Pular para o conteúdo principal

O RISCO DO ESTADO TEOCRÁTICO¹

 

Por Dora Incontri

Vimos na semana passada o espetáculo bizarro de policiais militares sendo capacitados numa igreja evangélica no Distrito Federal. O fato ainda está sob investigação, mas ele é um exemplo incontestável da tenebrosa mescla que se dá entre a esfera da religião e a esfera pública no Brasil.

Quando no início do século XX, o educador espírita Eurípedes Barsanulfo foi vereador da cidade de Sacramento (MG), ele já apontava a necessidade de se arrancarem os crucifixos da câmara da sua cidade, entendendo que o Estado é laico e não pode privilegiar nenhuma religião. Quando eu mesma fui fazer no início deste século – portanto 100 anos depois – um projeto pedagógico em escolas públicas em Bragança Paulista, onde moro, me deparei com retratos de bispos e com crucifixo nas paredes. Não sei se 20 anos depois ainda lá estão. Esses dois cenários mostram com um intervalo de um século, que a República brasileira nunca conseguiu se livrar do amálgama inconstitucional com a religião.  Antes, porém, isso era obra da Igreja Católica que foi a matriz mais forte de nossa cultura, e reprimiu durante séculos outras manifestações religiosas no país.

Mas… a Igreja católica se transformou (embora ainda muitas de suas estruturas autoritárias persistam e setores conservadores gostariam de ver o Papa Francisco deposto ou morto) e nas décadas de 70 e 80, tendo-se iniciado nos anos 60, espalhavam-se as Comunidades Eclesiais de Base, inspiradas na Teologia da Libertação, com sua crítica social, opção preferencial pelos pobres e influência de ideias socialistas. Ora, no projeto de desinstalação de qualquer tendência à esquerda da América Latina e particularmente do Brasil, orquestrado, como sempre, pelo Império norte-americano, está um investimento maciço do neopentecostalismo, que vai alinhado não apenas com a teologia da prosperidade (que prevê uma retribuição econômica de Deus ao crente que paga o dízimo e adere à igreja), mas também explicitamente com a teologia do domínio.

Essa teologia, no espectro da extrema direita, justamente quer tomar posse das Leis, dos governos, dos costumes, com forte inspiração do Velho Testamento – porque não há como se propor um projeto de poder com base nas palavras de Jesus, que dizia não ter vindo para ser servido, mas para servir… embora o nome de Jesus seja usado e abusado.

Com a ditadura militar no Brasil e com o avanço colonialista das Igrejas neopentecostais, a face religiosa brasileira foi se transformando. Foi ficando mais intolerante, mais fanática, mais metida na política, mais atrevida em suas ações públicas e temos até uma Baby do Brasil anunciando o Apocalipse e o “arrebatamento”, em pleno Carnaval… Temos até um Caetano Veloso, confesso ateu, gravando um gospel com o pastor Kleber Lucas.

E agora? Agora temos um Congresso com uma bancada bíblica, temos escolas com professores fazendo exorcismos em sala de aula, temos PMs treinados nas igrejas, temos um ministro do Supremo, terrivelmente evangélico, e temos um povo querendo que a Bíblia se sobreponha à Constituição. E há um projeto claro, planejado, de poder, que o anticristo Edir Macedo fez o favor de delinear no livro que intitulou: Plano de Poder. Não são todos os evangélicos, não são todos os pentecostais, não são todos os cristãos que participam consciente ou inconscientemente dessa escalada de fanatismo e dominação. Mas são muitos, em progressão geométrica. Parte da população negra, que antes cultivava seus Orixás e praticava rituais de sua ancestralidade, hoje está rendida a pastores que exploram a fé e, o que é pior, fazem-na acreditar que suas raízes religiosas, ancestrais, são na verdade demoníacas. O mesmo crime se comete contra indígenas, cujos pajés são convertidos em pastores e passam a abominar suas tradições.

E toda essa vertente fundamentalista faz política da maneira mais degradante possível. Daquela iniciativa das Comunidades Eclesiais de Base, que constituía um resgate do poder comunitário pelo povo, num cenário de ecumenismo cristão, em que participavam católicos, metodistas, luteranos, presbiterianos, passamos a uma política de manipulação das massas, agressiva, intolerante, com Malafaias da vida, que não escondem a exploração econômica de seus seguidores e a adesão aos projetos mais extremistas para os rumos do Brasil.

