Pular para o conteúdo principal

MORTE E APEGO: ESTÁGIOS DA EVOLUÇÃO

 

Por Jorge Luiz

 

“Se vida é, da alma, a escravidão que a humilha,/Treva que envolve a estrada que palmilha;/Se morte é a mutação de sua sorte/E a volta sua, livre, à luz perdida/Por que esse apego que se tem à vida?/Por que esse medo que se tem da morte?”

            Os versos acima foram extraídos do soneto Eterno Enigma, de autoria de Índio do Prado, que confronta de forma racional a realidade dos fenômenos vida e morte ante o ser. Não há fonte bibliográfica que comprove a sua origem ou não, mediúnica, pelo menos, não consegui encontrar. O soneto foi musicado por Tarcísio Lima e gravado pelo Grupo Ame, aqui de Fortaleza (CE).

            O soneto apresenta o retrato fidedigno do enfrentamento e visão da morte no comezinho das nossas vidas. Não se pode perder de vista que em nossas vidas de relações somos submetidos a ritos e rituais que sofrem interditos e imprevistos, como se chegar atrasado ou adiantado a um compromisso; ao trabalho; deixar de embarcar em uma viagem seja em transportes rodoviários ou aéreos. Isso é o cotidiano.

            Interessante é que quando ocorre uma tragédia coletiva, como a das Torres Gêmeas, no 11 de setembro de 2001, ou mesmo no recente acidente aéreo da empresa VoePass, esses imprevistos são sempre requisitados. Quando se “escapa” da desencarnação, esses fatos são considerados uma ação divina, um “livramento”, o que, forçosamente, leva-se a considerar que os que desencarnaram foram condenados por Deus à sentença de morte. Na realidade, inconscientemente, nessas expressões comuns nos acidentes, há a sensação do desejo do indivíduo em vencer a morte e tornar-se imortal no corpo físico.

            A morte, que antes era algo muito restrito aos amigos e familiares, agora é compartilhada socialmente, e até espetacularizada pela mídia e se elabora uma catarse perante a dor alheia, e o que se torna necessário negá-la como experiência cotidiana. São aspectos reforçadores desse medo, pois na morte, apresenta-se a nossa miserável finitude. “A ideia da morte é rechaçada veementemente pelo homem moderno, uma vez que está na contramão dos avanços civilizatórios, tornando-se um impedimento para a ideia humana onipotente de que podemos “dominar” o mundo com nossa racionalidade.” (Franco, 2010).

            Allan Kardec, comentando a questão n.º 738 “b”, em O Livro dos Espíritos, assim se expressa:Venha por um flagelo a morte, ou por uma causa comum, ninguém deixa por isso de morrer, desde que haja soado a hora da partida. A única diferença, em caso de flagelo, é que maior número parte ao mesmo tempo. Se, pelo pensamento, pudéssemos elevar-nos de maneira a dominar a Humanidade e abrangê-la em seu conjunto, esses tão terríveis flagelos não nos pareceriam mais do que passageiras tempestades no destino do mundo. (Kardec, 2000).

            Só existem dois determinismos em nossas vidas: nascimento e morte.

         Kardec, dissertando sobre o medo da morte, pontua que “apegando-se ao exterior o homem só vê a vida do corpo, quando a vida real é da alma. O corpo estando privado de vida, tudo lhe parece perdido e ele se desespera. Se, em lugar de concentrar o seu pensamento nas vestes exteriores, ele o dirigisse para a verdadeira fonte da vida, para a alma, ser real que sobrevive a tudo, lamentaria menos o corpo, fonte de todas as misérias da vida.” (Kardec, 2004).

            O psicólogo John Bowlbi, com base em conceitos psicanalíticos, desenvolveu a Teoria do Apego, que segundo ele, ao nascermos, buscamos imediatamente algum vínculo para garantir a sobrevivência. O comportamento foi verificado na relação de algumas espécies de macacos. A teoria desenvolvida serve para nossas relações na fase adulta, e é nela que me apoio para teorizar, que é esse apego o gerador do medo que temos da morte, diante da perda dessa segurança dos laços afetivos gravados. Ainda teorizando, considero que a morte, na compreensão dos renascimentos do Espírito, é estágio evolutivo à medida que se desapega dos afetos e das coisas. “O amor por esta ou aquela pessoa chama-se avaritia, que não é o desejo de acumular ou a repugnância em gastar, como exprime nossa palavra avareza. É a paixão ávida pela vida, tanto por seres como por coisas, e mesmo por seres que hoje acreditamos merecerem um apego ilimitado, mas que passavam então por aquilo que fazia desviar de Deus”. (Ariès, 1977). Na relação familiar, simbolizada pelo apego à mãe, é que ocorre a transição do apego ao amor condicionado, em direção ao amor como requinte dos sentimentos, que interromperá os ciclos dos renascimentos, porquanto, da morte. O apego, portanto, é remanescente instintivo que trazemos do processo de individualização do princípio inteligente, na fase animal, mais precisamente, em algumas espécies de símios (Rhesus). Quem sabe, a morte não seja uma “hipótese" para o desapego!

