Pular para o conteúdo principal

COMO O ESPIRITISMO INTERPRETA AS GUERRAS?*

 

Por Marcelo Henrique

A Filosofia Espírita encara o belicismo como um instrumento social, humano, para a moralização e progressão de indivíduos e povos, já que, a par das mortes e da destruição, novas ideias são semeadas, vicejam e se engrandecem, no sentido da renovação das coletividades.

 

A história de nossa civilização é pródiga no retrato de conflitos bélicos, em todas as eras. Contudo, ganha especial relevo a existência de guerras em épocas nas quais o desenvolvimento intelectual, o alcance do estágio civilizado para a quase totalidade dos agrupamentos humanos e a existência de canais de diálogo, interação e convivência, já deveriam ter deixado para trás – como um simples relato retrospectivo – o eclodir de lutas armadas. Contudo, não é o que ocorre. Em grande parte, porque as nações são chefiadas por indivíduos e estes, com maiores ou menores poderes, têm em suas mãos a decisão pela declaração de luta ou pela celebração da paz, assim como as coletividades – umas mais que as outras – possuem valores e predisposições para a beligerância e a intolerância (inclusive religiosa ou étnica), ocasião em que a vontade do soberano representa a da maioria de seu povo.

A cada conflito, desde que a Filosofia Espírita foi trazida ao conhecimento humano, é comum encontrarmos ensaios procurando entender a “função” e os objetivos da guerra para a Humanidade. Delineamentos básicos do entendimento espiritual sobre os conflitos armados são, por certo, encontrados em “O livro dos Espíritos”, merecendo, ainda que de modo breve, remissão e reforço. Kardec, aliás, no processo de organização os ensinamentos trazidos pelas inteligências desencarnadas, cunhou tópico específico na obra pioneira, dentro do Capítulo VI (Lei de Destruição), da Terceira Parte (a que disserta sobre as Leis Morais), nos itens 742 745.

De maneira geral, assim, as guerras, no conceito espiritual, enquadram:

1) Uma ocorrência compatível com o grau de desenvolvimento de seres e coletividades, de modo que nos mundos superiores ao nosso, elas não mais ocorrem, visto não haver ódios ou discórdias, já que ninguém deseja provocar danos aos semelhantes (comentário de Kardec junto à questão 182). Elas desapareceram, nestes orbes, porque os homens compreenderam a justiça e praticam a Lei de Deus (item 743);

2) Embora para os homens possa, em função do nível de compreensão, justa causa para a eclosão do belicismo, os Espíritos pontuam que muitos homens só se comprazem na discórdia e na destruição, pouco importando a “justiça da causa” (item 542);

3) O fanatismo e a motivação religiosa das guerras representam a ligação entre Espíritos encarnados e desencarnados, sendo que estes últimos impelem àqueles ao conflito; não prosperam, pois, as justificativas fundadas em Deus ou em Sua palavra para o cometimento de violências (item 671);

4) São decorrentes da predominância da natureza animal sobre a espiritual e do transbordamento das paixões (item 742);

5) Servem para a liberdade e o progresso sociais, mesmo que presente, temporariamente, a escravidão (itens 744 e 744, a);

6) Aqueles que provocam as guerras, para delas obterem proveito ou satisfazer a ambição de mando, são grandes culpados e irão expiar seus erros por muitas existências (item 745);

7) Exclui-se a culpabilidade do homem que, forçado a ir à guerra, por ofício ou convocação, vem a matar ou ferir aqueles que estão guerreando por outras cores, mas não a crueldade que eventualmente cometa no desempenho deste mister (item 749);

8) Em nosso mundo, são válidos os esforços para a superação das animosidades e a promulgação de normas internacionais protetivas dos direitos humanos e restritivas de conflitos. Notadamente, a presença de Espíritos mais adiantados vai operando a transformação coletiva (gradual e consequente), apagando eventuais distinções de castas, origens e cores, bem como tornando possível a convivência pacífica entre homens de crenças diferentes, que se confundem na crença de um único Deus, como “[…] povos que marcham à testa da civilização” (Comentários de Kardec, na Conclusão de “O livro dos Espíritos”, Item VI).

Sempre que uma nova guerra eclode, se percebe a presença do mal, não como uma “entidade” ou força espiritual independente, mas como a exacerbação e a exteriorização de sentimentos peculiares ao homem transitório, ainda bastante animalizado e com vícios e tendências inferiores. E, em face da capacidade intelectual de uns, o desejo de escravização, de domínio e subjugação dos semelhantes, individual ou coletivamente, aflora no sentido de satisfação das paixões, não importando o preço (custo) de suas vontades e desejos. Dominação, esmagamento, dizimação e destruição passam a ser atitudes comuns, substantivos naturais para aqueles que só enxergam os seus direitos, independentemente de legitimação ou senso de justiça.

