Uma questão vital para o Espiritismo é a sua
entrada na universidade. Há no Brasil um grande contingente de acadêmicos
espíritas, em diversas áreas do conhecimento. Mas até agora, pouquíssimos
assumiram o espiritismo como um discurso científico válido ou se empenharam em
demonstrar que Kardec foi um intelectual com contribuições importantes para a
filosofia, a ciência, a religião e a pedagogia. Alguns chegam a declarar a
inutilidade de tal tentativa, por verem a universidade refratária ou por lhe
atribuírem pouca importância, como cenário de debates. Muitos doutores têm uma
vida universitária burocrática e, se espíritas, não veem nenhum motivo para
perturbar sua carreira, defendendo uma ideia marginalizada. Assim, a questão é
a seguinte: é preciso mesmo levar o Espiritismo para a universidade? Por quê?
Para quê? Como? Para defender não só a necessidade, mas a urgência de se
adentrar o mundo acadêmico com a proposta espírita, farei antes um breve
histórico do papel da universidade através dos tempos.
Um
pouco de história
A universidade é uma das belas heranças que o
final da Idade Média nos deixou. Os séculos XII e XIII, que viram seu início,
foram palco das mudanças sociais, culturais e políticas, que desembocariam no
Renascimento. Aliás, o século XII é considerado como a primeira etapa do
movimento que tomaria mais tarde esse nome.
Mas não se pense que a universidade era essa
instituição morna e distante de hoje. O brilhante historiador Jacques Le Goff,
na obra Os Intelectuais na Idade Média, mostra como era a vida acadêmica de
então. Primeiro, muitas das universidades foram fundadas a partir de
corporações de estudantes ou professores. E mesmo as apoiadas por imperadores e
papas exerceram um papel de democratização e renovação do conhecimento. Foi
nessa época, que se deu a transmissão para o Ocidente dos tesouros gregos, que
vieram reconduzidos à Europa, graças à exuberante cultura árabe (que aliás
tinha suas universidades) e à cultura bizantina. Os embriões da ciência moderna
começam aí, com o desenvolvimento da matemática, da medicina, da volta do
direito romano… E a razão também inicia seu processo de libertação da fé
dogmática.
Do ponto de vista social, a comunidade
estudantil representava o elemento transformador, inquieto e até rebelde que
lançava as sementes de um novo mundo. No século XX, viu-se semelhante
comportamento até a década de 60, antes dessa apatia acrítica que tomou conta
da juventude pós-moderna.
Le Goff descreve como eram as aulas, pelo
menos na universidade de Paris. Os professores debatiam publicamente com alunos
e professores rivais. Havia polêmicas abertas e podia-se propor de improviso ou
para próximos encontros questões que o mestre teria de demonstrar sob rajadas
de perguntas e contra-argumentos. Ou seja, era preciso convencer o público
participante. Cenas assim podem ser vistas no filme Em nome de Deus, que
retrata a vida de Abelardo, dos primeiros mestres de Paris. Embora as questões
então discutidas nos pareçam irrelevantes, porque em sua maioria eram sutilezas
teológicas, não se pode negar que o processo da Escolástica medieval (em que
pese toda a influência autoritária da Igreja) foi uma tentativa de
racionalização da fé. Abelardo, por exemplo, um dos grandes racionalistas da
época, que aliás rendia culto ao Consolador, pode ser considerado precursor de
Descartes e até de Kardec. Foi quem libertou a lógica da teologia, firmando-a
como ciência autônoma.
Nas universidades medievais, ao contrário do
que se possa pensar, havia a representação de várias correntes e debates entre
elas. Mas o ápice de tal pluralidade ideológica e cultural foi o período áureo
da Espanha muçulmana (séculos XI, XII e XIII) onde cristãos, judeus e islâmicos
tiveram pela primeira e única vez na história um intercâmbio pacífico de ideias,
desencadeando o progresso científico e cultural da Europa, a partir do século
XII. Também nisto, a universidade teve papel preponderante, sobretudo a de Córdoba,
fundada pelos árabes. Desta cidade aliás, veio um dos maiores sábios islâmicos,
que exerceu influência sobre a cultura cristã, o médico e filosofo Aferroes.
Infelizmente, o fanatismo e a opressão fizeram o desfavor histórico de acabar
com essa experiência fantástica de pluralidade cultural, mergulhando a Europa
nas trevas da Inquisição. E justo na Espanha, em que essa democracia tinha sido
praticada, houve a maior repressão, com a expulsão definitiva de judeus e
árabes no século XV.
Depois, vemos no próprio Renascimento, o
início da ciência moderna, com os arautos da astronomia e da matemática, tendo
como cenário de seus estudos e docências, as universidades criadas na Idade
Média: Galileu foi professor das Universidades de Pisa e Pádua, Kepler estudou
na de Tübingen e deu aulas na de Graz (Áustria), Isaac Newton foi professor de
Cambrigde.
Também a Reforma passou pelas universidades.
