Os pensamentos sociais costumam ser analisados por suas teorias anunciadas e desenvolvidas – uma espécie de frontão, posicionamento burilado ou vanguarda – mas, por outro lado, devem também ser analisados por meio de suas práticas arraigadas. Com essa duplicidade se verifica então, muitas vezes, um descompasso entre teoria política e prática política ou, ainda, entre anunciação de objetivos e finalidades sociais e sua materialização em relações sociais, atos e rituais específicos.
Não se quer dizer de início que entre teoria
política e social e prática política e social operem, necessariamente, cisões
de oposição ou de total negação. Muito daquilo que se anuncia em plano teórico
pode até estar arraigado efetivamente na realidade. Mas o que ocorre é que, em
grandes vezes, entre teoria e prática percorrem contradições que, se não são
absolutas, podem ser estruturais. Em especial nas teorias de transformação, que
lutam pela negação da realidade presente, o descompasso entre teoria e prática
é maior, pois o mundo real é aquele que se quer superar. Nas teorias
conservadoras, o descompasso é muito menor porque o mundo que se quer é o que
já há.
Teoria, prática e ideologia
A teoria não é alheia à prática. Pelo contrário, ainda quando seja de vanguarda, combativa e crítica, ela parte do chão que é o mundo no qual se referencia. Assim, os constrangimentos sociais, o arcabouço de valores e mesmo o referencial linguístico são, quase sempre, hauridos daquele mesmo mundo que muitas vezes se combate.
O descompasso entre teoria e prática é
atribuído, por alguns, ao fato de que a incapacidade da teoria em se fazer
afirmar de modo pleno e crítico contra as mazelas da realidade se deve a
questões meramente de vontade ou de capacidade de entendimento. Então, por essa
leitura, seria a falha daqueles que pensam ou lideram politicamente as lutas
sociais que explicaria o insucesso dessas mesmas lutas.
Como exemplo, poder-se-ia dizer que o horror
do cristianismo seria culpa dos cristãos. A incapacidade de avanço do
socialismo seria por culpa dos socialistas.
O que ocorre é que, além das múltiplas causas
concretas e específicas da operacionalidade das lutas sociais, nas quais a
falta de vontade, a corrupção e o esclarecimento limitado operam, há questões
de fundo. Como falar de mundo libertado, socialista e pleno a partir de
sociedades e tempos históricos capitalistas, de exploração, desigualdade e
contingência? A ideologia de todos os que lutam por uma sociedade transformada
não é uma outra totalmente diversa da ideologia existente: é, antes, um
subproduto desta, uma negação que opera a partir dos quadros já dados.
Com o movimento dos trabalhadores e dos
explorados do mundo isso é patente.
A incapacidade de poder estabelecer
horizontes teóricos plenos de combate faz com que as conquistas sejam parciais,
provisórias, sempre como ganho lateral que acaba por sustentar a mesma
estrutura da sociedade capitalista. A maioria dos trabalhadores, entre lutar
por aumento de salário dentro do capitalismo ou lutar pela superação da
exploração para a chegada ao socialismo, prefere a primeira opção. O conforto
da ideologia opera em nível profundo nas subjetividades.
Demais movimentos de grupos sociais
específicos também, quase sempre, padecem do mesmo problema. O ecologismo, em
defesa de suas honrosas lutas específicas, não consegue articular uma crítica
geral à sociabilidade que gera a própria destruição do ambiente. O combate que
alternativistas e espiritualistas progressistas fazem ao mundo apenas da
mercadoria, do capital e do consumo não consegue chegar a fundo nos quadrantes
do que deve ser transformado, limitando-se, então, ao refúgio da interioridade,
da “iluminação” do indivíduo e do seu parcial distanciamento em face da
sociedade.
Todas as teorias políticas de vanguarda
nascem no solo da sociabilidade presente. Romper com esta base é trágico e
difícil, na medida em que operam, nas teorias e nos lutadores por um mundo
transformado, concepções de mundo, estruturas relacionais e valores presentes
que estão no inconsciente. Todo esse campo é a ideologia, que constitui as
subjetividades, dá seus horizontes de possibilidades, mesmo os críticos, e cujo
enredamento é necessário mesmo àqueles que a combatem.
Neste sentido, resta muito difícil
empreender, a partir das posições como a dos trabalhadores assalariados, dos
sindicalistas, dos partidos e movimentos de esquerda, dos ecologistas, dos
movimentos feministas, antirracistas e de minorias sexuais, dos
alternativistas, dos holistas, dos pacificistas e dos espiritualistas críticos,
algo que seja radicalmente novo, que efetivamente consiga romper com a
sociabilidade capitalista. O louvor da luta de tais grupos e classes é grande,
na medida em que já negam a homogeneização ideológica praticada pelo
capitalismo.
O que ocorre é que ainda não conseguem
superar plenamente tais marcos, pois são eles que constituem as subjetividades
e a ideologia, operando por mecanismos do inconsciente.
Por isso, é preciso ser radical ao constatar
a realidade social de nosso tempo: não há, nem se vislumbra, justiça no seio de
um mundo de explorações, nem tampouco amor num mundo de concorrência. Qualquer
que seja o mundo melhor desejado, este mundo ainda não o é, o que só reforça a
necessidade árdua de transformação.
A transformação social
Pensamentos e práticas sociais de vanguarda são aqueles que negam a sociabilidade presente em favor de estruturas sociais novas. A transformação social opera pelo que ainda não há. Em contrário, o conservadorismo, de todos os matizes, opera com a reafirmação do presente, quando muito apenas o reformando, isto é, reforçando-o. Além disso, há negações ao presente que, ao invés de serem progressistas, são meramente passadistas. O maior exemplo deste último caso são os religiosos, que, quase sempre, opõem-se ao presente para apresentar um falso idílio do passado. Aquilo que seja emancipador ou libertário, então, revela--se muito distinto dos horizontes políticos que portam os conservadores ou os reacionários.
