Pular para o conteúdo principal

ESPIRITISMO À BRASILEIRA: CORRENTES PRECURSORAS

 

Litografia de Arnoult (1847) representa o falanstério dos sonhos Reprodução

          É possível que o leitor fique intrigado com o título fazendo a referência ao particularismo do Espiritismo brasileiro, como se houvesse vários espiritismos. A interrogação procede. Contudo, a referência é cabível devido às particularidades que a Doutrina Espírita adquiriu no Brasil.

            Ao falar do Espiritismo no Brasil, tem-se necessariamente que referir as suas correntes precursoras: mesmerismo, fourierismo e homeopatia.

            Com este artigo se iniciará uma série que contará a trajetória da chegada e da disseminação do Espiritismo no Brasil.


Mesmerismo ou magnetismo animal:

Franz Anton Mesmer, doutor em medicina da Faculdade de Viena, chegou a Paris em 1778, com a convicção da existência de um fluido invisível que envolvia todo o universo e penetrava em todos os corpos.

            É de conhecimento dos espíritas que Allan Kardec foi um magnetizador. Quem não se lembra do diálogo dele com o amigo, Fortier, quando soube pela vez dos fenômenos das mesas girantes?

No contato com o fenômeno das mesas girantes, Kardec concluiu que o fluido universal, cuja manipulação permitiria restabelecer a saúde, transmitir pensamentos, mover objetos etc., não era uma causa inteligente, portanto, insuficiente para explicar tais fenômenos. A sua conclusão foi de que deveria existir uma causa inteligente para tais fenômenos, concluindo que a causa dos fenômenos era a atuação dos espíritos.

A colônia de imigrantes franceses no Rio de Janeiro era formada em grande parte por jornalistas, professores e comerciantes. E foi através do fluxo e refluxo de migrantes e viajantes franceses que muitas das ideias pós-revolucionárias, entre as quais as de Mesmer, aportaram em solo brasileiro. Na realidade, atesta Ubiratan Machado, preferentemente, foram as francesas que se dispunham a enfrentar as intempéries do alto-mar e poderem um dia voltar à França com um farto pecúlio.

Machado afirmou que no final da década de 1840, o magnetismo já contava com um número razoável de adeptos, contudo, era coisa de iniciados. A maioria da população, para as suas consultas mágico-místicas, preferia recorrer ao feiticeiro.

A grande autoridade do magnetismo, à época, era o Dr. José Maurício Nunes Garcia, lente de Anatomia na Escola de Medicina da Corte.

Para os magnetizadores místicos, as comunicações com os espíritos eram possíveis porque se processavam através do fluido magnético, sendo captadas pelo sexto sentido das pessoas em transe.

Allan Kardec assim comentou um artigo publicado em um jornal à época:

 

“O Espiritismo e o magnetismo ligam-se por laços íntimos, como ciências solidárias. (...) Os Espíritos sempre preconizaram o magnetismo, quer como meio de cura, quer como causa primeira de uma porção de coisas; defendem a sua causa e vêm prestar-lhe apoio contra os seus inimigos. Os fenômenos espíritas têm aberto os olhos de muita gente, ao mesmo passo aliando essas pessoas ao magnetismo.”

           

A mediunidade de cura no Brasil passou a ser conhecida como passe a partir de uma mensagem ditada pelo Espírito Mesmer, inserta na Revista Espírita – Jan/1864:

 

“(...) enquanto o magnetizador ordinário se esgota, por vezes em vão, em dar passes, o médium curador infiltra um fluido regenerador pela simples imposição de mãos, graças ao concurso dos bons Espíritos.”

 

Fourierismo

Benoît Jules Mure, também conhecido como Bento Mure, foi o grande incentivador das outras duas ideias precursoras do Espiritismo.

Durante sua estada em Paris, ele teve contato com as ideias de Charles Fourier, um dos criadores do socialismo utópico, um dos pais do cooperativismo.

Fourier idealizou os falanstérios, que seriam criados através da associação voluntária de seus membros e nunca deveriam ser compostos por mais de 1600 pessoas, as quais viveriam juntas em um mesmo complexo edificado para acomodar todos os serviços coletivos. Cada pessoa seria livre para escolher seu trabalho, e o poderia mudar quando assim desejasse, mas os salários não seriam iguais para todos. Uma rede extensa desses falanstérios seria a base da transformação social que por meio da experimentação daria origem a um novo mundo.

O imperador Pedro II foi um dos entusiastas das ideias de Fourier, doou para Mure um terreno de quatro léguas na província de Santa Catarina e a quantia de 60.000 réis, uma quantia considerável à época que permitiria o transporte e estabelecimento dos primeiros colonos vindos da França, no âmbito da União Industrial de Paris. Isto, contudo, iria apoiar uma corrente de pensamento já existente no Brasil e que tinha como representante mais importante o Marquês de Maricá.