Já com os precursores: Jan Huss foi reitor da Universidade de Praga; John
Wiclif estudou em Oxford e foi reitor de Filligham. Depois Lutero, foi doutor e
professor. Comenius, que lançou a pedagogia moderna sob a inspiração da
Reforma, esteve na Universidade de Heidelberg.
Mais tarde, toda a filosofia alemã que daria
uma guinada no pensamento ocidental, nos séculos XVIII e XIX, primeiro com a crítica
da razão, feita por Kant, depois com a dialética de Hegel, de que nasceu a
dialética marxista – e seus contemporâneos e sucessores, todos estiveram
ligados a universidades.
Nem é preciso citar o papel que elas tiveram
no século XX, com seu potencial de pesquisa e discussão de ideias, além dos
movimentos estudantis, como o de 68, que mudaram a face da juventude.
Esses exemplos são para mostrar que várias
revoluções conceituais, científicas e sociais, propostas no Ocidente no último
milênio, têm passado pelas universidades. É claro que também observamos nesta
instituição – como em todas – o abuso do poder, as vaidades pessoais em
detrimento da verdade, o conservadorismo e a estagnação que impedem o progresso
e o pluralismo. Mas apesar dos percalços que a imperfeita natureza humana
sempre introduz nas melhores coisas, a universidade conseguiu alcançar seus mil
anos, como instituição respeitável e digna de ser mantida, ainda que se possam
propor inúmeras reformas para que se adapte ao século XXI.
A
universidade brasileira
Um dos fatos mais chocantes da história do
Brasil foi o atraso em termos nossa universidade. Todos os países da América
(do Norte, Central e do Sul) tiveram as suas muito antes. Harvard (EUA) e Córdova
(Argentina) foram fundadas no século XVII. A do México, mais antiga, no século
XVI. Peru, Venezuela, Chile têm universidades com pelo menos 150 ou 200 anos. A
primeira universidade brasileira (a USP) é da década de 30 do século XX. Ou
seja, esta instituição milenar não tem nem um século no Brasil.
Talvez por isso estejamos demorando tanto a
pensar o mundo, de forma original, dando nossa contribuição filosófica e
científica à humanidade. Salvo raras cabeças que se destacam como estrelas
solitárias, não criamos escolas filosóficas, científicas ou pedagógicas. O que
a maioria dos acadêmicos brasileiros faz é pensar segundo autores importados.
Há mesmo um pânico generalizado e uma proibição implícita de se pensar por si.
Um exemplo: alguém faz uma tese na História. Terá de optar por uma corrente
como a marxista ou a história nova. Não há historiadores brasileiros, com
proposta alternativa. Na filosofia, o mesmo. Podem-se estudar filósofos antigos
e contemporâneos, mas onde estão os filósofos brasileiros? Há tomistas,
marxistas, hegelianos, kantianos etc. em nossa universidade, mas onde alguém
que tenha feito escola?
Mesmo quando o objeto é o Brasil, os métodos
são importados, a ponto de antropólogos, sociólogos, economistas brasileiros
(exceção feita a alguns do quilate de Darcy Ribeiro ou Sérgio Buarque de
Holanda) olharem fenômenos de nosso país com um olhar europeu ou americano,
como se fôssemos exóticos para nós mesmos. O Espiritismo, mas também a umbanda
e o candomblé, entram nesse contexto, pois alguns estudos antropológicos e
sociológicos a respeito assumem um discurso de distanciamento, como se tudo
isso não fizesse parte da nossa cultura. Ou seja, aquilo que é representativo
entre nós só entra na universidade como objeto quase folclórico, nunca como voz
representativa de um segmento. Um adepto do candomblé ou do Espiritismo farão
uma tese sobre os seus respectivos objetos, enquadrando-os numa cientificidade
supostamente isenta, o que significa dizer, por exemplo, que os orixás ou os
espíritos são categorias do imaginário.
Isso apenas para mencionar as áreas de
humanas. Nas exatas e médicas, a impossibilidade de se alternar o discurso é
maior. Nas humanas, há pelo menos a pluralidade de posições já estabelecidas lá
fora. Nas outras, parece que não chegou aqui a discussão que, pelo menos na Europa,
está abalando a forma positivista de fazer ciência, ou seja, o questionamento
pós-moderno, que desconstrói a própria noção de ciência. Os alunos de química,
medicina ou biologia continuam estudando suas disciplinas, como se elas não
tivessem pressupostos filosóficos, sem qualquer reflexão ética ou
epistemológica… Ou seja, faz-se ciência, sem se discutir o método científico.
O
paradigma do espírito
Se os acadêmicos espíritas brasileiros
compreenderem de fato a que vem o Espiritismo perceberão que o pensamento
espírita, assumido como uma visão de mundo, um método de conhecer e, portanto,
um novo paradigma – é justamente uma possibilidade original de filosofar, de
fazer história ou ciência. E essa originalidade pode ser uma contribuição
espírita à cultura brasileira e, ao mesmo tempo, uma contribuição brasileira à
cultura internacional. Mas ela precisa ser construída. Está implícita em
Kardec, mas longe de estar aplicada (com todas as suas articulações) nas várias
áreas do conhecimento. E essa construção só pode ser feita na universidade.
