segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O ESPÍRITA E A SEGURANÇA PÚBLICA - FINAL

 


Nos dois primeiros artigos, trouxemos um problema e procuramos aspectos que a doutrina espírita permitiria um embasamento teórico.

            Passemos agora para algumas propostas vislumbradas a partir dos artigos, bem como algumas experiências práticas bem interessantes.

 

POSSÍVEIS PROPOSTAS

 

A) EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA

            A Wikipédia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Cidadania_moral_e_ética) ajuda-nos a lembrar alguns aspectos dessa disciplina:

            “O ensino de educação moral e cívica e, em alguns casos, também educação física, já vinham sendo praticados no Brasil, mas a critério dos estabelecimentos, tanto que, em 1936, a editora Civilização Brasileira lançou a tradução brasileira da obra de C. Wagner: Para Pequenos e Grandes - Educação Moral. A adoção da disciplina no currículo escolar nacional ganhou efetividade com o Decreto-lei nº 2.072, de 8 de março de 1940, de Getúlio Vargas e do ministro Gustavo Capanema, que estabeleceu a obrigatoriedade da educação cívica, moral e física da infância e da juventude.

            O Ensino de EMC foi uma disciplina retomada em 1969 pela ditadura militar, considerado como tendo por objetivo controlar a juventude depois das revoltas estudantis na época, que contestavam o regime.”

            Percebam que essa disciplina, rebatizada como Cidadania Moral e Ética, foi colocada em vigor em períodos considerados de exceção ou de força, procurando estabelecer uma espécie de prevenção à violência entre a população mais pobre – o que não evitou práticas de torturas e outras formas de abuso por parte de autoridades, resquícios da “Predominância da natureza animal sobre a natureza espiritual” por parte destes, além do próprio uso da lei do mais forte.

            A inclusão dessa disciplina durante esses períodos foi inócua para combater a violência e fortalecer o estado de segurança pública simplesmente porque o sistema educacional sempre foi elitista, excluindo a população mais pobre; a inclusão dos mais pobres só foi feita de maneira mais evidente praticamente a partir da década de 1980; mesmo assim, ainda há muito para se conseguir sucesso escolar, visto que os índices de qualidade de educação ainda não são muito favoráveis.

            Portanto, usar a escola como o único meio de alcance de estabelecimento de uma cultura de paz é algo ainda bem difícil, pois alguns temas necessários ainda encontram barreiras por parte de alguns atores sociais (intolerância religiosa e homotransfobia, por exemplo). Todavia, um trabalho educativo moral, estabelecendo a alteridade como pauta, pode estimular a criticidade necessária para uma mudança significativa e uma cultura de paz.

 

B) JORNALISMO POLICIAL

            Em nome da audiência e com a ilusão de se realizar a prestação de serviço público, muitas emissoras de televisão e radiofonia adotaram programas que acompanham abordagens policiais. “Os programas deste gênero reforçam o senso comum de que a solução para a violência é combatê-la com mais violência, que a polícia deve ser implacável com o “bandido”.” (https://tvbrasil.ebc.com.br/vertv/episodio/jornalismo-policial). O que parecia ser mais um programa jornalístico, na prática, transformou-se numa espécie de difusora de discursos de ódio, com direito a apresentadores proferindo grosserias como liberdade de expressão – a bem da verdade, parecem exercer a liberdade de opressão – estimulando o linchamento de acusados de determinados crimes comuns, sem ao menos terem passado pelo devido processo legal.

            “São comuns entrevistas com acusados de cometer crimes na porta da cadeia, quando eles ainda estão sendo detidos. É nessa hora que a ética da profissão do policial e do jornalista entra em jogo. O policial tem o poder e o dever de não expor aquela pessoa porque ela ainda não foi julgada. ‘’De acordo com princípio da presunção da inocência não se deveria sequer expor aquela pessoa porque, até então, ela vai ser julgada, então o policial tem que preservar a imagem dela’’, afirma o Consultor em Segurança Pública do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), André Vianna.” (http://www.observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/o-jornalismo-policial-precisa-se-reinventar/)

 

            Desconheço dados específicos sobre o tema; contudo, percebe-se, no cotidiano, como as pessoas resolveram adotar discursos de ódio contra os considerados “marginais”, atribuindo parte desses problemas à política dos Direitos Humanos.

            No caso dos espíritas, ainda há um agravante: reconhecemos que somos Espíritos imortais em jornada evolutiva, e precisaremos passar por diversas encarnações até conseguirmos alcançar o estado de Espíritos Puros. Se o espírita considera um indivíduo qualquer enquadrado em qualquer crime (hediondo ou não) como irrecuperável ou desmerecedor de um julgamento adequado, deveria repensar sua adesão à doutrina dos Espíritos.

