Pular para o conteúdo principal

CRÔNICAS DO COTIDIANO: QUE É DEUS?








Gestores municipais publicam decreto “entregando a chave da cidade a Deus”.  Religiosa, a golpes de marreta, destrói imagem de santa da Igreja Católica mediante ritual que “glorifica” Deus. Pastor determina quantidade e valor de doações, afirmando que Deus já apontou para ele todos os fiéis escolhidos para a referida campanha. Bizarrices e violências foram e continuam sendo, ao longo das civilizações, patrocinadas invocando-se Deus.

É possível se perceber que decorridos mais de dois mil anos da Boa Nova anunciada por Jesus as religiões, em quase sua totalidade, não conseguiram incutir em alguns dos seus prosélitos a concepção de Deus pai e amor, como está definido em I João, 3:1: “Vede quão grande amor nos tem concedido o Pai, que fôssemos chamados filhos de Deus. (...).” Vê-se, pois, que Jesus estabelecido dentro de uma sociedade eminentemente patriarcal, através da definição de Deus consolida uma nova aliança, na qual se constitui a paternidade e a fraternidade universal, mostrando a grande diferença entre o mundo pagão e o cristão. No bojo dessa definição, realiza-se nova concepção do homem e do mundo. A esse respeito o professor e filósofo paulista Herculano Pires, avalia: “Da velha lei judaica não é modificado um só ponto referente ao bom procedimento do homem da Terra, mas tudo o mais é substituído pelo contrário. O culto a Deus é virado pelo avesso: nada mais de sacrifícios materiais, de rituais simbólicos, de privilégios sacerdotais. O único sacrifício é o das más paixões, do orgulho, da arrogância, da cupidez. A vaidade e a ambição devem dar lugar à humildade e à renúncia. A ignomínia da cruz transforma-se em santificação. As pitonisas e os oráculos são substituídos pelas manifestações mediúnicas das reuniões evangélicas, como vemos em Paulo, I Coríntios.”
Joseph Campbelll (1904-1978), estudioso norte-americano da mitologia e religião comparada, transitando com o pensamento de Pires, em sua festejadíssima obra O Poder do Mito, ao se referir aos conflitos religiosos em todos os aspectos, afirma que os adeptos das religiões: “não sabem como aplicar suas ideias religiosas à vida contemporânea e aos seres humanos em geral, não apenas à sua própria comunidade. É um terrível exemplo do fracasso da religião em conviver com o mundo moderno.  Essas tradições estão decidindo tudo pela força. Elas se desqualificaram para o futuro.”
Allan Kardec, por seu turno, demonstra o cuidado com essa questão, na pergunta primeira de O Livro dos Espíritos, quando questiona aos Reveladores Celestes: Que é Deus? Os Espíritos responderam: - Deus é a inteligência suprema, a causa primária de todas as coisas.
Percebe-se, com a acuidade que lhe é peculiar, que Kardec evita utilizar-se das expressões: quem é Deus? (implica identidade, personificação), ou o que é Deus? ( implica qualidade, condição).
A concepção espírita de Deus, converge para a concepção bíblica de Deus – Gênesis 1:26 - Então disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. (...).”  Na questão nº 76 de O Livro dos Espíritos, os Mentores espirituais assinalam, ao definir o que são os Espíritos: “seres inteligentes da criação. Povoam o Universo, fora do mundo material.” Por não obter essa compreensão, o homem concebeu Deus a sua imagem e semelhança, concepção essa que vem deteriorando as relações entre os homens e nações. Allan Kardec, na questão nº 9 de O Livro dos Espíritos, torna essas questões mais compreensíveis: “Sejam quais forem os prodígios pela inteligência humana, esta tem também uma causa, e quanto maior for a sua realização, maior deve ser a causa primária. Esta inteligência superior é a causa primária de todas as coisas, qualquer que seja o nome pelo qual o homem a designe.”  O Codificador radicalizando no propósito de desantropomorfizar a divindade, de forma didática elenca os atributos de Deus – questão nº 13 de O Livro dos Espíritos -:  eterno, infinito, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom
É crível, portanto, entender que através dos tempos o homem vem, paulatinamente, ampliando a sua consciência acerca da divindade, como bem explicita o professor Herculano Pires: “O homem finito não pode conceber o infinito como uno e absoluto, senão através das experiências do real.
Na obra As Formas Elementares da Vida Religiosa, resultado de pesquisa sobre sociologia religiosa e teoria do conhecimento, realizada pelo sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e filósofo francês Émile Durkheim, é fácil perceber que desde o totemismo até a concepção espírita, Deus continua sendo o mesmo, o que varia é a percepção do homem quanto à sua realidade. Sobre isso ele afirma: “(...) as categorias do pensamento humano são fixadas de uma forma bem definida; elas se fazem, se desfazem, se refazem permanentemente; mudam conforme os lugares e as épocas. A razão divina, ao contrário é imutável.” Concluindo seu raciocínio ele indaga: “De que modo essa imutabilidade poderia explicar essa incessante variabilidade? Ele responde a questão, colocando a religião, corretamente, como um produto eminentemente social. Oportuna, aqui, a classificação de Pestalozzi devidamente absorvida por Kardec sobre a natureza das religiões: natural, social e moral.
Portanto, o Deus social é concebido com a natureza humana o que facilmente resultou na divinização de Jesus. Observe-se nas narrativas dos exemplos acima que é recorrente a expressão “Senhor Jesus” se confundindo como apelo divino. Ora, em nenhum momento Jesus se afirmou como divindade, mas sim como filho do Pai (João 14:28).
Vê-se, pois, que as organizações religiosas pelo apelo na concepção antropomorfizada de Deus resulta simplesmente do propósito de manutenção do poder terreno, algo que Jesus condenava abertamente.
A esse respeito Ernest Renan, em sua obra Vida de Jesus, inserta um dia no Index da Igreja Católica, considerou:
“(...) Mas virá o dia em que a separação trará seus frutos, em que o domínio das coisas do espírito não mais chamará um “poder” e sim “liberdade”.(...).”

