Por Dora Incontri
Um aspecto muito peculiar em minha trajetória de vida é o trabalho de diálogo inter-religioso, que inclui judeus e muçulmanos, Rabinos e Sheiks, e por isso considero intolerável tanto sangue derramado entre esses lados ou quaisquer outros. Assim devo dizer que enfrentei conflitos internos (de ordem afetiva) para escrever sobre esse tema, mas resolvi vencê-los, porque estava me sentindo tomada por culpa de covardia e omissão, se não tecesse algumas reflexões. Apesar do fato de que qualquer escrito pouco serve para ajudar a parar a matança sem medida que está sendo praticada contra crianças, mulheres e toda uma população indefesa da faixa de Gaza. Ontem, as notícias de novo bombardeio, justo onde estavam os refugiados, na fronteira do Egito, de milhares de pessoas encurraladas, acendeu-me nova indignação. Pelo menos, ao escrever, lamentar, criticar, conclamar à paz, podemos deixar um registro histórico para o futuro de que havia pessoas no mundo, que se importavam. E há muitas! Admirável a constância de dois influenciadores que sigo nas redes sociais, incansáveis, firmes e corajosos em tais denúncias: Hildegard Angel e Thiago Ávila.
Por que tantos se sentem constrangidos de falar sobre o claro genocídio – já inclusive denunciado pela África do Sul junto ao tribunal de Haia, denúncia felizmente apoiada pelo Brasil? O principal motivo é porque quem se atreve a fazer alguma crítica ao governo de Netanyahu está imediatamente arriscado de ser taxado de antissemita. O antissemitismo é de fato algo arraigado há milênios na cultura ocidental, tendo atingido sua máxima, trágica e cruel expressão durante a Segunda Guerra Mundial, com o Holocausto, praticado pelos nazistas. Mas trata-se de uma falácia esse argumento apressado e muitas vezes de má fé. Posso repudiar com todo o asco possível o que os nazistas fizeram, sem que ninguém me atribua o título de antigermânica. Por outro lado, há milhares de judeus em Israel mesmo, e no mundo – entre eles, alguns nomes famosos – que estão chamando a ação do Estado Israelense de genocida.
Tenho uma história própria em relação a essa temática, porque morei três vezes na Alemanha, tendo feito lá dois anos do Ensino Fundamental 2 e um ano do Ensino Médio, numa época (não sei se ainda é assim) em que se fazia propaganda antinazista na escola, na vigência do PSD (Partido Social Democrata). O nazismo sempre me horrorizou e sempre nutri grande simpatia pelas causas judaicas. Em minha Editora Comenius, por exemplo, tenho livros publicados de e sobre o grande educador judeu polonês, Janusz Korczak, que morreu com suas 200 crianças no campo de concentração de Treblinka. Mas hoje, quando vi cenas gravadas de soldados israelenses destruindo casas comerciais palestinas na Cisjordânia, e quando vi, outro dia, uma bomba explodindo a última universidade de Gaza, imediatamente me veio à mente uma palestra que vi no Colégio Sankt Franziskus em Berlim, em 1978, de um sobrevivente judeu da noite de cristais, em que alemães destruíram sinagogas, lojas, casas dos bairros judeus, Alemanha afora. Quando vi ontem também uma moça israelense, ex-soldada, visivelmente adoecida psiquicamente, dizendo que não conseguia limpar o sangue das mãos porque havia matado uma criança, lembrei-me de um senhor judeu, que conheci na adolescência no Brasil, quando narrava que tinha visto o sobrinho de 5 anos de idade ser fuzilado na sua frente pelos nazistas. E, ao contar, toda vez chorava. Não há como negar que parte dos judeus estão agindo com os palestinos de maneira igual a que os nazistas agiram com suas vítimas. E isso é estarrecedor. Mas é preciso entender que o governo atual de Israel é de extrema direita, como era o governo de Hitler.
E uma das grandes questões que se impõem é: em que medida esse conflito é um conflito religioso? Para quem estuda com seriedade a geopolítica, dentro das estruturas econômicas globais, fica claro que as motivações de guerra são comerciais (e em quase todas as guerras do mundo, quem mais ganha é o complexo da indústria militar dos EUA), são territoriais, são políticas e o discurso religioso apenas serve de pretexto, quando usado para fins bélicos. Foi assim, desde as Cruzadas. No caso desse conflito atual – que nem mais podemos chamar de conflito, porque conflito pressupõe um mínimo equilíbrio de forças e não extinção em massa de um povo indefeso – os próprios judeus ortodoxos, que poderiam ser considerados os judeus religiosos mais radicais – estão contrários à ação de Netanyahu.
Mas seria interessante ir mais a fundo e nos indagarmos se em algum momento, podemos encontrar justificativas ou narrativas religiosas que tragam argumentos a favor da violência contra outras nações. E a resposta é sim… Tanto na Bíblia como no Alcorão (e poderíamos citar o Mahabharata do hinduísmo) há incitações à guerra, há discursos supremacistas. Por isso mesmo, tenho defendido a ideia de uma espiritualidade crítica, que faça uma leitura contextualizada e revisionista dos chamados livros sagrados, em que haja uma escolha consciente do que é belo, compassivo, misericordioso (título que os islâmicos atribuem o tempo inteiro a Allah!) e promovamos o repúdio daquilo que nos divide enquanto humanidade, e que sirva de justificativa sofística à ambição, à crueldade e à matança do próximo. Para isso, é preciso aceitar que os livros fundadores das religiões são feitos por mãos humanas, embora possamos admitir que também tenham inspiração divina.
E apenas para deixar claro, não escrevi esse texto para defender o Hamas, cujos métodos repudio. Escrevi em honra às milhares de crianças mortas em Gaza e em solidariedade a uma juventude israelita doutrinada no ódio, que terá de carregar nas mãos e na consciência o sangue de tantos.
¹ publicado originalmente no jornal GGN.
Sérias reflexões que deveriam atingir e repercutir nas consciências de todas as criaturas interessadas em estabelecer um mundo justo, fraterno e de respeito à todo ser humano. Doris Gandres.
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