Em minha tese de doutorado Pedagogia
espírita, um projeto brasileiro e suas raízes histórico-filosóficas (USP,
2001), procurei fazer isto. Não significa jogar fora as conquistas de 2500 anos
de desenvolvimento filosófico e científico (que vêm desde os gregos), apenas
para sermos originais. Aliás, o próprio Espiritismo – poderão alegar – é uma
doutrina importada da França, com antecedentes e condicionamentos históricos.
Mas, encarando essa herança como parte constitutiva de nossa cultura (pois é
isso que se tornou) e buscando articular o pensamento espírita na sua
coerência, originalidade e com nossa pitada de brasilidade, faremos o que nos
compete para que o Espiritismo dê a sua contribuição ao mundo. O Brasil é
atualmente o único país que pode fazer isso, se abdicarmos da colonização
intelectual, pois foi na Europa e nos EUA que os estudos espíritas foram
silenciados. Na educação, fiz isso, mostrando que as raízes da pedagogia
espírita vêm desde Sócrates e Platão, passando por Comenius, Rousseau e
Pestalozzi, para desembocar em Rivail. Mas apontei a contribuição original,
brasileira, de Eurípedes Barsanulfo, Herculano Pires, Anália Franco, Tomás
Novelino, Ney Lobo, Vinicius, como exemplos de uma nova pedagogia.
Há que se fazer o mesmo em outras áreas e
alguns já têm tentado isso. Um bom sinal é que tenho recebido e-mails do Brasil
inteiro de jovens que já fizeram ou estão em vias de fazer monografias e
dissertações sobre o Espiritismo. Mas é preciso uma coragem moral, que às vezes
os acadêmicos acomodados em suas cátedras, não querem assumir, pois se trata de
desafiar o sistema, discutir ideias, condenadas por uma certa conspiração do
silêncio. À coragem moral, deve-se aliar a competência, porque é preciso estar
muito bem fundamentado para se fazer validar, ou pelo menos, respeitar, algo
fora do sistema. Estar fora do sistema explica-se em países onde o Espiritismo
desapareceu. Mas onde ele criou raízes e tem convicções entre pesquisadores,
por que mantê-lo afastado da universidade, como se fosse suspeito?
O momento é propício e urgente para abrirmos
caminho. Propício, porque podemos alegar que a representatividade social e cultural
que o Espiritismo adquiriu na sociedade brasileira, lhe dá o direito de ser
representado na universidade, como um discurso científico, ou ao menos
filosófico. Se não nos deixarem fazer isso, então trata-se de patrulhamento
ideológico, que devemos denunciar. Urgente, porque em benefício do próprio
Espiritismo, temos de compreendê-lo e praticá-lo como fermento cultural, para
mudar as estruturas do pensamento humano e não apenas como mais uma religião
que distribui passes, sopa e água fluida. Temos de fazê-lo, como queria Kardec
– ciência, filosofia, ética racional, religiosidade universal, de forma
competente e bem articulada – o que é indispensável para enfrentarmos a crítica
de fora, mas impossível, se ficarmos fechados em nós mesmos.
Espanta-me que intelectuais espíritas, que
deveriam compreender o Espiritismo como um novo paradigma de conhecimento, o
adotem apenas como credo religioso. São cientistas na universidade e espíritas
no centro espírita, como se frequentassem mais uma igreja, sem nenhuma conexão
com suas vidas de pensadores e pesquisadores. Apenas se vencermos essa covardia
ou cegueira, o Espiritismo cumprirá sua missão histórica, que não é a de fazer
proselitismo, mas de oferecer uma alternativa de visão de mundo respeitável e
reconhecida, que se faça valer nesse espaço tão rico e antigo como a
universidade, recuperando-a como um lugar de debate plural, para enfrentar os
desafios deste milênio.
Excelente texto da Dra. Profª Dora Incontri. Sempre instigante no desenvolvimento de seus raciocínios. Importante quando ela se refere que a "Escolástica medieval (em que pese toda a influência autoritária da Igreja) foi uma tentativa de racionalização da fé." Kardec, logo no frontispício de o Evangelho Segundo O Espiritismo faz a seguinte citação: Não há fé inabalável senão aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade." Por que será que no Brasil tivemos que transformar o Espiritismo em mais uma Religião? Penso que isso revela a nossa ignorância sobre o importante papel que essa Doutrina deveria desempenhar em nosso País e no mundo. Parabéns à Profª Dora Incontri, por trazer temas tão importantes como esse para discussão, agora reproduzido pelo Canteiro de Ideias.
ResponderExcluirParafraseio com uma pergunta, sem pretensões de lisonja ou desrespeito a quem quer que seja, mas unicamente de reconhecimento justo e de encorajamento: Com os escritos de Dora Incontri, não estaríamos diante de um dos melhores "metros" da atualidade, a medirem a Doutrina Espírita?
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