Pular para o conteúdo principal

TER TEMPO DE MÃE NOS TEMPOS DE HOJE¹

 


Um dia que alguns consideram comercial (minha própria mãe considerava), mas a maioria comemora com as mães ou lembra delas e as redes sociais ficam cheias de fotos, homenagens, poesias e recordações, quando elas não estão mais aqui.

Mas vale uma reflexão sobre o ser mãe – embora já haja tantas, rasas ou profundas, feitas por homens, e por incrível que pareça, apenas muito recentemente na história, por mulheres, que são mães ou não.

Há mães de todos os tipos, como há seres humanos que vão da escala da bestialidade à integridade: as que abandonam, as que espancam, as que humilham ou competem com os filhos, as que não queriam ser mães, mas foram, e consideram os filhos um estorvo, há aquelas que são cúmplices de pais abusadores ou violentos e todas essas mães deixam feridas psíquicas quase incuráveis nos filhos, que sentem para sempre a ausência de um colo protetor.

Mas a maioria das mães ama, cuida, se dedica, se entrega, protege, luta como leoa para dar o melhor para os filhos e muitas e muitas fazem isso sozinhas, porque há mais pais que abandonam e esquecem, que se omitem ou somem, do que mães que façam isso. E é claro, que mesmo essas mães que agem com maternidade devotada e amorosa, erram, porque são humanas. O problema é que os erros maternos (e paternos) de mães relativamente saudáveis, também provocam feridas psíquicas nos filhos, como uma frase mal posta e repetida muitas vezes; como uma expectativa exagerada ou um perfeccionismo excessivo; como uma projeção dos próprios sonhos nos filhos ou uma repressão sexual descabida. Por isso, todo mundo precisaria fazer terapia. É claro que a vontade de acerto, o amor sincero, o afeto partilhado e o exemplo honrado se sobrepõem a esses desacertos humanos. Errar, sempre erraremos em tudo, porque estamos no domínio da imperfeição.

Mas há também que se pensar que ser mãe se dá sempre num contexto, social, histórico, político… a maternidade é muito idealizada, homenageada, mas nunca foi suficientemente valorizada, apoiada, cercada de cuidado com a própria mãe, para que ela pudesse cumprir a tarefa materna com tranquilidade, com descanso, com saúde física e psíquica.

No mundo contemporâneo, ser mãe é quase um ato de heroísmo, pelo menos para a maioria das mulheres, que precisam trabalhar para sobreviver. É uma batalha sem fim, para trabalhar, cuidar dos filhos, cuidar da casa, organizar a vida, e ainda ter um pingo de tempo para si.

O mundo do capital não valoriza a maternidade (e nem a paternidade), porque mulheres e homens precisam estar sempre disponíveis para o trabalho, o tempo todo conectados. A escravidão dos empregos (e no Brasil, isso tende a piorar com o neoliberalismo galopante e a proteção ao trabalhador minguando), mais o tempo que se perde para chegar e voltar (quando não se trabalha remotamente), mais as necessidades básicas do cotidiano… tudo deixa pouco ou nenhum tempo para a mãe olhar o filho, ter o gosto de beijá-lo, de estar junto, de brincar, de passear. E quando sobra qualquer réstia de tempo, a exaustão diminui a disposição e o prazer.

De modo que em nossa sociedade, o cuidar (seja de crianças, doentes e velhos) está quase sempre terceirizado, com mão de obra barata ou mais especializada, dependendo das condições econômicas, e todo o cuidar fica mais esvaziado de afeto, de ternura, de olhos nos olhos. Embora, claro, muitos profissionais do cuidado terceirizado possam aliar afetividade ao trabalho remunerado. Mas alguém pode substituir a mãe? Não interessa se a mãe é biológica ou não – interessa o vínculo profundo, permanente, incondicional e que não vai se quebrar de jeito nenhum. Todo profissional é descartável numa relação capitalista de trabalho, portanto o cuidado de alguém que é pago para cuidar é um cuidado que será rotativo e haverá sempre a grande possibilidade de ruptura. É um cuidado de aluguel, mesmo que tenha um afeto.

Mas a julgar por todas as declarações de saudade, amor e gratidão nas redes sociais, embora saibamos que no Facebook e no Instagram tudo parece um conto de fadas, todo mundo gosta é de colo de mãe, todo mundo anseia por ele e gostaria de voltar para aquele lugar seguro e aconchegante do seio materno e, mais, do ventre materno.

