Algumas casas conscientes dessa realidade estão reprogramando suas atividades, o que é um bom sinal.

            As campanhas oficiais defendidas e incentivadas pelos órgãos institucionais espíritas contra o aborto devem nelas inserir o aborto paterno, sendo crucial a implementação de maiores políticas públicas pelo Estado a fim de minimizar os efeitos da falta de um dos pais no lar, pois é nítido que a família monoparental é mais frágil que a família biparental, sob o efeito dessa entidade familiar não estar recebendo especial proteção do Estado, promovendo a educação.

           

 

Referências:

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: LAKE, 2000.

JÚNIOR, Alexandre. Espiritismo, educação, gênero e sexualidade. Recife, 2022.

Comentários

  1. Esta matéria sobre aborto é muito verdadeira,ja senti na pele ter que assumir uma filha sozinha sem o apoio do pai que simplesmente me abandonou grávida, graças a Deus minha família me deu todo apoio,se não fosse assim talvez tivesse recorrido abortar por medo e desespero,como muitas mulheres fazem,por medo de enfrentar sozinha ser mae solteira.💜

    ResponderExcluir
  2. Exato, não sou a favor do aborto, mas é necessário o debate da sociedade do papel do homem, pois são 5 milhões de crianças sem o pai no registro no Brasil e a minha volta, não preciso me esforçar pra encontrar famílias onde a criança é rejeitada pelo pai, que acha que $200 por mês supre alguma coisa, isso quando esse homem não evapora.

    A mulher é culpada de crime, mas pro homem não pega nada... A conta não fecha.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

ESPÍRITAS: PENSAR? PRA QUÊ?

           Por Marcelo Henrique O que o movimento espírita precisa, urgentemente, constatar e vivenciar é a diversidade de pensamento, a pluralidade de opiniões e a alteridade na convivência entre os que pensam – ainda que em pequenos pontos – diferentemente. Não há uma única “forma” de pensar espírita, tampouco uma única maneira de “ver e entender” o Espiritismo. *** Você pensa? A pergunta pode soar curiosa e provocar certa repulsa, de início. Afinal, nosso cérebro trabalha o tempo todo, envolto das pequenas às grandes realizações do dia a dia. Mesmo nas questões mais rotineiras, como cuidar da higiene pessoal, alimentar-se, percorrer o caminho da casa para o trabalho e vice-versa, dizemos que nossa inteligência se manifesta, pois a máquina cerebral está em constante atividade. E, ao que parece, quando surgem situações imprevistas ou adversas, é justamente neste momento em que os nossos neurônios são fortemente provocados e a nossa bagagem espiri...

POR QUE SOMOS CEGOS DIANTE DO ÓBVIO?

  Por Maurício Zanolini Em 2008, a crise financeira causada pelo descontrole do mercado imobiliário, especialmente nos Estados Unidos (mas com papéis espalhados pelo mundo todo), não foi prevista pelos analistas do Banco Central Norte Americano (Federal Reserve). Alan Greenspan, o então presidente da instituição, veio a público depois da desastrosa quebra do mercado financeiro, e declarou que ninguém poderia ter previsto aquela crise, que era inimaginável que algo assim aconteceria, uma total surpresa. O que ninguém lembra é que entre 2004 e 2007 o valor dos imóveis nos EUA mais que dobraram e que vários analistas viam nisso uma bolha. Mas se os indícios do problema eram claros, por que todos os avisos foram ignorados?

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

PROGRESSO - LEI FATAL DO UNIVERSO

    Por Doris Gandres Atualmente, caminhamos todos como que receosos, vacilantes, temendo que o próximo passo nos precipite, como indivíduos e como nação, num precipício escuro e profundo, de onde teremos imensa dificuldade de sair, como tantas vezes já aconteceu no decorrer da história da humanidade... A cada conversação, ou se percebe o medo ou a revolta. E ambos são fortes condutores à rebeldia, a reações impulsivas e intempestivas, em muitas ocasiões e em muitos aspectos, em geral, desastrosas...

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...