REFERÊNCIAS                                                                                                            

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução: Centro Bíblico Católico. 34. Ed. rev. São Paulo: Ave Maria, 1982. 2. Partes da Bíblia.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Palas Athena, 1990.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. LAKE: São Paulo, 2001.



Comentários

  1. Francisco Castro de Sousa4 de fevereiro de 2017 às 20:49

    Jorge Luiz, parabéns pelo texto que acabo de ler! Não é à toa que a cada dia que passa mais e mais pessoas acessam esse site! Bem que os leitores do exterior poderiam postar seus comentários, isso só viria a enriquecer esse veículo! Excelente texto!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

“BANDIDO MORTO” É CRIME A MAIS

  Imagens da internet    Por Jorge Luiz   A sombra que há em mim          O Espírito Joanna de Ângelis, estudando o Espírito encarnado à luz da psicologia junguiana, considera que a sociedade moderna atinge sua culminância na desídia do homem consigo mesmo, que se enfraquece tanto pelos excessos quanto pelos desejos absurdos. Ao se curvar à sombra da insensatez, o indivíduo negligencia a ética, que é o alicerce da paz. O resultado é a anarquia destrutiva, uma tirania do desconcerto que visa apagar as memórias morais do passado. Os líderes desse movimento são vultos imaturos e alucinados, movidos por oportunismo e avidez.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

OS FANATISMOS QUE NOS RODEIAM E NOS PERSEGUEM E COMO RESISTIR A ELES: FANATISMO, LINGUAGEM E IMAGINAÇÃO.

  Por Marcelo Henrique Uma mensagem importante para os dias atuais, em que se busca impor uma/algumas ideia(s), filosofia(s) ou crença(s), como se todos devessem entender a realidade e o mundo de uma única maneira. O fanatismo. Inclusive é ainda mais perigoso e com efeitos devastadores quando a imposição de crenças alcança os cenários social e político. Corre-se sérios riscos. De ditaduras: religiosas, políticas, conviviais-sociais. *** Foge no tempo e na memória a primeira vez que ouvi a expressão “todos aprendemos uns com os outros”. Pode ter sido em alguma conversa familiar, naquelas lições que mães ou pais nos legam em conversas “descompromissadas”, entre garfadas ou ações corriqueiras no lar. Ou, então, entre algumas aulas enfadonhas, com a “decoreba” de fórmulas ou conceitos, em que um Mestre se destacava como ouro em meio a bijuterias.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

ESPÍRITISMO E CRISTIANISMO (*)

    Por Américo Nunes Domingos Filho De vez em quando, surgem algumas publicações sem entendimento com a codificação espírita, clamando que a Doutrina Espírita nada tem a ver com o Cristianismo. Quando esse pensamento emerge de grupos religiosos dogmáticos e intolerantes, até entendemos; contudo, chama mais a atenção quando a fonte original se intitula espiritista. Interessante afirmar, principalmente, para os versados nos textos de “O Novo Testamento” que o Cristo não faz acepção de pessoas, não lhe importando o movimento religioso que o segue, mas, sim, o fato de que onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome ele estará no meio deles (Mateus XVIII:20). Portanto, o que caracteriza ser cristão é o lance de alguém estar junto de outrem, todos sintonizados com Jesus e, principalmente, praticando seus ensinamentos. A caridade legítima foi exemplificada pelo Cristo, fazendo do amor ao semelhante um impositivo maior para que a centelha divina em nós, o chamado “Reino de...

O CORDEIRO SILENCIADO: AS TEOLOGIAS QUE ABENÇOARAM O MASSACRE DO ALEMÃO.

  Imagem capa da obra Fe e Fuzíl de Bruno Manso   Por Jorge Luiz O Choque da Contradição As comunidades do Complexo do Alemão e Penha, no Estado do Rio de Janeiro, presenciaram uma megaoperação, como define o Governador Cláudio Castro, iniciada na madrugada de 28/10, contra o Comando Vermelho. A ação, que contou com 2.500 homens da polícia militar e civil, culminou com 117 mortos, considerados suspeitos, e 4 policiais. Na manhã seguinte, 29/10, os moradores adentraram a zona de mata e começaram a recolher os corpos abandonados pelas polícias, reunindo-os na Praça São Lucas, na Penha, no centro da comunidade. Cenas dantescas se seguiram, com relatos de corpos sem cabeça e desfigurados.