Pular para o conteúdo principal

A PRECE, OS ESPÍRITAS E O RITUAL

 

                     Muitas lives realizadas por espíritas e instituições espíritas nas mídias sociais vêm se utilizando de forma indevida do recurso da prece, nas aberturas e nos encerramentos.

            A prece cabe nesses eventos, não ao vivo, mas em off. Ou seja, o apresentador ou a equipe de apresentadores realiza a prece antes de entrar ao vivo.

A afirmativa pode causar espanto para alguns leitores. Mas é exatamente o que afirma Allan Kardec. O tema já foi abordado nesse sítio, mas a oportunidade exige nova abordagem.

O momento histórico e cultural em que o Espiritismo surgiu na Terra, no século XIX, na França, era um período de convergências de conhecimentos. O Espiritismo chegou ao solo francês como filosofia que explicava e transformava o mundo, essa era uma necessidade dos tempos.

Na segunda metade do século XIX, o movimento espiritualista se colocou como uma revolução do pensamento de sua época, num século que aboliu os preconceitos e as perseguições religiosas e teve na ciência um avanço intelectual, um aliado valioso. Este movimento aplicou a ciência nas comunicações com os mortos, investigou os fenômenos na sua lógica e veracidade, mas, também, combateu o materialismo simplista e lançou bases para pensar as verdades religiosas, antes dominadas pelo dogmatismo da religião tradicional.

Um fato curioso, para se fixar bem esse momento, está na obra de Arthur Conan Doyle (1859-1930), escritor e médico britânico, nascido na Escócia, mundialmente famoso por suas 60 histórias sobre o detetive Sherlock Holmes, publicada no Brasil como História do Espiritismo, e no original, História do Neoespiritualismo.

Esses realces são necessários para que, de uma vez por todas, afaste-se a possibilidade de Espiritismo como religião. Allan Kardec, coerente com essa realidade, utiliza-se do termo Filosofia Espiritualista, ao título de O Livro dos Espíritos. Obviamente, considerando as narrativas acima, adicionadas ao caráter filosófico e moral, jamais caberia a introdução da prece em suas atividades.

Ademais, Kardec, em Viagem Espírita em 1862, no capítulo XI, tornou evidente a sua compreensão do que ele quer dizer religiosamente: “Tudo nas reuniões espíritas deve se passar religiosamente, isto é, com gravidade, respeito e recolhimento.” Em seguida, ele pronunciou o motivo principal dessa necessidade, mais necessário em caráter da abrangência dos eventos virtuais. Ele complementou: “Mas é preciso não esquecer que o Espiritismo se dirige a todos os cultos.”

 Na sequência do discurso, ele foi mais rigoroso e esclareceu:

 

“(...) aconselhamos a abstenção de qualquer prece litúrgica, sem exceção mesmo da Oração Dominical, por mais bela que seja. Como, para fazer parte de um grupo espírita, não se exige que ninguém abjure sua religião, e permite-se que cada um faça a seu bel prazer e mentalmente, a prece que julgar a propósito. O importante é que não haja nada de ostensivo e, sobretudo, nada de oficial.(...)”

 

Em a Revista Espírita, de dezembro de 1868, ao responder, filosoficamente, se o “Espiritismo é uma Religião?”, ele recomendou o seguinte: “As reuniões espíritas podem, pois, ser feitas religiosamente, isto é, com o recolhimento e o respeito que comportam a natureza grave dos assuntos de que se ocupa; pode-se mesmo, na ocasião, aí fazer preces que, em vez de serem ditas em particular, são ditas em comum, sem que, por isto, sejam tomadas por assembleias religiosas.”

A maneira que os espíritas introduziram a prece em suas atividades configura-se rito. Veja-se a definição de ritual, segundo o dicionário Larousse: “conjunto de práticas consagradas pelo uso, ou ditadas por normas, que se deve observar sem alteração em ocasiões determinadas.”

            É de fundamental importância  o espírita entender que em um evento pelas mídias sociais ele terá alcance de público de várias tendências religiosas e filosóficas, e até mesmo ateus e agnósticos. Na Revista Espírita, de 1862, Allan Kardec reforçou essa condição:

 

“O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; é de todas, e não pertence a nenhuma em particular. Por isso não aconselha a ninguém que mude de religião. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela sua consciência.”