Dizem os Espíritos, no entanto, que o bem ao se proliferar ou preponderar, gera influência direta nas legislações e na gestão das nações que, refletindo os interesses renovados de seus povos, admoestam e impedem – mesmo com o uso da força, a princípio, ou mediante estratégias de conversação e pressão política – ações violentas e invasões de competência e jurisdição, tratando-as com rigor e represália. As grandes convulsões, assim, que as guerras encerram, vão, pouco a pouco, se acalmando, para dar lugar a uma coletividade renovada e harmonizada, não sem sobressaltos e custos.

De uma maneira muito particular, a fase que atravessamos – mais propriamente desde o início do Século XX até os dias presentes, com todas as ocorrências bélicas – é a demonstração, do ponto de vista psicológico e sociológico, do processo de maturação necessária para que se inicie e opere a transição, uma espécie de “limpeza” espiritual na qual as tendências armamentistas, conflituosas e egoísticas vão desembocando em eventos que aceleram a substituição de muitos Espíritos que não tenham condições de habitar uma Terra regenerada. São, estes, transmudados para outros planos, compatíveis com seus níveis evolutivos.

É por isso que a Filosofia Espírita encara o belicismo como um instrumento social, humano, para a moralização e a progressão de indivíduos e povos, já que, a par das mortes e da destruição, novas ideias são semeadas, acalentadas, vicejam e se engrandecem, no sentido da renovação das coletividades.

Além dos prejuízos diretos (destruição, mortos e feridos) as guerras também provocam outros danos paralelos. Estudos da ONG “Save the children” (Salve as crianças) demonstram que cerca de 43 milhões de crianças em 30 países não têm tido acesso à educação regular em face dos conflitos armados, já que não existem “áreas livres e seguras”, zonas de proteção incondicional, imunes a atentados e bombardeios. Assim sendo, em muitos casos, levando em conta a duração média dos conflitos (dez anos), conclui-se que muitas crianças ficam privadas, neste tempo, do acesso à instrução regular. Outro dado alarmante é a estimativa de crianças alcançadas pelos efeitos das últimas guerras: 2 milhões foram assassinadas, 6 milhões ficaram feridas e outras 20 milhões foram obrigadas a abandonar suas casas.

É por isso que são louváveis os esforços engendrados no sentido do desarmamento físico (diminuição, erradicação ou controle efetivo sobre instrumentos bélicos, notadamente os de natureza nuclear e química), os quais devem ser acompanhados de processos educativos, sólidos e eficazes, porque, senão, o homem, baseado quase que exclusivamente em seus (primitivos e destrutivos) instintos, encontrará outros meios de duelar e tentar dizimar seus semelhantes, em nome de ideais que lhe pareçam, a princípio, justos ou válidos, já que pertencentes a visões particulares.

Da cátedra espírita resulta a noção de que não será à custa de vidas humanas que se conseguirá o estágio de paz social. A chamada ética espírita, fundada nos ideais de liberdade, fraternidade e solidariedade, oferece importantes elementos na contribuição aos debates mundiais sobre guerra e paz. A propósito, diz Kardec, em “Obras Póstumas”: “A fraternidade, na rigorosa acepção da palavra, resume todos os deveres do homem para com os semelhantes. Significa: devotamento, abnegação, tolerância, indulgência; é a caridade evangélica por excelência e a aplicação da máxima: fazer aos outros o que queremos que os outros nos façam”.

Para alcançar o status social de fraternidade verdadeira, no entanto, é fundamental investir na erradicação dos males derivados dos vícios individuais que provêm do orgulho, do egoísmo, da ambição, da cupidez e dos excessos em tudo. É fato que a exacerbada materialização dos interesses humanos excita a cobiça, a inveja, o ciúme de uns em relação a outros, gerando ódios, disputas, processos conflituosos, guerras e todos os males engendrados no íntimo dos homens.

Para tanto, aqueles que já compreendem a natureza e o alcance dos ideais de verdadeira humanização, devem sair das redomas das instituições espíritas para, efetivamente, influenciarem no progresso social, participando das políticas públicas e das iniciativas – locais ou mesmo internacionais, quando possível – para a construção de atmosfera e realidades mais pacíficas e com justiça social. Enquanto continuarmos “discursando para nós mesmos”, “falando para quem proximamente nos entende”, sem arregaçarmos as mangas e dialogarmos nos cenários sociais mais diferenciados e que carecem do nosso concurso participativo, mais ficaremos atônitos e perplexos em relação aos “destinos” que o homem molda para nosso planeta.

Vencer, pois, a timidez dos bons propósitos íntimos para apresentar-se como alternativa viável e palpável à vida individual e coletiva é a tarefa dos homens de boa vontade, estejam eles albergados em qualquer adjetivação filosófica, científica, ideológica ou religiosa de nosso tempo. Ademais, a paz verdadeira e possível – investindo na erradicação dos conflitos interpessoais – começa em cada um de nós!