Desde as revoluções modernas, os padrões de
transformação social têm decantado pensamentos e valores por meio de classes e
grupos específicos correspondentes.
A burguesia moderna, contra o absolutismo que
se assentava em bases clericais, lançou mão da razão. Mas a razão, pelo uso
burguês, tem limitações graves: ela é a razão para a exploração econômica. Será
a emancipação dos explorados do mundo, desde então, que operará a partir da
razão contra a própria exploração burguesa. Completando esse quadro político, se
o burguês se vale de uma razão instrumental, tecnicista, e os lutadores de uma
transformação plena se valem dos mais amplos arcabouços da razão, aos
reacionários, então, restou a trincheira do não racional: religiões,
instituições tradicionalistas, defesa de pretensos costumes, legitimidades
divinas ou sobrenaturais.
Tal padrão de distribuição das teorias e das
práticas entre classes e grupos tem sido presente desde o século XIX até a
atualidade. Ocorre que os parâmetros da ideologia operam no nível da subjetividade
e do inconsciente, então alcançam a todos independentemente da classe ou do
grupo. Assim, há uma constituição geral de valores e posicionamentos de mundo
tanto em exploradores quanto em explorados, tanto em crentes quanto em não
crentes, tanto em conservadores quanto em progressistas. Por meio disso,
verifica-se a dificuldade de posicionar as classes trabalhadoras e exploradas,
as minorias e as vanguardas transformadoras em torno de lutas radicalmente
novas. Elementos estruturais impedem uma divisão linear das aspirações de mundo
e das posições político-sociais por classes, grupos ou religiões. É possível
verificar, muitas vezes, reacionarismo em lutas de classes populares ou, então,
mais raramente e em sentido contrário, progressismo em grupos de base
conservadora, como no caso de alguns movimentos religiosos críticos do século
XX (cujo exemplo maior é a Teologia da Libertação). Há variáveis destacamentos
internos dentro de grandes grupos que se distribuem de modo relativamente
estável em termos de posição política.
Um caso específico: o Espiritismo
O Espiritismo é um caso específico e exemplar de lógica política teórica distinta daquela de sua realidade. O movimento espírita no Brasil, em especial a partir do século XX, se assentou em parâmetros diversos daquele surgido na Europa no século XIX. Para os espíritas brasileiros, há, é verdade, claros ecos das posições motivadoras do espiritismo inicial europeu, que tinha índole científica; mas todo esse corpo, tomado doutrinariamente, será configurado a partir de realidades e horizontes eminentemente específicos, situacionais. No Brasil, os espíritas se posicionam, sentem-se e se põem na prática como religiosos, ainda que teoricamente se afirmem não seguidores de uma religião. Como o eco doutrinário espírita adentra nos espíritas como imperativo de ciência e razão, isso bloqueia em termos teóricos a religião, mas se espraia arraigado em motivações pessoais e sociais que levam a um ânimo religioso.
Pelo fato de que o Espiritismo não é só uma
prática, mas se arroga uma ciência e uma filosofia que permitem entender o
mundo, então a prática não se legitima por conta própria, mas, sim, sempre,
amparada em tais preceitos. Tal é o potencial progressista do movimento
espírita, que, ainda que conservador na prática, não encontra respaldo de
legitimidade para tanto. Sendo caudatário do movimento iluminista, o
Espiritismo é necessariamente racional, não religioso, aberto ao
desenvolvimento histórico. Embora a cultura prática do espírita não o seja, o
movimento que ensejou o Espiritismo o era. Muitos espíritas de proa foram
socialistas, lutadores de vanguarda pela transformação social, o que é uma derivação
necessária de sua inspiração de ser ciência a respeito de questões espirituais e
sua relação com o plano social.
As razões do conservadorismo dos espíritas
são aquelas mesmas do conservadorismo religioso. No Brasil, ao se constituir
como movimento de massas religioso e cristão, o Espiritismo bebeu nas
referências das demais religiões cristãs presentes de modo hegemônico na
sociedade nacional. Com isso, afrouxou seus laços com o progressismo das lutas
sociais de vanguarda e dos pensamentos políticos de combate e de transformação.
Mas, em diferença das religiões, que têm por horizonte prático exatamente o que
seu escopo teórico permite, no caso dos espíritas, isso se dá em termos de
descompasso. Tal qual a necrose dos chamados socialistas reais do leste europeu
não resume nem é a única experiência possível de luta socialista plena pela
superação do capitalismo, nos espíritas não se encerra o Espiritismo.
O potencial progressista do pensamento social
do Espiritismo está no fato de que é filho da razão, não da crença. Sendo
contemporâneo, e enxergando na sociedade o dever de uma profunda igualdade
necessária de espíritos iguais, em face da sociabilidade presente, capitalista,
o pensamento espírita só há de ser transformador, socialista. O Espiritismo,
lastreado necessariamente em percepções racionais e científicas desde suas raízes
pós-iluministas, está no mesmo contexto das mais progressistas posições a
respeito da sociedade. Sua perspectiva transformadora, então, representa uma
crítica à sociabilidade presente. É preciso compreender tais impasses para
poder fazer com que o movimento espírita, no plano teórico e prático, seja
vanguarda de crítica, transformação social e superação das explorações
presentes. O pensamento social espírita deve se emparelhar com o que de mais
radical, fraterno, libertário e pleno o pensamento social geral conseguir
vislumbrar, porque o pensamento social espírita e sua prática serão iguais aos
melhores pensamentos e práticas que a sociedade tiver de si própria.
Grande Mascaro! Suas palavras, sempre necessárias.
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