Pular para o conteúdo principal

O LEGADO DE BOLSONARO AO MEIO ESPÍRITA

 


 Por Ana Cláudia Laurindo

Eu gostaria de entrar na utopia de apenas virar a página tenebrosa e celebrar o realinhamento tátil da democracia.

Gostaria, como impulso simplista. Como gente cansada de lutar contra um estranho mal que se fez rosto de gente, que modificou impressões sobre pessoas amadas. Gostaria, mas sei que não é possível.

Bolsonarismo não é uma categoria sociológica vazia e descartável. Por esta e outras razões, ainda precisamos trazer olhares analíticos sobre o que está disseminado em todos os agrupamentos sociais brasileiros em menor ou maior grau, e trago como exemplo o que colhi há alguns dias em uma postagem sobre Socialismo e Espiritismo.

Em uma rede social vi a oportunidade de dialogar com uma mulher que aparentemente era espírita, pois fazia a defesa de não misturar espiritismo com política, após a presidência de um centro cancelar o palestrante que versaria sobre o tema acima descrito.

Sem tomar para o pessoal, sem guerrear, ofender ou minimizar o ato, levei adiante questões que parecem nos colocar em mundos distintos, tendo a política como base do pensamento humanitário.

Fui presenteada com um texto, do qual analiso partes.

Disse: “Com relação à propriedade privada, “Dê a César o que é de César”, socializar o trabalho e o mérito de quem se esforça, não é justo, pois enquanto um recebe de graça alguém se esforçou e trabalhou para isso”. Nestas linhas podemos encontrar a maior ilusão urbana brasileira, aquela de que as políticas compensatórias implementadas pelo Estado lesionam o bolso da classe média.

Aqui podemos sentir a mágoa de quem condena Bolsa-família, Fies, Prouni, programas habitacionais e defende Estado mínimo.

Demonstração de baixo conhecimento sobre estruturas econômicas, classes sociais, divisão do trabalho, ideologia, manipulação discursiva com interesse de poder e todas estas importantes partes que compõem o todo, nos fazendo reconhecer o quanto é importante falarmos politicamente, em todos os lugares.

Uma peste deste tempo são as notícias falsas, porque convencem os infectados sobre o domínio de temas que nunca buscaram de fato entender, mas repetem efusivamente, obrigando o ímpeto a ser “verdade”.  Assim seguimos analisando:

“Os médicos cubanos dentro de um regime nefasto sofrem as consequências do totalitarismo, sendo obrigados a trabalhar em um regime semi-escravo, para sustentar um Estado Grande, onde somente alguns desfrutam de boa vida. Deus criou o trabalho para todos, por isso se esforce e conquiste com honestidade. O próprio CRISTO, filho de DEUS, era carpinteiro como o pai terreno”.

Sabendo que os veiculadores das análises rasas contra Cuba e Venezuela não conhecem a geopolítica correspondente, consideramos que o êxito dessa narrativa está contemplado pela mitologia política comunista, um ideia aterrorizante que fazia meu bom pai temer dividir até as galinhas do quintal e minha mãe afirmar que o sangue daria no meio da canela mas o comunismo entraria no Brasil, como uma revelação apocalíptica católica.

“Estamos diante da constituição de uma mitologia política em torno do comunismo, instituída historicamente e que tem como um de seus agentes mais importantes a Igreja Católica”. (MEDEIROS, 2007, p.33)

A mulher dita espírita me instiga ao esforço do trabalho para conquistar com honestidade aquilo que ela entende que a defesa do Socialismo revela sobre meus interesses. Em nenhum instante percebe a coletividade como agente de políticas igualitárias, como portadora de direitos e representante das razões de lutas políticas, porque a individualidade projeta na propriedade privada o seu maior trunfo.

O Cristo carpinteiro (que não tinha nem uma pedra para recostar a cabeça mas defendia que fizéssemos ao próximo aquilo que desejamos para nós mesmos) é usado como mote de defesa da única razão de existir honestamente segundo os preceitos daquela mulher, o trabalho.

