sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

CRÔNICAS DO COTIDIANO: QUE É DEUS?








Gestores municipais publicam decreto “entregando a chave da cidade a Deus”.  Religiosa, a golpes de marreta, destrói imagem de santa da Igreja Católica mediante ritual que “glorifica” Deus. Pastor determina quantidade e valor de doações, afirmando que Deus já apontou para ele todos os fiéis escolhidos para a referida campanha. Bizarrices e violências foram e continuam sendo, ao longo das civilizações, patrocinadas invocando-se Deus.

É possível se perceber que decorridos mais de dois mil anos da Boa Nova anunciada por Jesus as religiões, em quase sua totalidade, não conseguiram incutir em alguns dos seus prosélitos a concepção de Deus pai e amor, como está definido em I João, 3:1: “Vede quão grande amor nos tem concedido o Pai, que fôssemos chamados filhos de Deus. (...).” Vê-se, pois, que Jesus estabelecido dentro de uma sociedade eminentemente patriarcal, através da definição de Deus consolida uma nova aliança, na qual se constitui a paternidade e a fraternidade universal, mostrando a grande diferença entre o mundo pagão e o cristão. No bojo dessa definição, realiza-se nova concepção do homem e do mundo. A esse respeito o professor e filósofo paulista Herculano Pires, avalia: “Da velha lei judaica não é modificado um só ponto referente ao bom procedimento do homem da Terra, mas tudo o mais é substituído pelo contrário. O culto a Deus é virado pelo avesso: nada mais de sacrifícios materiais, de rituais simbólicos, de privilégios sacerdotais. O único sacrifício é o das más paixões, do orgulho, da arrogância, da cupidez. A vaidade e a ambição devem dar lugar à humildade e à renúncia. A ignomínia da cruz transforma-se em santificação. As pitonisas e os oráculos são substituídos pelas manifestações mediúnicas das reuniões evangélicas, como vemos em Paulo, I Coríntios.”
Joseph Campbelll (1904-1978), estudioso norte-americano da mitologia e religião comparada, transitando com o pensamento de Pires, em sua festejadíssima obra O Poder do Mito, ao se referir aos conflitos religiosos em todos os aspectos, afirma que os adeptos das religiões: “não sabem como aplicar suas ideias religiosas à vida contemporânea e aos seres humanos em geral, não apenas à sua própria comunidade. É um terrível exemplo do fracasso da religião em conviver com o mundo moderno.  Essas tradições estão decidindo tudo pela força. Elas se desqualificaram para o futuro.”
Allan Kardec, por seu turno, demonstra o cuidado com essa questão, na pergunta primeira de O Livro dos Espíritos, quando questiona aos Reveladores Celestes: Que é Deus? Os Espíritos responderam: - Deus é a inteligência suprema, a causa primária de todas as coisas.
Percebe-se, com a acuidade que lhe é peculiar, que Kardec evita utilizar-se das expressões: quem é Deus? (implica identidade, personificação), ou o que é Deus? ( implica qualidade, condição).
A concepção espírita de Deus, converge para a concepção bíblica de Deus – Gênesis 1:26 - Então disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. (...).”  Na questão nº 76 de O Livro dos Espíritos, os Mentores espirituais assinalam, ao definir o que são os Espíritos: “seres inteligentes da criação. Povoam o Universo, fora do mundo material.” Por não obter essa compreensão, o homem concebeu Deus a sua imagem e semelhança, concepção essa que vem deteriorando as relações entre os homens e nações. Allan Kardec, na questão nº 9 de O Livro dos Espíritos, torna essas questões mais compreensíveis: “Sejam quais forem os prodígios pela inteligência humana, esta tem também uma causa, e quanto maior for a sua realização, maior deve ser a causa primária. Esta inteligência superior é a causa primária de todas as coisas, qualquer que seja o nome pelo qual o homem a designe.”  O Codificador radicalizando no propósito de desantropomorfizar a divindade, de forma didática elenca os atributos de Deus – questão nº 13 de O Livro dos Espíritos -:  eterno, infinito, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom
É crível, portanto, entender que através dos tempos o homem vem, paulatinamente, ampliando a sua consciência acerca da divindade, como bem explicita o professor Herculano Pires: “O homem finito não pode conceber o infinito como uno e absoluto, senão através das experiências do real.
Na obra As Formas Elementares da Vida Religiosa, resultado de pesquisa sobre sociologia religiosa e teoria do conhecimento, realizada pelo sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e filósofo francês Émile Durkheim, é fácil perceber que desde o totemismo até a concepção espírita, Deus continua sendo o mesmo, o que varia é a percepção do homem quanto à sua realidade. Sobre isso ele afirma: “(...) as categorias do pensamento humano são fixadas de uma forma bem definida; elas se fazem, se desfazem, se refazem permanentemente; mudam conforme os lugares e as épocas. A razão divina, ao contrário é imutável.” Concluindo seu raciocínio ele indaga: “De que modo essa imutabilidade poderia explicar essa incessante variabilidade? Ele responde a questão, colocando a religião, corretamente, como um produto eminentemente social. Oportuna, aqui, a classificação de Pestalozzi devidamente absorvida por Kardec sobre a natureza das religiões: natural, social e moral.
Portanto, o Deus social é concebido com a natureza humana o que facilmente resultou na divinização de Jesus. Observe-se nas narrativas dos exemplos acima que é recorrente a expressão “Senhor Jesus” se confundindo como apelo divino. Ora, em nenhum momento Jesus se afirmou como divindade, mas sim como filho do Pai (João 14:28).
Vê-se, pois, que as organizações religiosas pelo apelo na concepção antropomorfizada de Deus resulta simplesmente do propósito de manutenção do poder terreno, algo que Jesus condenava abertamente.
A esse respeito Ernest Renan, em sua obra Vida de Jesus, inserta um dia no Index da Igreja Católica, considerou:
“(...) Mas virá o dia em que a separação trará seus frutos, em que o domínio das coisas do espírito não mais chamará um “poder” e sim “liberdade”.(...).”

REFERÊNCIAS                                                                                                            

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução: Centro Bíblico Católico. 34. Ed. rev. São Paulo: Ave Maria, 1982. 2. Partes da Bíblia.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Palas Athena, 1990.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. LAKE: São Paulo, 2001.



2 comentários:

  1. Francisco Castro de Sousa4 de fevereiro de 2017 às 20:49

    Jorge Luiz, parabéns pelo texto que acabo de ler! Não é à toa que a cada dia que passa mais e mais pessoas acessam esse site! Bem que os leitores do exterior poderiam postar seus comentários, isso só viria a enriquecer esse veículo! Excelente texto!

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