            Seria também um pouco complicado simplesmente solicitar a retirada do ar de tais programas, pois não deixa de ser uma prestação de serviço  - não se deve sonegar a informação; por outro lado, poder-se-ia transmitir a informação sem o discurso de ódio, com tratamento mais humano, estimulando um outro olhar sobre o “delinquente” (Por que ele infringiu a lei? Ele conhecia a lei? Houve orientação para ele jamais infringir a lei? Havia outras opções para ele agir? Por que não o fez? Foram-lhe fornecidas condições sociais para não delinquir?).

 

C) LEIS MAIS RÍGIDAS

            Analisando alguns dados do Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/), verificamos o quanto a notificação da violência somente cresceu ao longo dos anos.

            Ao mesmo tempo, houve diversas alterações do código penal (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm), em vigor desde 1940, no sentido de facilitar denúncia e detenção. O resultado é bem trágico, porque muitos presos ainda aguardam julgamento – ou seja, não foram prisões em flagrante, mas sim situações sob investigação.

            Em vista de a violência somente ter aumentado e que, muitas vezes, os crimes são considerados leves, há tentativas de converter penas de prisão por penas alternativas, como doação de cestas básicas e prestação de serviços.

            Além disso, não é difícil verificarmos o quanto o sistema prisional brasileiro é praticamente uma universidade do crime, não promovendo o que se convencionou chamar de ressocialização; por fim, marca o ex-presidiário pelo resto da vida.

            Três experiências internacionais demonstram que o caminho para a redução da violência é exatamente o contrário, conforme nos relata Luiz Flávio Gomes no artigo “Suécia e Holanda fecham prisões. Brasil fecha escolas e abre presídios” (https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121932808/suecia-e-holanda-fecham-prisoes-brasil-fecha-escolas-e-abre-presidios):

            “(...)

Uma boa pista que se poderia sugerir para entender essas abissais diferenças pode residir na cultura de cada país: patriarcal ou alteralista. Um ponto relevante consiste em examinar o quanto os países mais liberais já se distanciaram do arquétipo do Pai (patriarcal) para fazer preponderar o arquétipo da alteridade. No campo econômico, apesar de todas as crises mundiais e locais, as nações mais prósperas neste princípio do século XXI (países nórdicos, Suíça, Canadá, Japão etc.) são as mais cooperativas, as mais solidárias (ou seja, as que contam com menos desigualdades). As que seguem mais firmemente o arquétipo da alteridade (não o patriarcado). Trata-se, neste caso, de uma cooperação intencional, deliberada. O progresso econômico sustentável depende dessa prática cooperativa. Nenhuma sociedade é rica plenamente se grande parcela da sua população está mergulhada na miséria e na pobreza.

            (...)

            Os tribunais suecos vêm aplicando sentenças mais lenientes a delitos relacionados às drogas, depois de uma decisão do supremo tribunal do país em 2011, o que explica ao menos em parte a queda súbita no número de novos presidiários.

            (...)

            Hanns Von Hofer, professor de criminologia na Universidade de Estocolmo, disse que boa parte da queda no número de detentos pode ser atribuída a uma recente mudança de política que favorece regimes de liberdade vigiada de preferência a sentenças de prisão em caso de pequenos roubos, delitos relacionados a drogas e crimes violentos.

            (...)

            Uma série de cortes foi feita na tentativa de se criar de condições mais austeras para os presos na Holanda. Algumas atividades oferecidas aos presos agora serão limitadas a 28 horas por semana, e mais da metade de todos os prisioneiros vão ser alocados em várias celas conjuntas.

            O secretário de Estado da Segurança e Justiça, Fred Teeven, o responsável por trás dos planos, espera aumentar o uso de identificação eletrônica, a fim de preencher a lacuna deixada pelas instituições de fechamento. Aqueles presos que estiverem detidos com aparatos eletrônicos, serão forçados a procurar e manter um emprego para si, e se eles não conseguirem, serão forçados a fazer serviço comunitário em seu lugar. Se um detento eletrônico não tiver um emprego, então a ele só será permitido deixar sua residência por até duas horas por dia.

            (...)

            A Noruega associa as baixas taxas de reincidência ao fato de ter seu sistema penal pautado na reabilitação e não na punição por vingança ou retaliação do criminoso. A reabilitação, nesse caso, não é uma opção, ela é obrigatória. Dessa forma, qualquer criminoso poderá ser condenado à pena máxima prevista pela legislação do país (21 anos), e, se o indivíduo não comprovar estar totalmente reabilitado para o convívio social, a pena será prorrogada, em mais 5 anos, até que sua reintegração seja comprovada.