 

            Cabe a cada envolvido nos processos doutrinários que redirecione os protocolos das atividades dirigidas ao público de maneira geral, para as orientações de Kardec, afinal, no preâmbulo do capítulo XXXVII de O Evangelho Segundo o Espiritismo, Kardec assinalou que: “Os Espíritos sempre disseram: A forma não é nada, o pensamento é tudo. Faça cada qual a sua prece de acordo com as suas convicções e da maneira que mais lhe agrade, pois um bom pensamento vale mais do que numerosas palavras que não tocam o coração.”

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS:

KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. São Paulo: EME, 1979.

_____________ O livro dos espíritos. São Paulo: LAKE, 2000.

_____________ Revista espírita, 1862. Brasília: FEB, 2004.

_____________ Revista espírita, 1868. Brasília: FEB, 2004.

 

SITE

<http://periodicos.pucminas.br/index.php/interacoes/article/view/18214/16536>.

<http://bibliadocaminho.com/ocaminho/tkardequiano/tkp/Ve/VeP2C11.htm>.

Comentários

  1. Muito interessante essa observação.

    Nos coletivos de esquerda, geralmente vamos direto ao ponto; já nas lives das casas espíritas, a prece faz parte desse ritual, além da leitura de página.

    ResponderExcluir
  2. Excelente artigo! Pena que muitos espíritas não compreendem ou não querem compreender os ensinamentos de Kardec.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

A ESTUPIDEZ DA INTELIGÊNCIA: COMO O CAPITALISMO E A IDIOSSUBJETIVAÇÃO SEQUESTRAM A ESSÊNCIA HUMANA

      Por Jorge Luiz                  A Criança e a Objetividade                Um vídeo que me chegou retrata o diálogo de um pai com uma criança de, acredito, no máximo 3 anos de idade. Ele lhe oferece um passeio em um carro moderno e em um modelo antigo, daqueles que marcaram época – tudo indica que é carro de colecionador. O pai, de maneira pedagógica, retrata-os simbolicamente como o amor (o antigo) e o luxo (o novo). A criança, sem titubear, escolhe o antigo – acredita-se que já é de uso da família – enquanto recusa entrar no veículo novo, o que lhe é atendido. Esse processo didático é rico em miríades que contemplam o processo de subjetivação dos sujeitos em uma sociedade marcada pela reprodução da forma da mercadoria.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

POR QUE SOMOS CEGOS DIANTE DO ÓBVIO?

  Por Maurício Zanolini Em 2008, a crise financeira causada pelo descontrole do mercado imobiliário, especialmente nos Estados Unidos (mas com papéis espalhados pelo mundo todo), não foi prevista pelos analistas do Banco Central Norte Americano (Federal Reserve). Alan Greenspan, o então presidente da instituição, veio a público depois da desastrosa quebra do mercado financeiro, e declarou que ninguém poderia ter previsto aquela crise, que era inimaginável que algo assim aconteceria, uma total surpresa. O que ninguém lembra é que entre 2004 e 2007 o valor dos imóveis nos EUA mais que dobraram e que vários analistas viam nisso uma bolha. Mas se os indícios do problema eram claros, por que todos os avisos foram ignorados?

A CIÊNCIA DESCREVE O “COMO”; O ESPÍRITO RESPONDE AO “QUEM”

    Por Wilson Garcia       A ciência avança em sua busca por decifrar o cérebro — suas reações químicas, seus impulsos elétricos, seus labirintos de prazer e dor. Mas, quanto mais detalha o mecanismo da vida, mais se aproxima do mistério que não cabe nos instrumentos de medição: a consciência que sente, pensa e ama. Entre sinapses e neurotransmissores, o amor é descrito como fenômeno neurológico. Mas quem ama? Quem sofre, espera e sonha? Há uma presença silenciosa por trás da matéria — o Espírito — que observa e participa do próprio enigma que a ciência tenta traduzir. Assim, enquanto a ciência explica o como da vida, cabe ao Espírito responder o quem — esse sujeito invisível que transforma a química em emoção e o impulso biológico em gesto de eternidade.