Pular para o conteúdo principal

ÉTICA E CAPITALISMO - (PARTE FINAL)

 

(continuação)

 


Por Alysson Mascaro

 

             A moral racionalista burguesa funciona também como o mercado. Os riscos da vida são privados, como privados são os riscos de qualquer negócio. A moral só se percebe na transação, na troca mercantil, no acordo de um com o outro, no fazer ao outro, portanto em relação. Não há capitalismo sem valor de troca, não há capitalismo sem lucro auferido da mais-valia. Não há capitalista ermitão. Da mesma forma não há moral racional burguesa para si mesmo, há moral burguesa na honestidade com os outros, nas tratativas às claras com os outros, não importando o lucro destas tratativas, importando sim as regras fixas do mercado: todos os mercadores são formalmente iguais, os contratos devem ser cumpridos. Assim, na vida moral, a exigência não é a de dar tudo de si ao outro nem repartir tudo, mas de agir honestamente na relação com o outro, não lesar nem ser lesado. E mais, a caridade desta moral burguesa, a título de esmola, é da mesma forma a diminuição do lucro no contrato a título de agrado ou a título de desconto.

            Mais profundamente ainda, esta moral racionalista, sendo igualitária na forma, é profundamente desigual no conteúdo. Que todos sejam irmãos está é uma lógica irrefutável para um moralista racionalista, para quem a humanidade é criação única. Mas a repartição dos benefícios e necessidades em comum não entra na conta desta irmandade: a quantidade de esmola que se dá, ou a quantidade de lucro que se leva para casa, não importa no final das contas para a moral racionalista, pois nela não importa o concreto, o substancial, mas só o formal. Esta moral é sempre tolerância, tratamento igual e respeitoso de todos, transação cuja forma é respeitada e cujo conteúdo não é alterado. A moral racional burguesa é a preocupação com a forma das relações humanas, não com o seu conteúdo real. Como num mercado, chegamos com nossa capacidade moral, com nossa condição racional, com nosso esclarecimento – uns mais, outros menos, mas isso também ao mercado não importa. Lá, se compramos ou vendemos, não importa moralmente o quanto perdemos ou ganhamos, importa sim que nos contentemos em nos vincular ao próximo e transacionarmos de acordo com as regras comuns acordadas. Os lucros estão fora da contabilidade da moral, apenas a forma da transação está sob a jurisdição da moralidade racional.

            Por isso, se os homens são desiguais ou iguais, se lucram mais ou menos, nada disto afeta a estrutura da moralidade se tratarmos ao próximo da mesma forma que esperamos que nos trate. A reciprocidade aqui nunca foi propriedade coletiva, foi troca com agentes formalmente equiparados. A reciprocidade aqui na prática, é a desproporção nos lucros, é o entesouramento desigual, é a mais valia. A exploração é o resultado prático dessa moral, que enxerga o próximo como seu negociante de convívios morais, nunca como seu irmão no mesmo lar, e portanto sócio comum. A moral burguesa é o mercado em que todos são comerciantes, em que o respeito ao próximo é a regra formal de igualdade do contrato em que os resultados do cumprimento moral não são repartidos com igualdade entre os irmãos, antes são levados para casa para consumo privado. O lugar da moral racional é o grande mercado, seus frutos estão no regaço do lar, às escondidas de todo o resto.

            A Paz Perpétua de Kant não era só uma federação de Estados em toda a Terra, era sim um mercado universal. No dia em que todos os homens se medirem como mercadorias, aí residirá a tolerância universal, aí residirão a igualdade formal plena, o respeito ao próximo e o pleno empenho da palavra. Mas não há fraternidade verdadeira nesta situação em que os homens se medem por mercadorias. A moral feudal fez de seus homens servos – servos de Deus, servos do senhor feudal -, a moral moderna faz de seus homens mercadores e mercadorias – necessariamente livres agentes no mercado, onde se comprar e se vendem mas nunca rompem os contratos. Aqui a esmola é desconto, a caridade é promoção. Romper com a moral racionalista burguesa é romper com o próprio capitalismo. Não há pleno cristianismo no capitalismo.

 

 

Fonte: Cristianismo Libertador, Alysson Mascaro, Editora Comenius

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

DIA DE FINADOS À LUZ DO ESPIRITISMO

  Por Doris Gandres Em português, de acordo com a definição em dicionário, finados significa que findou, acabou, faleceu. Entretanto, nós espíritas temos um outro entendimento a respeito dessa situação, cultuada há tanto tempo por diversos segmentos sociais e religiosos. Na Revista Espírita de dezembro de 1868 (1) , sob o título Sessão Anual Comemorativa dos Mortos, na Sociedade Espírita de Paris fundada por Kardec, o mestre espírita nos fala que “estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos, para dar aos nossos irmãos que deixaram a terra, um testemunho particular de simpatia; para continuar as relações de afeição e fraternidade que existiam entre eles e nós em vida, e para chamar sobre eles as bondades do Todo Poderoso.”

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O DISFARCE NO SAGRADO: QUANDO A PRUDÊNCIA VIRA CONTRADIÇÃO ESPIRITUAL

    Por Wilson Garcia O ser humano passa boa parte da vida ocultando partes de si, retraindo suas crenças, controlando gestos e palavras para garantir certa harmonia nos ambientes em que transita. É um disfarce silencioso, muitas vezes inconsciente, movido pela necessidade de aceitação e pertencimento. Desde cedo, aprende-se que mostrar o que se pensa pode gerar conflito, e que a conveniência protege. Assim, as convicções se tornam subterrâneas — não desaparecem, mas se acomodam em zonas de sombra.   A psicologia existencial reconhece nesse movimento um traço universal da condição humana. Jean-Paul Sartre chamou de má-fé essa tentativa de viver sem confrontar a própria verdade, de representar papéis sociais para evitar o desconforto da liberdade (SARTRE, 2007). O indivíduo sabe que mente para si mesmo, mas finge não saber; e, nessa duplicidade, constrói uma persona funcional, embora distante da autenticidade. Carl Gustav Jung, por outro lado, observou que essa “másc...

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

O MEDO SOB A ÓTICA ESPÍRITA

  Imagens da internet Por Marcelo Henrique Por que o Espiritismo destrói o medo em nós? Quem de nós já não sentiu ou sente medo (ou medos)? Medo do escuro; dos mortos; de aranhas ou cobras; de lugares fechados… De perder; de lutar; de chorar; de perder quem se ama… De empobrecer; de não ser amado… De dentista; de sentir dor… Da violência; de ser vítima de crimes… Do vestibular; das provas escolares; de novas oportunidades de trabalho ou emprego…

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...