Não demoraria para escorrer os preconceitos comuns:

“Corruptos se criam dentro de lares sem Deus, família, religião, valores, dentro de uma sociedade contaminada por pessoas abjetas, que acreditam que o crime compensa”.

Espíritas sérios, precisamos fazer uma leitura calma destas palavras, porque não são apenas ecos de uma mente, mas resultado de anos de palestras em nossos centros!

Desde que os centros espíritas se tornaram bastiões de uma vanguarda moralista e asséptica, com base classista e odor elitista, que Deus se transformou um moeda meritocrática.

O amor maior foi enjaulado na compreensão mínima dos moldes familiares burgueses, nucleares, patriarcais, religiosos.

As narrativas patologizantes que transformaram seres em evolução em “doentes morais” serviram ao deus da desigualdade e proliferaram crente espíritas, com tendência ao fanatismo, que estão participando hoje dos ataques à democracia no Brasil como ontem defenderam o uso de armas contra dissidentes ideológicos e pessoas livres pensadoras.

Segue o baile:

“O comunismo não existe, é uma UTOPIA romântica que só seduz aos fracos”.

A virilidade do capitalismo se revela na força de destruição que possui. Desejar uma sociedade que reparte, é sinônimo de fraqueza. Tornar comum é fraquejar. “Eis porque o rosto de Jesus se tornou incômodo aos poderosos de seu tempo: ele atuou politicamente em benefício dos mais fracos, dos pobres, dos discriminados e vitimados pelo sistema dominante”. (LAURINDO, 2021, p.34-35)

O amor religiosista é moralista, mas não alcança todas as criaturas, porque é também punitivista. Quando os espíritas em sua maioria seguem estas recomendações, há algo dissonante e nossas análises sugerem outros estudos e quebra de alguns paradigmas. Senão corremos o risco de disseminar ideias como as que estão abaixo, levianamente:

“Nas casas espíritas precisamos ensinar amor e dar conhecimento. Se tem, maior a obrigação der instruir. Ensinar valores como Deus, família, respeito a vida, conquista digna através do estudo e do trabalho.”

Como ensinar amor se apenas conseguirmos vê-lo dentro dos padrões burgueses medianos?

O que chama de conhecimento alguém que transforma Deus em um valor pessoal?

Da família humano/espiritual universal a todos os perfis de família, o que consideramos digno de ser valorizado?

Usar um nome forte para referendar escolhas egoístas e naturalizar violências é um recurso antigo, utilizado por muitos núcleos de poder. “O uso do nome de Deus como justificativa para o cometimento de atrocidades não é algo novo nessa história, e não existe meios de não enxergarmos ações políticas como cerne das lutas religiosas”. (LAURINDO, 2021, p.39)

Finalizaremos com o último parágrafo e a análise subsequente do mesmo.

“Ensinar nossos filhos a seguir por caminhos da dignidade, com honestidade, longe das drogas, Amar a Deus, respeitar seus pais, amigos, familiares, patrões e todos que desfrutem dos mesmos valores. Ensinar seu filho que o crime não compensa, que se não seguir o caminho correto o destino final é a cadeia, não a presidência de um país.”

Eis a cereja do bolo! O ódio político. A negação da eleição limpa e democrática de Luiz Inácio da Silva no pleito de 2021.

Não podemos negar que esta página também é história, embora tosca, mal interpretada, mal intencionada.

Este miolo embebido em discórdia está atuante no meio espírita brasileiro, como em todos os demais conglomerados apoiadores de armas, perseguições e violência letal e simbólica ligados ao Jair Bolsonaro, mais conhecido como genocida.

Como espíritas progressistas, laicistas, humanitários, nosso momento pede participação no debate sobre o país desigual que segue vitimado pelo analfabetismo político de sua gente, manipulada também por líderes carismáticos, entre eles médiuns espíritas que serão identificados pelo quanto não aprenderam a amar.

 

 

 

Bibliografia utilizada:

LAURINDO, Ana Cláudia. Deus e Política: Enredo da morte no Brasil. Maceió: Aruá Cult. 2021.

