Pular para o conteúdo principal

A ESCOLA E A PANDEMIA

 

 

 

 

Quase 20 anos atrás, quando fiz um projeto numa escola pública de Ensino Fundamental I, em Bragança Paulista, aconteceu o seguinte fato: um dia, entrei na escola e as crianças me perguntaram o que era aquela tal guerra do Iraque. Diante dessa pergunta, fizemos um projeto interdisciplinar de 6 meses na escola inteira, em que fomos pesquisar as causas da guerra, a questão do petróleo, discutimos a paz mundial e por fim fizemos uma campanha pela paz e as próprias crianças propuseram para se debater: a paz em casa, a paz no bairro, a paz na cidade, a paz no Brasil e a paz no mundo. Inúmeros assuntos vieram à tona, como violência doméstica, violência urbana, geopolítica, a possibilidade da não violência… enfim, passeamos por história, geografia, ética, política, filosofia e artes, pois a campanha final foi feita em cartazes, com poemas e slogans sobre a paz.

Enquanto fazíamos esse projeto com entusiasmo, a escola continuava em sua chata e medíocre rotina de ensinar as crianças sujeito e predicado, continhas e equações, sem nenhuma conexão com a realidade lá fora, sem nenhum interesse para os alunos entediados.

20 anos depois, temos uma crise sanitária, política, econômica, social, numa pandemia que já matou mais de dois milhões de seres humanos… e a escola online ou presencial e todos apressados para que seja de novo presencial, continua preocupada com seu programinha conteudístico, sem muitas vezes acolher a angústia, os lutos e as necessidades dos educandos.

A escola continua esvaziada de vida, mesmo diante da morte – que se põe como questionamento do próprio sentido da vida, quanto mais do sentido de tanta coisa sem sentido que aprendemos na escola. Alguns professores tentam, alguns poucos conseguem humanizar, propor projetos mais essenciais, acolher e debater. Mas a maioria fica literalmente aprisionada na grade curricular e não vê que o que era chato no presencial se torna mais chato ainda à distância e que ao retomar o presencial (que só deveria de fato ser feito com a pandemia controlada ou os professores vacinados), seria preciso mudar a escola. Que ela finalmente pudesse ser um lugar em que os professores e os alunos se sentissem acolhidos, estimulados e protagonistas e não fossem esmagados por um sistema cego. Mas costumo dizer sempre que o lugar no mundo de maior resistência à mudança é a escola, porque se mudássemos a escola, aceleraríamos bastante a transformação da sociedade. E porque o mundo adulto tem medo da liberdade, da criatividade, do senso de justiça das crianças. Se elas tivessem voz, as coisas seriam bem diferentes. Então, é preciso abafar essas vozes e tratar de converter as crianças em adultos submissos ao sistema e esvaziá-las do elã de vida.

Ficou claro nessa pandemia que muitos pais veem a escola como um depósito conveniente para as crianças, para que possam trabalhar à exaustão no mundo neoliberal, onde não existe espaço para a vida em família, para o lazer e nem mesmo para o descanso. Aumentadas ainda as tensões com o desemprego, o home office, o Corona, os lutos, o adoecimento psíquico generalizado, todos estão loucos para verem as crianças de volta à escola. É claro que a escola é importantíssima para as crianças, sobretudo pelo processo de socialização – pois ela tem cumprido muito mal a sua missão de ensinar. E em caso de crianças em vulnerabilidade, a escola significa comida, e às vezes mesmo proteção contra violências e abusos. Entretanto, não deveríamos estar tão preocupados com Enem, com o vestibular, com o conteúdo “perdido”. A vida é o essencial.

Como educadora há mais de 30 anos, apaixonada pelas crianças, acho que pais, professores e alunos deveriam conversar e decidir juntos o que fazer: quando voltar e como voltar e como, sobretudo, fazer projetos, pesquisas, debates, apresentações, encontros significativos (virtuais e presenciais, com todos os protocolos de segurança), em que a educação pudesse se encher de vida e de interesse, de temas vitais para o aqui e agora, também de espiritualidade (sempre plural na escola), porque a espiritualidade é uma boa âncora para o sentido da existência e para a superação dos sofrimentos. Uma educação que também fosse o suficientemente crítica para criticar a própria educação, que atualmente só se coloca a serviço de um mundo adulto de ganho e lucro, com muito desprezo à vida e ao ser humano.

 

publicado originalmente no jornal GGN.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

“BANDIDO MORTO” É CRIME A MAIS

  Imagens da internet    Por Jorge Luiz   A sombra que há em mim          O Espírito Joanna de Ângelis, estudando o Espírito encarnado à luz da psicologia junguiana, considera que a sociedade moderna atinge sua culminância na desídia do homem consigo mesmo, que se enfraquece tanto pelos excessos quanto pelos desejos absurdos. Ao se curvar à sombra da insensatez, o indivíduo negligencia a ética, que é o alicerce da paz. O resultado é a anarquia destrutiva, uma tirania do desconcerto que visa apagar as memórias morais do passado. Os líderes desse movimento são vultos imaturos e alucinados, movidos por oportunismo e avidez.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

OS FANATISMOS QUE NOS RODEIAM E NOS PERSEGUEM E COMO RESISTIR A ELES: FANATISMO, LINGUAGEM E IMAGINAÇÃO.

  Por Marcelo Henrique Uma mensagem importante para os dias atuais, em que se busca impor uma/algumas ideia(s), filosofia(s) ou crença(s), como se todos devessem entender a realidade e o mundo de uma única maneira. O fanatismo. Inclusive é ainda mais perigoso e com efeitos devastadores quando a imposição de crenças alcança os cenários social e político. Corre-se sérios riscos. De ditaduras: religiosas, políticas, conviviais-sociais. *** Foge no tempo e na memória a primeira vez que ouvi a expressão “todos aprendemos uns com os outros”. Pode ter sido em alguma conversa familiar, naquelas lições que mães ou pais nos legam em conversas “descompromissadas”, entre garfadas ou ações corriqueiras no lar. Ou, então, entre algumas aulas enfadonhas, com a “decoreba” de fórmulas ou conceitos, em que um Mestre se destacava como ouro em meio a bijuterias.

O CORDEIRO SILENCIADO: AS TEOLOGIAS QUE ABENÇOARAM O MASSACRE DO ALEMÃO.

  Imagem capa da obra Fe e Fuzíl de Bruno Manso   Por Jorge Luiz O Choque da Contradição As comunidades do Complexo do Alemão e Penha, no Estado do Rio de Janeiro, presenciaram uma megaoperação, como define o Governador Cláudio Castro, iniciada na madrugada de 28/10, contra o Comando Vermelho. A ação, que contou com 2.500 homens da polícia militar e civil, culminou com 117 mortos, considerados suspeitos, e 4 policiais. Na manhã seguinte, 29/10, os moradores adentraram a zona de mata e começaram a recolher os corpos abandonados pelas polícias, reunindo-os na Praça São Lucas, na Penha, no centro da comunidade. Cenas dantescas se seguiram, com relatos de corpos sem cabeça e desfigurados.

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

ESPÍRITISMO E CRISTIANISMO (*)

    Por Américo Nunes Domingos Filho De vez em quando, surgem algumas publicações sem entendimento com a codificação espírita, clamando que a Doutrina Espírita nada tem a ver com o Cristianismo. Quando esse pensamento emerge de grupos religiosos dogmáticos e intolerantes, até entendemos; contudo, chama mais a atenção quando a fonte original se intitula espiritista. Interessante afirmar, principalmente, para os versados nos textos de “O Novo Testamento” que o Cristo não faz acepção de pessoas, não lhe importando o movimento religioso que o segue, mas, sim, o fato de que onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome ele estará no meio deles (Mateus XVIII:20). Portanto, o que caracteriza ser cristão é o lance de alguém estar junto de outrem, todos sintonizados com Jesus e, principalmente, praticando seus ensinamentos. A caridade legítima foi exemplificada pelo Cristo, fazendo do amor ao semelhante um impositivo maior para que a centelha divina em nós, o chamado “Reino de...