Os falanstérios de Mure receberam, entre 1842 e 1843, um total de 217 franceses pertencentes a todas as profissões e não sobreviveram às dissensões internas e à partida de seu fundador, em 1844. Mure se decepcionou com as dificuldades práticas das ideias fourieristas e volta, portanto, à sua primeira paixão e se instalou no Rio de Janeiro para se dedicar à medicina homeopática.

 

Homeopatia

            Mure aliou-se ao cirurgião português João Vicente Martins, que partilhou suas ideias sobre a melhoria social, e fundou com ele e mais dois médicos brasileiros – Dr. Gama de Castro e Dr. Lisboa – o primeiro dispensário “destinado a propagar a homeopatia nas classes pobres.”

            Mure teve mais sucesso nessa empreitada que a anterior, do falanstério em Santa Catarina. Após o dispensário, ele fundou a “Botica Homeophática Central”, a primeira farmácia do tipo no Brasil. Começou a escrever artigos na imprensa local e fundou, em 1845, a Escola de Homeopatia.

            A homeopatia é uma doutrina médica alternativa criada por Cristiano Frederico Samuel Hahnemann, médico alemão que viveu de 1755 a 1843.

            A interpretação metafísica dos conceitos de Hahnemann de organismo, espírito, força vital, saúde e doença facilitariam a adesão de inúmeros médicos e leigos espiritualistas à doutrina médica não local. Há uma semelhança entre os conceitos de Hahnemann e os de Kardec.

            Com a chegada do Espiritismo ao Brasil, tornou-se comum a prática da caridade pelo atendimento homeopático aos necessitados.

            Em 1905, só através da Federação Espírita Brasileira foram prescritas 146.589 receitas homeopáticas, das quais foram aviadas gratuitamente, na farmácia da própria Federação, que atendia aos Serviços de Assistência aos Necessitados, 101.645 receitas.

            A crescente adesão de médiuns receitistas e de curandeiros acabou atraindo as atenções da classe médica e do clero católico; principalmente da classe médica, ciosa de manter o monopólio do exercício da medicina e que se opunha tenazmente, às formas alternativas de cura.

            Os católicos desencadearam uma contraofensiva na tentativa de barrar de eliminar a ação dos curandeiros e receitistas por se constituir um sintoma de popularidade de crenças estranhas à religião católica. Da mesma forma, os positivistas, apesar de defenderem a prática médica sem obrigatoriedade de diploma, não viam com simpatia as formas populares de medicina por não serem condizentes com o estado positivo da sociedade que almejavam alcançar.

            Com a elaboração do Código Penal de 1890, a pressão foi exercida sobre os juristas responsáveis, o que resultou em três artigos que visavam inibir essas práticas.

            Com o propósito de minimizar os efeitos das medidas, elegeram o Dr. Bezerra de Menezes para a presidência da Federação, em 1895, além de outros motivos, teve muito a ver com as perseguições desencadeadas a partir do Código Penal de 1890. Como médico formado pela Faculdade do Rio de Janeiro, membro da Academia Imperial de Medicina, médico do Exército, além de político de destaque, imprimia respeitabilidade aos serviços prestados pela instituição, apesar de trabalhar, ele próprio, como médium receitista, já que reconhecia sua ignorância em relação à homeopatia, só prescrevendo receitas homeopáticas quando em transe mediúnico.

            Com o Dr. Bezerra de Menezes, o sentido religioso pautado na flâmula “Fora da Caridade não há Salvação”, teve como viés o atendimento aos doentes do corpo e do espírito. O Espiritismo experimental passou ao segundo plano, cedendo lugar ao estudo da obra de Kardec e de Roustaing, e sua aplicação.

            A partir de 1900, a expansão do Espiritismo no Rio de Janeiro deveu muito à prática da homeopatia pelos médiuns, o que iria se intensificar nas décadas seguintes.

            Vê-se que sinais de todas essas correntes ainda são presentes no movimento espírita atual, desde o assistencialismo social, os receituários mediúnicos e a fluidoterapia espírita.

 

 

Referências:

AUBRÉE, Marion & LAPLATINE, François. A mesa, o livro e os espíritos. Alagoas: UFAL, 2009.

DAMÁZIO, Sylvia F. Da elite ao povo. Rio de Janeiro: Betrand, 1994.

GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

MACHADO, Ubiratan. Os intelectuais e o espiritismo. LACHÂTRE: Rio de Janeiro, 1997.

           

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O CERNE DA QUESTÃO DOS SOFRIMENTOS FUTUROS

      Por Wilson Garcia Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina. ***   Inicialmente. O pior das discussões sobre os fundamentos do Espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

CONFLITOS E PROGRESSO

    Por Marcelo Henrique Os conflitos estão sediados em dois quadrantes da marcha progressiva (moral e intelectual), pois há seres que se destacam intelectualmente, tornando-se líderes de sociedades, mas não as conduzem com a elevação dos sentimentos. Então quando dados grupos são vencedores em dadas disputas, seu objetivo é o da aniquilação (física ou pela restrição de liberdades ou a expressão de pensamento) dos que se lhes opõem.