            Mudando completamente a forma de encarar a vida e a morte, o Espiritismo espera que os espíritas não temam a morte. A vida futura é real e não uma abstração. A mediunidade consolida o intercâmbio entre os dois mundos, cujos aspectos que os envolvem já são admitidos pela ciência.

“A dúvida sobre o futuro já não tendo mais lugar, a preocupação com a morte deixa de ter razão. Esperamo-la tranquilamente, como uma libertação, como a porta da vida e não como a do nada”. (Kardec, 2004)

            A compreensão espírita da morte, presentes os renascimentos como desdobramentos das existências pretéritas, longe de ferir a suscetibilidade dos que não partilham dessas convicções, mostra que a desencarnação constitui fenômeno natural onde se reconhece a dor da saudade, a tristeza diante da partida do ente que retornou à Pátria Espiritual, não o transformando em sofrimento mórbido, mas material provacional que se deve sublimar pelo amor, ante a ausência física e as implicações dela decorrentes.

 

Referências:

ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Saraiva, 1977.

FRANCO, Clarissa de. A cara da morte. São Paulo: Ideias & Letras, 2010.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.

_____________. O céu e o inferno. São Paulo: Lake, 2004.

 

 

 

Comentários

  1. Leonardo Ferreira Pinto13 de outubro de 2024 às 19:43

    Brilhante artigo Jorge. Como sempre

    ResponderExcluir
  2. A morte, como oposto a vida, é uma questão fundamental para os que estudam o Espiritismo. Não podemos viver em constantes comunicações com os espíritos e acreditar que a morte é o fim de tudo. Outra questão que precisam nos concentrar é a do cotidiano. Felizes são as culturas que reverenciam seus antepassados, pois não possuem tempo para sofrer perdas. Parabéns pelo texto Jorge Luiz

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Valnei! Sempre válidas suas contribuições enriquecedoras. Gratidão. Jorge Luiz

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

A ESTUPIDEZ DA INTELIGÊNCIA: COMO O CAPITALISMO E A IDIOSSUBJETIVAÇÃO SEQUESTRAM A ESSÊNCIA HUMANA

      Por Jorge Luiz                  A Criança e a Objetividade                Um vídeo que me chegou retrata o diálogo de um pai com uma criança de, acredito, no máximo 3 anos de idade. Ele lhe oferece um passeio em um carro moderno e em um modelo antigo, daqueles que marcaram época – tudo indica que é carro de colecionador. O pai, de maneira pedagógica, retrata-os simbolicamente como o amor (o antigo) e o luxo (o novo). A criança, sem titubear, escolhe o antigo – acredita-se que já é de uso da família – enquanto recusa entrar no veículo novo, o que lhe é atendido. Esse processo didático é rico em miríades que contemplam o processo de subjetivação dos sujeitos em uma sociedade marcada pela reprodução da forma da mercadoria.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

ESPÍRITAS: PENSAR? PRA QUÊ?

           Por Marcelo Henrique O que o movimento espírita precisa, urgentemente, constatar e vivenciar é a diversidade de pensamento, a pluralidade de opiniões e a alteridade na convivência entre os que pensam – ainda que em pequenos pontos – diferentemente. Não há uma única “forma” de pensar espírita, tampouco uma única maneira de “ver e entender” o Espiritismo. *** Você pensa? A pergunta pode soar curiosa e provocar certa repulsa, de início. Afinal, nosso cérebro trabalha o tempo todo, envolto das pequenas às grandes realizações do dia a dia. Mesmo nas questões mais rotineiras, como cuidar da higiene pessoal, alimentar-se, percorrer o caminho da casa para o trabalho e vice-versa, dizemos que nossa inteligência se manifesta, pois a máquina cerebral está em constante atividade. E, ao que parece, quando surgem situações imprevistas ou adversas, é justamente neste momento em que os nossos neurônios são fortemente provocados e a nossa bagagem espiri...

POR QUE SOMOS CEGOS DIANTE DO ÓBVIO?

  Por Maurício Zanolini Em 2008, a crise financeira causada pelo descontrole do mercado imobiliário, especialmente nos Estados Unidos (mas com papéis espalhados pelo mundo todo), não foi prevista pelos analistas do Banco Central Norte Americano (Federal Reserve). Alan Greenspan, o então presidente da instituição, veio a público depois da desastrosa quebra do mercado financeiro, e declarou que ninguém poderia ter previsto aquela crise, que era inimaginável que algo assim aconteceria, uma total surpresa. O que ninguém lembra é que entre 2004 e 2007 o valor dos imóveis nos EUA mais que dobraram e que vários analistas viam nisso uma bolha. Mas se os indícios do problema eram claros, por que todos os avisos foram ignorados?