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HOMOFOBIA E TRANSFOBIA NO MOVIMENTO ESPÍRITA

 


Diferentemente de outros artigos, o que vai ser colocado aqui terá caráter mais pessoal, com base em relatos e experiências confessadas em conversas ao vivo e pelas redes sociais, bem como relatos expostos nos programas que produzimos no âmbito do Coletivo de Estudos Espiritismo e Justiça Social (Cejus), especialmente no programa de bate-papo chamado “Vem de Insta”, no Instagram, cujos vídeos também estão disponíveis em nosso canal do YouTube.

 

RELATOS PESSOAIS

            No final da minha adolescência, participei muito rapidamente do movimento jovem de uma casa espírita na Baixada Fluminense. Naquela época, nutria dúvidas com relação à vivência da minha sexualidade, a ponto de me permitir ter um breve relacionamento com uma garota que se interessou por mim, mas que não conseguia sequer beijar. Além de certa pressão familiar, havia também a orientação de livros e membrs do movimento espírita que orientavam que a vivência heterocisnormativa era a mais de acordo com as orientações espirituais. Certamente, foi um período bastante delicado; após período de afastamento por conta dos estudos acadêmicos, mantive meu estudo domiciliar, mas sempre pesquisando sobre o assunto. O que me ajudou a tomar outras resoluções veio a partir de um livro chamado “Além do Azul e do Rosa”, de Gibson Bastos, além de outros livros com outras visões para entender melhor a abordagem envolvendo uma possível visão espiritual com relação à orientação sexual.

            Passada essa fase de dúvidas, estive muito presente em alguns movimentos de militância e estudos, como o grupo e-jovens e oficinas da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS), que me ajudaram a entender inclusive preconceitos que não sabia que nutria. Nada como a convivência com pessoas, colocando suas posições e expondo seus lugares de fala. Ali entendi também os pilares da sexualidade, que vão além do biológico, que envolve o órgão sexual, como também a identidade de gênero e os comportamentos sexuais.

            Ao mesmo tempo, deparei-me com a situação delicada de um colega de mocidade espírita: expulso de casa pelo pai, morava com o namorado e lutava para sobreviver como camelô. O preço da felicidade acabou também o afastando do movimento espírita, onde sofreu homofobia de trabalhadores, encontrando amparo na Umbanda.

 

FASE MAIS RECENTE

            Retornei às atividades espíritas em uma casa da região serrana fluminense, na qual me senti mais acolhido do que nas casas da Baixada. E fiquei bastante feliz por contar com a presença de uma palestrante assumidamente bissexual. Além disso, soube que houve abordagens sobre homossexualidade bastante pertinentes e coerentes não somente com a doutrina espírita em sua visão progressiva e progressista, mas também com direito a um seminário sobre o assunto sob o patrocínio de uma Associação Médico-Espírita.

            Também tive contato com os livros do médico Andrei Moreira, “Homossexualidade sob a ótica do Espírito Imortal” e “Transexualidades sob a ótica do Espírito Imortal”, que têm sido alentos importantes com abordagens corajosas, ainda que com um caráter conservador, sobre esses temas com base aliando ciência e obras psicografadas, além de relatos de pessoas que sofreram na pele as situações e preconceitos. Há também alguns romances psicografados; contudo, não tive possibilidade de me dedicar a essas leituras para tecer considerações.

            Pouco depois, com o advento dos movimentos de extrema-direita, vi-me bastante preocupado com essa história inventada da ideologia de gênero, que sabia que não tinha nenhum vínculo com os estudos de gênero muito menos com a visão científica que deveria dominar no movimento espírita. Numa turma de estudo sistematizado, fiquei chocado quando trouxeram um grande palestrante trazendo esse assunto, trazendo uma polêmica estéril e desnecessária. Na época, ressaltei que estudava gênero há cerca de 20 anos e que esse assunto era completamente distinto da realidade dos estudos de gênero – algumas pessoas que escutaram meu esclarecimento olhares de censura, mas guardaram silêncio. Contudo, ficou tudo mais difícil quando outro palestrante fez questão de ressaltar a existência dessa farsa, colocando-me em posição desconfortável perante diverses membres da instituição. Na época, pensei em me afastar do movimento espírita.