            No presídio, um prédio, em meio a uma floresta, decorado com grafites e quadros nos corredores, e na qual as celas não possuem grades, mas sim uma boa cama, banheiro com vaso sanitário, chuveiro, toalhas brancas e porta, televisão de tela plana, mesa, cadeira e armário, quadro para afixar papéis e fotos, além de geladeiras. Encontra-se lá uma ampla biblioteca, ginásio de esportes, campo de futebol, chalés para os presos receberem os familiares, estúdio de gravação de música e oficinas de trabalho. Nessas oficinas são oferecidos cursos de formação profissional, cursos educacionais e o trabalhador recebe uma pequena remuneração. Para controlar o ócio, oferecer muitas atividades educacionais, de trabalho e lazer são as estratégias.

            A prisão é construída em blocos de oito celas cada (alguns deles, como estupradores e pedófilos ficam em blocos separados). Cada bloco contém uma cozinha, comida fornecida pela prisão e preparada pelos próprios presos. Cada bloco tem sua cozinha. A comida é fornecida pela prisão, mas é preparada pelos próprios detentos, que podem comprar alimentos no mercado interno para abastecer seus refrigeradores.

            Todos os responsáveis pelo cuidado dos detentos devem passar por no mínimo dois anos de preparação para o cargo, em um curso superior, tendo como obrigação fundamental mostrar respeito a todos que ali estão. Partem do pressuposto que ao mostrarem respeito, os outros também aprenderão a respeitar.

            A diferença entre o sistema de execução penal norueguês em relação ao sistema da maioria dos países, como o brasileiro, americano, inglês é que ele é fundamentado na ideia que a prisão é a privação da liberdade, e pautado na reabilitação e não no tratamento cruel e na vingança.

            O detento, nesse modelo, é obrigado a mostrar progressos educacionais, laborais e comportamentais, e, dessa forma, provar que pode ter o direito de exercer sua liberdade novamente junto a sociedade.

            (...)”

            Tudo bem, o Brasil não pertence ao primeiro mundo e é bem maior do que países de tamanho diminuto, como os mencionados; no entanto, os procedimentos adotados demonstra que um tratamento humanizado do encarcerado é muito mais eficiente. Além disso, oferecendo melhores condições de vida para a população, oportunidades de emprego e estudo, certamente haverá estímulo ao desenvolvimento de outro tipo de cultura, que não seja a punitivista.

            Se lembrarmos, do ponto de vista espírita, que cada criminoso também é um Espírito imortal em trajetória evolutiva, nada melhor do que criar um sistema assim.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Seria alta pretensão responder a todas as perguntas que o assunto suscita, bem como esgotar aqui todas as propostas para solucionar os problemas que impedem o estabelecimento da segurança pública efetivamente.

            O trabalho social exige muito além de ir até o presídio e conversar com presidiários, e mesmo tentar incutir valores morais aos moradores de comunidades carentes que se dirigem às casas espíritas para receber cestas de alimentação.

            Primeiramente, precisamos perceber que boa parte dos problemas envolvem a complexidade social de um país fundado numa sociedade patriarcal e voltado para o massacre das populações periféricas, impedindo-as de ter acesso aos serviços públicos, bem como oportunidades de serem inseridos na sociedade considerada civilizada.

            O Estado brasileiro não pode apenas servir aos chamados “humanos direitos”, nas palavras de lideranças que pregam mensagens parecidas com a epígrafe inicial. As instituições deveriam atender a todos os cidadãos e tratá-los com dignidade, promovendo, assim, o bem-estar social. Isso envolve uma mudança institucional e aproximação das populações periféricas por meio de postos avançados de serviços públicos nas comunidades carentes (são carentes exatamente por distância que o Estado adotou ao privilegiar áreas mais abastadas). Essa mudança somente é possível com a conscientização dessas classes abastadas ao perceber que, quanto mais serviços chegarem às comunidades, menos risco de violência teremos.

            Dentre outras possibilidades de mudança, poderíamos ter esses três eixos Educação – Mídia – Sistema Policial/Judicial mais humanizados e dedicados à detecção de problemas e busca de soluções, em vez de manutenção do sistema punitivista, tendo por consequência uma atitude considerada higienista, mantendo a população mais carente alijada de tratamentos mais adequados.

            Pode parecer uma visão quimérica o que foi exposto aqui; todavia, sem a criação de um ideal, especialmente com alguns passos – especialmente alguns já testados, como as experiências internacionais – ainda presenciaremos quadros lastimáveis como os mencionados na primeira parte deste artigo.

            Assim, despeço-me na esperança de ter podido estimular um debate necessário e com o qual a doutrina espírita, longe de se afastar, tem condições de colaborar de maneira propositiva.

 

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