MEDEIROS, Fernando A. Mesquita de. O homo inimicus: igreja, ação social católica em imaginário anticomunista em Alagoas. Maceió:EDUFAL. 2007.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DIA DA ESPOSA DO PASTOR: PAUTA PARASITA GANHA FORÇA NO BRASIL

     Imagens da internet Por Ana Cláudia Laurindo O Dia da Esposa do Pastor tem como data própria o primeiro domingo de março. No contexto global se justifica como resultado do que chamam Igreja Perseguida, uma alusão aos missionários evangélicos que encontram resistência em países que já possuem suas tradições de fé, mas em nome da expansão evangélico/cristã estas igrejas insistem em se firmar.  No Brasil, a situação é bem distinta. Por aqui, o que fazia parte de uma narrativa e ação das próprias igrejas vai ocupando lugares em casas legislativas e ganhando sanções dentro do poder executivo, como o que aconteceu recentemente no estado do Pará. Um deputado do partido Republicanos e representante da bancada evangélica (algo que jamais deveria ser nominado com naturalidade, sendo o Brasil um país laico (ainda) propôs um projeto de lei que foi aprovado na Assembleia Legislativa e quando sancionado pelo governador Helder Barbalho, no início deste mês, se tornou a lei...

CONFLITOS E PROGRESSO

    Por Marcelo Henrique Os conflitos estão sediados em dois quadrantes da marcha progressiva (moral e intelectual), pois há seres que se destacam intelectualmente, tornando-se líderes de sociedades, mas não as conduzem com a elevação dos sentimentos. Então quando dados grupos são vencedores em dadas disputas, seu objetivo é o da aniquilação (física ou pela restrição de liberdades ou a expressão de pensamento) dos que se lhes opõem.

OS ESPÍRITAS E O CENSO DE 2022

  Por Jorge Luiz   O Desafio da Queda de Números e a Reticência Institucional do Espiritismo no Brasil Alguns espíritas têm ponderado sobre o encolhimento do número de declarados espíritas no Brasil, conforme o Censo de 2022, com abordagens diversas – desde análises francas até tentativas de minimizar o problema. O fato é que, até o momento, as federativas estaduais e a Federação Espírita Brasileira (FEB) não se manifestaram com o propósito de promover um amplo debate sobre o tema em conjunto com as casas espíritas. Essa ausência das federativas no debate não chega a ser surpreendente e é uma clara demonstração da dinâmica do movimento espírita brasileiro (MEB). As federativas, na realidade, tornaram-se instituições de relacionamento público-social do movimento espírita.

JUSTIÇA COM CHEIRO DE VINGANÇA

  Por Roberto Caldas Há contrastes tão aberrantes no comportamento humano e nas práticas aceitas pela sociedade, e se não aceitas pelo menos suportadas, que permitem se cogite o grau de lucidez com que se orquestram o avanço da inteligência e as pautas éticas e morais que movem as leis norteadoras da convivência social.  

O CERNE DA QUESTÃO DOS SOFRIMENTOS FUTUROS

      Por Wilson Garcia Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina. ***   Inicialmente. O pior das discussões sobre os fundamentos do Espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

A FÉ COMO CONTRAVENÇÃO

  Por Jorge Luiz               Quem não já ouviu a expressão “fazer uma fezinha”? A expressão já faz parte do vocabulário do brasileiro em todos os rincões. A sua história é simbiótica à história do “jogo do bicho” que surgiu a partir de uma brincadeira criada em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro. No início, o zoológico não era muito popular, então o jogo surgiu para incentivar as visitas e evitar que o estabelecimento fechasse as portas. O “incentivo” promovido pelo zoológico deu certo, mas não da maneira que o barão imaginava. Em 1894, já era possível comprar vários bilhetes – motivando o surgimento do bicheiro, que os vendia pela cidade. Assim, o sorteio virou jogo de azar. No ano seguinte, o jogo foi proibido, mas aí já tinha virado febre. Até hoje o “jogo do bicho” é ilegal e considerado contravenção penal.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia: