Pular para o conteúdo principal

ESPÍRITO E SOCIEDADE

 


      O ímpeto religiosista nos foi legado pela história de maneira intrinsecamente individualista. Por duas razões, é preciso apontar. A primeira delas é dos próprios fenômenos religiosos: a fé e a salvação, esteios da maioria dos sistemas religiosos, são tidos como eventos do indivíduo, daquele que crê e que se salva. Nas religiões cristãs este individualismo é agudo. A segunda das razões básicas é da inserção da religião no próprio sistema de relações sociais. As religiões institucionais formam um mundo metafísico cuja razão ideológica é conservadora, plenamente favorecedoras e em função do domínio da exploração social e de relações produtivas como as capitalistas, individualistas em suma. Esta ligação, embora rejeitada ferozmente pelos religiosos de modo geral, só faz por denunciar o que não se quer ver. Embora seja de ressaltar, em todos estes casos, as históricas exceções.

      As melhores compreensões da razão contemporânea, no entanto, afastam-se deste individualismo religioso. Os vínculos sociais do homem são claros nas teorias das ciências humanas contemporâneas. Ainda que não haja alguma unanimidade de compreensão dos tipos de vínculo social humano, o homem como mônada individual e apartada do mundo real já não é teoria plausível à nossa razão.

      O Espiritismo, como ciência do espírito, tem um papel inovador, mas ao mesmo tempo não pode incorrer no risco de ambição. O papel ideológico da ciência é explicito, e não parece demandar muitas linhas para que seja apontado. Todo conhecimento espírita também não o deixa de ser. Nos mais remotos conhecimentos humanos, já é possível encontrar esta utilização ideológica da ciência. O que não dizer de uma ciência como a espírita, cujo objeto é, desde que a humanidade se conhece como tal, objeto das religiões, de livros sagrados, de revelações divinas, de teologias e guerras as mais variadas! É óbvio que o conhecimento científico das realidades espirituais tem uma vasta implicação na realidade social. Os soviéticos, vezeiros estudiosos do assunto neste século (XX) o tratavam como segredo de Estado.

      No entanto, o que se quer dizer quando se fala do risco da ambição é o fato de que, enquanto objeto específico de estudo, a ciência do espírito é uma ciência fundamentalmente da natureza humana, se quisermos usar uma distinção que já foi por terra entre ciências naturais e humanas. A tentação de fazer do conhecimento científico da existência do espírito, inúmeras extensões para a vida moral e social do homem é muito grande, mas a cautela deve ser maior.

      As teologias pregam metafísicas e delas tiram conclusões para a Terra. O Espiritismo procede do modo exatamente contrário. Dada a comprovação científica, pela ciência espírita, da vida espiritual, abre-se, depois disso e só depois, um oceano de implicações para a vida humana. Mas nenhuma delas sai de alguma metafísica espiritual. Todas as implicações espíritas são simplesmente desdobramentos da constatação científica da realidade da vida espiritual.

      Também é preciso dizer que o tratamento da natureza humana apenas num certo sentido é revelado pela ciência espírita. Esta prova de humildade científica é uma salvaguarda fundamental a que os estudiosos espíritas devem se dar ao direito. Da mesma maneira como um psicanalista não pode pretender esgotar a natureza humana na psiquê, da mesma maneira que um físico não pode restringir o homem a átomos, nem o biólogo a células, nem o médico à fisiologia, nem o sociólogo às relações sociais, também o espírita não pode restringir a natureza humana à sua realidade espiritual. O Espiritismo não dá conta de toda esta natureza, embora dê conta de um aspecto dos mais fundamentais dela. O que se deve dizer, sem sombra de dúvida, é que este aspecto não é uma área estanque do conhecimento humano: a existência do espírito muda totalmente os limites da problemática, como muda também o enquadramento do plano ético individual e social humano.

      A humildade científica do conhecimento espírita permite acompanhar com grande isenção o desenvolvimento dos outros setores da compreensão humana. Como uma das mais incompreendidas, rejeitadas e revolucionárias explicações do homem, o Espiritismo deve ser muito mais sensível às interpretações libertárias da humanidade, que pagam junto com ele o preço da originalidade e do potencial transformador.

      As implicações da ciência do espírito na realidade social são vastas. O primeiro momento der aproximação, no entanto, começa com o próprio estudo a respeito da fenomenologia do espírito. Sua existência continuada, enquanto consciência autônoma, não quer levar a uma conclusão individualista. Muito pelo contrário, o espírito encerrado em si e sem qualquer experiência de uma nulidade. Maior prova não há para a cultura espírita nesse sentido que as reiteradas manifestações dos espíritos a respeito do fato de que o espírito, em início existencial, em primeiras encarnações, é totalmente simples e ignorante. Ora, se é uma nulidade, se plenifica com a experiência, vivencialmente, e esta vivência é sempre com os outros, no mundo material ou espiritual. Daí o caráter existencial do espirito já apontado por Herculano Pires. Não há essência prévia do espirito; há uma marcha situacional do Ser.

      Toda a compreensão científica do Espiritismo não se desgarra deste ponto fundamental, que é o do caráter existencial da evolução e da própria constituição humana. Neste ponto o Espiritismo supera todas as explicações individualistas ou que enxergam dentro do homem uma certa essencialidade inexpugnável: os caminhos ético-morais não estão inscritos na natureza humana; são impulsos e sentidos sociais, históricos para caminhos humanos.