 

* Artigo originalmente publicado na edição impressa da Revista Harmonia.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

O NATAL DE CADA UM

  Imagens da internet Sabemos todos que “natal” significa “nascimento”, o que nos proporciona ocasião para inúmeras reflexões... Usualmente, ao falarmos de natal, o primeiro pensamento que nos ocorre é o da festa natalina, a data de comemoração do nascimento de Jesus... Entretanto, tantas são as coisas que nos envolvem, decoração, luzes, presentes, ceia, almoço, roupa nova, aparatos, rituais, cerimônias etc., que a azáfama e o corre-corre dos últimos dias fazem-nos perder o sentido real dessa data, desse momento; fazem com a gente muitas vezes se perca até de nós mesmos, do essencial em nós... Se pararmos um pouquinho para pensar, refletir sobre o tema, talvez consigamos compreender um pouco melhor o significando do nascimento daquele Espírito de tão alto nível naquele momento conturbado aqui na Terra, numa família aparentemente comum, envergando a personalidade de Jesus, filho de Maria e José. Talvez consigamos perceber o elevado significado do sacrifício daqueles missionári...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

ASTRÔNOMO DIZ QUE JESUS PODE TER NASCIDO EM JUNHO (*)

  Por Jorge Hessen Astrônomo diz que Jesus pode ter nascido em junho Uma pesquisa realizada por um astrônomo australiano sugere que Jesus Cristo teria nascido no dia 17 de junho e não em 25 de dezembro. De acordo com Dave Reneke, a “estrela de Natal” que, segundo a Bíblia, teria guiado os Três Reis Magos até a Manjedoura, em Belém, não apenas teria aparecido no céu seis meses mais cedo, como também dois anos antes do que se pensava. Estudos anteriores já haviam levantado a hipótese de que o nascimento teria ocorrido entre os anos 3 a.C e 1 d.C. O astrônomo explica que a conclusão é fruto do mapeamento dos corpos celestes da época em que Jesus nasceu. O rastreamento foi possível a partir de um software que permite rever o posicionamento de estrelas e planetas há milhares de anos.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

JESUS E A IDEOLOGIA SOCIOECONÔMICA DA PARTILHA

  Por Jorge Luiz               Subjetivação e Submissão: A Antítese Neoliberal e a Ideologia da Partilha             O sociólogo Karl Mannheim foi um dos primeiros a teorizar sobre a subjetividade como um fator determinante, e muitas vezes subestimado, na caracterização de uma geração, isso, separando a mera “posição geracional” (nascer na mesma época) da “unidade de geração” (a experiência formativa e a consciência compartilhada). “Unidade de geração” é o que interessa para a presente resenha, e é aqui que a subjetividade se torna determinante. A “unidade de geração” é formada por aqueles indivíduos dentro da mesma “conexão geracional” que processam ou reagem ao seu tempo histórico de uma forma homogênea e distintiva. Essa reação comum é que cria o “ethos” ou a subjetividade coletiva da geração, geração essa formada por sujeitos.

A ESTUPIDEZ DA INTELIGÊNCIA: COMO O CAPITALISMO E A IDIOSSUBJETIVAÇÃO SEQUESTRAM A ESSÊNCIA HUMANA

      Por Jorge Luiz                  A Criança e a Objetividade                Um vídeo que me chegou retrata o diálogo de um pai com uma criança de, acredito, no máximo 3 anos de idade. Ele lhe oferece um passeio em um carro moderno e em um modelo antigo, daqueles que marcaram época – tudo indica que é carro de colecionador. O pai, de maneira pedagógica, retrata-os simbolicamente como o amor (o antigo) e o luxo (o novo). A criança, sem titubear, escolhe o antigo – acredita-se que já é de uso da família – enquanto recusa entrar no veículo novo, o que lhe é atendido. Esse processo didático é rico em miríades que contemplam o processo de subjetivação dos sujeitos em uma sociedade marcada pela reprodução da forma da mercadoria.

A DOR DO FEMINICÍDIO NÃO COMOVE A TODOS. O QUE EXPLICA?

    Por Ana Cláudia Laurindo A vida das mulheres foi tratada como propriedade do homem desde os primevos tempos, formadores da base social patriarcal, sob o alvará das religiões e as justificativas de posses materiais em suas amarras reprodutivas. A negação dos direitos civis era apenas um dos aspectos da opressão que domesticava o feminino para servir ao homem e à família. A coroação da rainha do lar fez parte da encenação formal que aprisionou a mulher de “vergonha” no papel de matriz e destituiu a mulher de “uso” de qualquer condição de dignidade social, fazendo de ambos os papéis algo extremamente útil aos interesses machistas.

DIVERSIDADE SEXUAL E ESPIRITISMO - O QUE KARDEC TEM A VER COM ISSO?

            O meio espírita, por conta do viés religioso predominante, acaba encontrando certa dificuldade na abordagem do assunto sexo. Existem algumas publicações que tentam colocar o assunto em pauta; contudo, percebe-se que muitos autores tentam, ainda que indiretamente, associar a diversidade sexual à promiscuidade, numa tentativa de sacralizar a heterocisnormatividade e marginalizar outras manifestações da sexualidade; outros, quando abrem uma exceção, ressaltam os perigos da pornografia e da promiscuidade, como se fossem características exclusivas de indivíduos LGBTQI+.