DIA DA ESPOSA DO PASTOR: PAUTA PARASITA GANHA FORÇA NO BRASIL

     Imagens da internet Por Ana Cláudia Laurindo O Dia da Esposa do Pastor tem como data própria o primeiro domingo de março. No contexto global se justifica como resultado do que chamam Igreja Perseguida, uma alusão aos missionários evangélicos que encontram resistência em países que já possuem suas tradições de fé, mas em nome da expansão evangélico/cristã estas igrejas insistem em se firmar.  No Brasil, a situação é bem distinta. Por aqui, o que fazia parte de uma narrativa e ação das próprias igrejas vai ocupando lugares em casas legislativas e ganhando sanções dentro do poder executivo, como o que aconteceu recentemente no estado do Pará. Um deputado do partido Republicanos e representante da bancada evangélica (algo que jamais deveria ser nominado com naturalidade, sendo o Brasil um país laico (ainda) propôs um projeto de lei que foi aprovado na Assembleia Legislativa e quando sancionado pelo governador Helder Barbalho, no início deste mês, se tornou a lei...

A FÉ COMO CONTRAVENÇÃO

  Por Jorge Luiz               Quem não já ouviu a expressão “fazer uma fezinha”? A expressão já faz parte do vocabulário do brasileiro em todos os rincões. A sua história é simbiótica à história do “jogo do bicho” que surgiu a partir de uma brincadeira criada em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro. No início, o zoológico não era muito popular, então o jogo surgiu para incentivar as visitas e evitar que o estabelecimento fechasse as portas. O “incentivo” promovido pelo zoológico deu certo, mas não da maneira que o barão imaginava. Em 1894, já era possível comprar vários bilhetes – motivando o surgimento do bicheiro, que os vendia pela cidade. Assim, o sorteio virou jogo de azar. No ano seguinte, o jogo foi proibido, mas aí já tinha virado febre. Até hoje o “jogo do bicho” é ilegal e considerado contravenção penal.

“TUDO O QUE ACONTECER À TERRA, ACONTECERÁ AOS FILHOS DA TERRA.”

    Por Doris Gandres Esta afirmação faz parte da carta que o chefe índio Seattle enviou ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, em 1854! Se não soubéssemos de quem e de quando é essa declaração poder-se-ia dizer que foi escrita hoje, por alguém com bastante lucidez para perceber a interdependência entre tudo e todos. O modo como vimos agindo na nossa relação com a Natureza em geral há muitos séculos, não apenas usando seus recursos, mas abusando, depredando, destruindo mananciais diversos, tem gerado consequências danosas e desastrosas cada vez mais evidentes. Por exemplo, atualmente sabemos que 10 milhões de toneladas de plásticos diversos são jogadas nos oceanos todo ano! E isso sem considerar todas as outras tantas coisas, como redes de pescadores, latas, sapatos etc. e até móveis! Contudo, parece que uma boa parte de nós, sobretudo aqueles que priorizam seus interesses pessoais, não está se dando conta da gravidade do que está acontecendo...

JESUS TEM LADO... ONDE ESTOU?

   Por Jorge Luiz  A Ilusão do Apolitismo e a Inerência da Política Há certo pedantismo de indivíduos que se autodenominam apolíticos como se isso fosse possível. Melhor autoafirmarem-se apartidários, considerando a impossibilidade de se ser apolítico. A questão que leva a esse mal entendido é que parte das pessoas discordam da forma de se fazer política, principalmente pelo fato instrumentalizado da corrupção, que nada tem do abrangente significado de política. A política partidária é considerada quando o indivíduo é filiado a alguma agremiação religiosa, ou a ela se vincula ideologicamente. Quanto ao ser apolítico, pensa-se ser aquele indiferente ou alheio à política, esquecendo-se de que a própria negação da política faz o indivíduo ser político.

JUSTIÇA COM CHEIRO DE VINGANÇA

  Por Roberto Caldas Há contrastes tão aberrantes no comportamento humano e nas práticas aceitas pela sociedade, e se não aceitas pelo menos suportadas, que permitem se cogite o grau de lucidez com que se orquestram o avanço da inteligência e as pautas éticas e morais que movem as leis norteadoras da convivência social.  

FUNDAMENTALISMO AFETA FESTAS JUNINAS

  Por Ana Cláudia Laurindo   O fundamentalismo religioso tenta reconfigurar no Brasil, um país elaborado a partir de projetos de intolerância que grassam em pequenos blocos, mas de maneira contínua, em cada situação cotidiana, e por isso mesmo, tais ações passam despercebidas. Eles estão multiplicando, por isso precisamos conhecer a maneira com estas interferências culturais estão atuando sobre as novas gerações.