            Posteriormente, com o advento dos coletivos de esquerda, tive a felicidade de tratar desses assuntos com maior liberdade, e num dos quais iniciei um trabalho voltado para a militância LGBTQIA+, além de possibilidade de estabelecer contatos e obter melhores esclarecimentos. Isso foi possível por conta de um grupo, formado pelo irmão de jornada Franklin Félix, que uniu diverses de nós, membres dessa imensa comunidade, ansiosos de espaços de acolhimento. Ali, pude retomar os diálogos e entender como um se posiciona. Até hoje, boa parte desses depoimentos esclarecedores estão no perfil do Instagram @lgbtqiamaisespiritas; outras dinâmicas foram feitas em grupo de Whatsapp.

            A partir desse grupo, pude trazer algumes irmanes para trazerem suas experiências. Felizmente, a maioria foi bastante interessante, não somente de acolhimento em âmbito de mocidades espíritas, mas também de permissão de desenvolvimento e comando de trabalhos, como palestras, estudos, passes, entre outros. Alguns desses relatos permitiram os bate-papos no “Vem de Insta” com o objetivo de mostrar que é possível ter um movimento espírita, mesmo dentro do âmbito institucional.

            Por outro lado, houve também relatos bastante tristes, de discriminações muito cruéis contra travestis e homens e mulheres trans. Algumas dessas pessoas encontraram acolhimento em outras doutrinas, como a Umbanda; outras ingressaram nas hostes políticas, militando pelos direitos LGBTQI+.

            Percebe-se, dessa forma, uma certa aceitação de membres do movimento espírita institucional com orientações sexuais não heterossexuais; contudo, há bastante dificuldade na maior parte do movimento espírita com relação a lidar com identidades de gênero que não seja a cisgeneridade.

 

“ENQUANTO HÁ VIDA, HÁ ESPERANÇA.” (ECLESIASTES 9:4)

            Por mais que não tenhamos um apanhado geral sobre esse tema nem uma abordagem ampla no movimento espírita brasileiro, sempre é possível que tenhamos a possibilidade de melhorar o acolhimento de espíritas não heterossexuais cisgêneres: basta estudar e deixar os preconceitos de lado.

            O único ponto delicado ainda será o combate à ideia da farsa da ideologia de gênero, que merecerá um artigo específico para desmontarmos não somente essa farsa, mas também para lembrar que o conhecimento vem de estudos de muitos anos com psicólogos, psiquiatras e outros cientistas acadêmicos, não de religiosos rancorosos preconceituosos e corruptos. Um dia pretendo fazê-lo, assim que tiver disposição de encarar obras desse teor – confesso que tenho dificuldade em ler obras preconceituosas com o objetivo perversos, pois afeta meu equilíbrio emocional.

            É preciso também capacitar trabalhadores e palestrantes para entender a realidade da comunidade LGBTQI+, bem como ter contato com estudos de gênero, observando não somente que existem abordagens equivocadas – como as que atualmente estamos tendo ao estudar o livro “Ciência espírita e suas implicações terapêuticas”, de José Herculano Pires – mas também retomar essa aliança que Allan Kardec consagrou ao desenvolver a obra “A Gênese”, em que procurou estabelecer relações da doutrina espírita com a ciência da época.

            Enquanto o movimento institucional discute pratica e exclusivamente o evangelho e abordagens cada vez mais baseadas em obras teológicas (vide as palestras, os seminários e uma nova sequência criada pela Federação Espírita Brasileira chamada “Evangelho Redivivo”), façamos o caminho que está mais adequado a o que Kardec nos apresentou: estudemos também o que as ciências nos dizem, e estabeleçamos todas as relações possíveis.

 

Links:

Canal do Cejus, Playlist Espiritismo LGBT: https://www.youtube.com/playlist?list=PLogQ2Lho2Z1eT-KfQ6CZ6CkrCVWtTYvB9

 

LGBTQIA+ Espíritas: https://www.instagram.com/lgbtqiamaisespiritas/?hl=pt-br

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