Essa imagem abaixo é uma advertência que nos dá arrepios. Antes e depois do Irã fundamentalista, governado pelos aiatolás. Como dizia a nossa Ritinha (a Lee): “tem sempre um aiatolá para atolar Alá”!


É preciso que reajamos a essa escalada bíblica, antes que tenhamos todo poder político tomado por pessoas terrivelmente evangélicas! Como reagir é a questão. Tendo por uma das tarefas de vida o diálogo interreligioso, sei que pode parecer uma quebra de respeito à diversidade o combate a uma vertente específica religiosa. O caso está naquele paradoxo: só não podemos ser tolerantes com os que desejam abolir a tolerância. Só não podemos abrir diálogo com os que pretendem abolir o diálogo, a diversidade, a liberdade. Precisamos pensar estratégias de libertar a consciência do povo enganado e cooptado e denunciar e combater os falsos líderes que o exploram e oprimem.

 

¹ exibido, originalmente, no jornal GGN, em 06.03.2024. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

ANÁLISE DA FIGUEIRA ESTÉRIL E O ESTUDO DA RELIGIÃO

                 Por Jorge Luiz            O Estudo da Religião e a Contribuição de Rudolf Otto O interesse pela história das religiões   remonta a um passado muito distante e a ciência das religiões, como disciplina autônoma, só teve início no século XIX. Dentre os trabalhos mais robustos sobre a temática, notabiliza-se o de Émile Durkheim, As Formas Elementares da Via Religiosa.             Outro trabalhos que causou repercussão mundial foi o de Rudolf Otto, eminente teólogo luterano alemão, filósofo e erudito em religiões comparadas. Otto optou por ser original e abdicou de estudar as ideias sobre Deus e religião e aplicou suas análises das modalidades da experiência religiosa. Ao fazer isso, Otto conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa experiência e negligenciou o lado racional e especulativo da religião, sempre...

SOBRE A INSISTÊNCIA EM QUERER CONTROLAR AS MULHERES

  Gravura da série O Conto da Aia, disponível na Netflix Por Maurício Zanolini Mulheres precisam se casar com homens intelectualmente e financeiramente superiores a elas ou o casamento não vai durar. Para o homem, a esposa substitui a mãe nos cuidados que ele precisa receber (e isso inclui cozinhar, lavar, passar e limpar a casa). Ao homem, cabe o papel de prover para que nada falte no lar. O marido é portanto a cabeça do casal, enquanto a mulher é o corpo. Como corpo, a mulher deve ser virtuosa e doce, bela e recatada, sem nunca ansiar por independência. E para que o lar tenha uma atmosfera agradável, é importante que a mulher sempre cuide de sua aparência e sorria.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

PUREZA ENGESSADA

  Por Marcelo Teixeira Era o ano de 2010, a Cia. de teatro da qual Luís Estêvão faz parte iria apresentar, na capital de seu Estado, uma peça teatral que estava sendo muito elogiada. Várias cidades de dois Estados já haviam assistido e aplaudido a comovente história de perdão e redenção à luz dos ensinamentos espíritas. A peça estreara dez anos antes. Desde então, teatros lotados. Gente espírita e não espírita aplaudindo e se emocionando. E com a aprovação de gente conhecida no movimento espírita! Pessoas com anos de estrada que, inclusive, deram depoimento elogiando o trabalho da Cia. teatral.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

O DÓLMEN DE KARDEC

31 de março de 1869  A llan Kardec ultimava as providências de mudança de endereço. A partir de 01 de abril de 1869, o escritório de expedição e assinatura da Revista Espírita seria transferido para a sede da Livraria Espírita, à rua de Lille, nº 7 , onde também, provisoriamente, funcionaria a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Na mesma data, os escritórios da redação e o domicílio pessoal de Allan Kardec seriam transferidos para a Avenue et Vila Ségur, nº 39, onde Kardec tinha casa de sua propriedade desde 1860. Entremeando onze e doze horas, quando atendia um caixeiro de livraria, caiu pesadamente ao solo, fulminado pela ruptura de um aneurisma. Aos 65 anos incompletos, desencarnava em Paris, Allan Kardec.             Sr. Muller, amigo de Kardec, um dos primeiros a chegar à sua residência, assim descreve em trecho de telegrama enviado: “Tudo isto era triste, e, entretanto, um sentimento d...

BODERLINE PELA ÓTICA ESPÍRITA

                                                                                                                                                                      ...