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DE ESPÍRITA A FASCISTA: A SOMBRA BRASILEIRA

 


Para não ter começado espírita e terminar fascista, talvez seja interessante acompanhar o raciocínio de Manuel Porteiro na obra Conceito Espírita de Sociologia:

“As convulsões políticas e sociais do momento histórico em que vivemos nos obrigam a separar nossa atenção dos problemas de índole psicológica para fixá-la nos de índole econômica e social, que também ocupam uma das fases de nossos estudos e exigem ser tratados à luz do Espiritismo”. (p.3)

Eis o que nos convoca a fazer o exato instante, quando nestas terras brasileiras a envergadura da fé espírita segue levando multidões na procura pelas razões individuais para as dores pandêmicas, a ignorar deliberadamente o caráter histórico, de base política e econômica, que afeta esta hora de dor coletiva.

Não podemos nos eximir de associar esta experiência à forma como as políticas públicas estão sendo conduzidas no Brasil, desde o fatídico ano de 2016, quando o desmonte das propostas societárias de bem estar foi executado paulatinamente, acobertado pela rudeza de um golpe que também teve caráter ideológico e por isso amealhou apoiadores entre espíritas.

Mas se você ainda acreditar que enquanto espíritas nosso único compromisso é a prece e a caridade material, será o próprio Manuel Porteiro quem responderá:  “Somos evolucionistas, amamos a justiça, defendemos a verdade e trabalhamos ansiosos pelo bem, tanto individual como social  – desejamos uma sociedade melhor e desejamos seu pronto advento”. (p.3) Como poderíamos ficar indiferentes à medida do teto dos gastos, que congelou os investimentos em políticas públicas consideradas básicas, como saúde, por exemplo, por vinte anos? Como puderam espíritas caridosos apoiar este tipo de ato?

“Careceria, portanto, de exato conhecimento do Espiritismo quem acreditasse que este tem por única missão ocupar-se das coisas do espírito, dos problemas da alma”. (p.3) Haja vista o reconhecido liame que interliga matéria e espírito, trazendo intrínsecas buscas por amparo e saciedades; aportando nesta experiência encarnatória como herdeiros da criação, com direito de viver abundantemente. E não há como viver fora da sociedade. Portanto, o espaço social também é lócus santificado para o amor se manifestar politicamente.

Contudo, existem manifestações políticas de teor criminoso, e a estas nós jamais deveríamos aderir enquanto indivíduos caridosos, pois seu próprio timbre ressoa violência e morte. Foi exatamente a esta proposta dolorosa que muitos espíritas evocaram, ao misturarem suas preleções com jargões fascistas imbuídos na campanha política de Jair Bolsonaro. Parafraseando Porteiro: “Como poderíamos concordar com esta ordem social estabelecida sobre a desordem dirigida pelo império da força?” (p.12)

Ter apoiado Bolsonaro foi um erro de muitos espíritas, mas continuar apoiando é por certo uma adesão sombria.

 Seguimos batalhando pelo despertamento. “Como, enfim, poderíamos nos conformar com a situação do regime atual criado sobre privilégios iníquos, se o Espiritismo nos fala de uma sociedade melhor, de paz, de amor, de fraternidade e justiça, e da possibilidade de realizá-la?” (p.12-13)

Estamos em pleno século XXI, assistindo o retorno das piores ideias que a humanidade já produziu, com o aval de muitos “cidadãos de bem”, entre eles espíritas. Precisamos fortalecer uma revolução entre nós? Sim! Uma revolução pela vida e pela liberdade, nossa e dos demais, de todos os seres! “A revolução se realiza nas ideias e nos sentimentos morais, sobre uma base espiritual positiva, porque sem ela não pode haver emancipação social nem justiça, aperfeiçoamento individual ou coletivo”. (p.15)

A pandemia aguçou a desdita brasileira justamente pela intencionalidade nefasta do projeto de governo, que desde o início se esmera em enfraquecer a autonomia do país, seja com as políticas externas quanto internas. A retirada de direitos incapacitou a sobrevivência dos vulneráveis, e como decorrência do empobrecimento já nos encontrávamos em decadência óbvia, sempre justificada por discursos arbitrários e notícias falsas.

Por essa razão, ficou sofrível assistir o empenho de médiuns bolsonaristas explicando as mortes com discursos cármicos e punitivistas. Os negacionistas espíritas induziram muitos irmãos ao erro na crença, na conduta e na cristalização das vozes individualistas, que afinam cada vez mais com o fascismo.

“O fascismo se apresenta a todos os povos com uma ideologia enganosa, que seduz por sua novidade…Pátria, tradição, história, nacionalismo, são seus temas líricos; golpe de estado, virada reacionária, uma vez conquistado seu objetivo…Religião e espiritualismo, paz e trabalho, patriotismo e família…como meios de capturar os incautos: materialismo vulgar, carência de sentimentos religiosos, de moralidade e espiritualidade, uma vez no poder. Em suma: ditadura e despotismo para tornar permanentes os privilégios de uma classe que vive às expensas de outra.” (p28)

Eis os riscos que muitos espíritas correm quando se aglutinam em torno das mesquinhas vibrações dos apoiadores de Bolsonaro, que induz gente ufanista a autorizá-lo aplicar um golpe de estado e espezinha sobre a dor e a fome, exibindo a usurpação da riqueza desse país em causa familiar, deixando os hospitais sem recursos e as vítimas da pandemia sem oxigênio, sem esperança, sem vida.

Basta de repetir que “assim seja”, é hora de gritar que “assim não dá para ser espírita”! O nome justo de quem apoia o massacre de Bolsonaro ao Brasil é fascista!

 

 

PORTEIRO, Manuel S. Conceito Espírita de Sociologia. Edição digital. PENSE – Pensamento Social Espírita. <www.viasantos.com/pense > Fevereiro de 2008

Comentários

  1. Texto duro e necessário. E o que dói é que ainda existem espíritas fascistas.

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  2. O que interessante notar nesse aspecto, é que se alinham em pensamento a pessoas com comportamentos universalmente reconhecidas como fascistas e não aceitam ser assim também definidos. Jorge Luiz

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