      As relações sociais e a experiência humana dão-se ao mesmo tempo no plano material quanto na experiência espiritual em sentido estrito. O espírito é um existente tanto na sua forma encarnada quanto na sua forma desencarnada. Nos múltiplos planos da experiência do espirito, esta experiência é existencial, social, histórica. Talvez não nos caiba e nem seja científico perguntar a respeito das estruturas das relações sociais nos planos espirituais propriamente ditos. A realidade do espírito e suas relações sociais materiais e espirituais são múltiplas, mas impossíveis ainda de uma teorização genérica pela ciência terrena. E, tendo em vista que não há condições científicas de afirmar cabalmente as formas de sociabilidade no plano espiritual, não há tampouco forma científica de asseverar as comparações e implicações desta sociabilidade espiritual com a sociabilidade material.

      A casualística das relações sociais materiais possibilita, no entanto, indícios espirituais, que são extremamente úteis, mas que somente podem ser levados em conta de aproximações. Principalmente no caso de grupos e afinidades, de comunidades e famílias, de sintonias e repulsas recíprocas e de liames inexplicáveis pelos laços materiais, entra em campo a determinante espiritual. As formas de mensuração, é certo, são todas empíricas e indutivas. Não se poderá, por isso, dissertar estruturalmente, ao menos no presente, a respeito do impacto da sociabilidade da existência espiritual na sociabilidade material.

      Parece, no entanto, que no plano filosófico o Espiritismo tem abordagens mais relevantes para os problemas sociais do homem, desdobrando as implicações da ciência do espírito na racionalidade humana.

     

Fonte: Cristianismo Libertador, Alyssom Leandro Mascaro, Editora Comenius.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DEUS¹

  No átimo do segundo em que Deus se revela, o coração escorrega no compasso saltando um tom acima de seu ritmo. Emociona-se o ser humano ao se saber seguro por Aquele que é maior e mais pleno. Entoa, então, um cântico de louvor e a oração musicada faz tremer a alma do crente que, sem muito esforço, sente Deus em si.

SOCIALISMO E ESPIRITISMO: Uma revista espírita

“O homem é livre na medida em que coloca seus atos em harmonia com as leis universais. Para reinar a ordem social, o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se nas mãos; do Espiritismo pode nascer o Socialismo idealista.” ( Arthur Conan Doyle) Allan Kardec ao elaborar os princípios da unidade tinha em mente que os espíritas fossem capazes de tecer uma teia social espírita , de base morfológica e que daria suporte doutrinário para as Instituições operarem as transformações necessárias ao homem. A unidade de princípios calcada na filosofia social espírita daria a liga necessária à elasticidade e resistência aos laços que devem unir os espíritas no seio dos ideais do socialismo-cristão. A opção por um “espiritismo religioso” fundado pelo roustainguismo de Bezerra Menezes, através da Federação Espírita Brasileira, e do ranço católico de Luiz de Olympio Telles de Menezes, na Bahia, sufocou no Brasil o vetor socialista-cristão da Doutrina Espírita. Telles, ao ...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

ESPIRITISMO E POLÍTICA¹

  Coragem, coragem Se o que você quer é aquilo que pensa e faz Coragem, coragem Eu sei que você pode mais (Por quem os sinos dobram. Raul Seixas)                  A leitura superficial de uma obra tão vasta e densa como é a obra espírita, deixada por Allan Kardec, resulta, muitas vezes, em interpretações limitadas ou, até mesmo, equivocadas. É por isso que inicio fazendo um chamado, a todos os presentes, para que se debrucem sobre as obras que fundamentam a Doutrina Espírita, através de um estudo contínuo e sincero.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

É HORA DE ESPERANÇARMOS!

    Pé de mamão rompe concreto e brota em paredão de viaduto no DF (fonte g1)   Por Alexandre Júnior Precisamos realmente compreender o que significa este momento e o quanto é importante refletirmos sobre o resultado das urnas. Não é momento de desespero e sim de validarmos o esperançar! A História do Brasil é feita de invasão, colonização, escravização, exploração e morte. Seria ingenuidade nossa imaginarmos que este tipo de política não exerce influência na formação do nosso povo.

O ESPIRITISMO É PROGRESSISTA

  “O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõe todos os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem - a mão para marchar, na mesma rota ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.”   Revista Espírita – junho de 1868, (Kardec, 2018), p.174   Viver o Espiritismo sem uma perspectiva social, seria desprezar aquilo que de mais rico e produtivo por ele nos é ofertado. As relações que a Doutrina Espírita estabelece com as questões sociais e as ciências humanas, nos faculta, nos muni de conhecimentos, condições e recursos para atravessarmos as nossas encarnações como Espíritos mais atuantes com o mundo social ao qual fazemos parte.

OS ESPÍRITAS E OS GASPARETTOS

“Não tenho a menor pretensão de falar para quem não quer me ouvir. Não vou perder meu tempo. Não vou dar pérolas aos porcos.” (Zíbia Gaspareto) “Às vezes estamos tão separados, ao ponto de uma autoridade religiosa, de um outro culto dizer: “Os espíritas do Brasil conseguiram um prodígio:   conseguiram ser inimigos íntimos.” ¹ (Chico Xavier )                            Li com interesse a reportagem publicada na revista Isto É , de 30 de maio de 2013, sobre a matéria de capa intitulada “O Império Espírita de Zíbia Gasparetto”. (leia matéria na íntegra)             A começar pelo título inapropriado já que a entrevistada confessou não ter religião e autodenominou-se ex-espírita , a matéria trouxe poucas novidades dos eventos anteriores. Afora o movimento financeiro e ...