Entretanto, além dos obstáculos sociais, para a vivência da maternidade – porque o certo e o melhor seria termos dois anos de licença-maternidade, como se dá em alguns países do chamado primeiro mundo – há os condicionamentos internos. Nossa sociedade é violentamente narcísica e individualista – ora não há nada que nos mova mais de nosso egoísmo do que a maternidade (e deveria ser também assim para a paternidade). O bebê é um ser totalmente dependente, precisa de 24 horas de cuidado, afeto e atenção. Por isso a mobilização de amor e renúncia de si é absolutamente necessária, pelo menos nos primeiros meses. Mas, por toda a vida, filhos exigem, esperam e precisam de amor e de doação. Essa necessidade básica, que até em animais se vê, é claro, por um período muito menor de tempo, está em oposição total ao mundo do trabalho, ao mundo do entretenimento, à velocidade avassaladora do ritmo contemporâneo e sobretudo à pregação constante de autoajuda: “ame primeiro a você mesma (o)”. Não, diante de um bebê, há que se esquecer de si mesmo por um tempo, porque ali o amor pelo outro tem que ser visceral. E há muitas mulheres e muito mais homens que simplesmente não desenvolveram a maturidade para saírem de seu mundo narcísico, de seu individualismo feroz. Por isso, vemos muitas crianças negligenciadas e abandonadas dentro de sua própria casa. O abandono afetivo é tão grave quanto a violência e o abuso. Cria-se um vazio interno, uma sede de afeto insaciável, que muitas vezes vai buscar preenchimento na droga ou vai desembocar na automutilação ou no suicídio.

Por tudo isso, precisamos sim valorizar a maternidade, a maternagem, a mãe dos olhos nos olhos, a mãe que faz um bolo, pelo menos de vez em quando, a mãe que conversa, a mãe que toca e beija, a mãe que acompanha e usa sua intuição para perceber o que vai no coração do filho.

Como visão reencarnacionista, o espiritismo nos propõe a ideia de que os espíritos não têm sexo e podem reencarnar como homens e mulheres. E sim, todos teremos algum dia, na estrada do tempo, de ter a experiência de sermos mães, para termos a oportunidade de fazer brotar em nós e desenvolver esse amor materno, que cuida e se entrega, que acolhe e protege. E mais, embora sejamos espíritos velhos, já vividos muitas vezes e em muitas paragens, retornamos todas as vezes, no corpo tenro de um bebê, para zerarmos os traumas e os desajustes do passado, e reaprendermos a cada nova vida, a ternura e aconchego, o amor e o respeito. Quando mães e pais deixam de cumprir esse combinado de dedicação e educação, seja porque não querem, sejam porque não sabem, seja porque não podem, há prejuízos para aquela vida que se reinicia num novo corpo. Por tudo isso, a sociedade deve caminhar no sentido de permitir que a maternidade e a paternidade sejam exercidas plenamente e não aos trancos de um trabalho desenfreado e aos barrancos da irresponsabilidade narcísica.

 

¹publicado originalmente no jornal GGN, 13.05.2019

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DEMOCRACIA SEM ORIENTAÇÃO CRISTÃ?

  Por Orson P. Carrara Afirma o nobre Emmanuel em seu livro Sentinelas da luz (psicografia de Chico Xavier e edição conjunta CEU/ FEB), no capítulo 8 – Nas convulsões do século XX, que democracia sem orientação cristã não pode conduzir-nos à concórdia desejada. Grifos são meus, face à atualidade da afirmação. Há que se ressaltar que o livro tem Prefácio de 1990, poucas décadas após a Segunda Guerra e, como pode identificar o leitor, refere-se ao século passado, mas a atualidade do texto impressiona, face a uma realidade que se repete. O livro reúne uma seleção de mensagens, a maioria de Emmanuel.

JESUS E A QUESTÃO SOCIAL

              Por Jorge Luiz                       A Pobreza como Questão Social Para Hanna Arendt, filósofa alemã, uma das mais influentes do século XXI, aquilo que se convencionou chamar no século XVII de questão social, é um eufemismo para aquilo que seria mais fácil e compreensível se denominar de pobreza. A pobreza, para ela, é mais do que privação, é um estado de carência constante e miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é sórdida porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o ditame absoluto da necessidade que todos os homens conhecem pela mais íntima experiência e fora de qualquer especulação (Arendt, 1963).              A pobreza é uma das principais contradições do capitalismo e tem a sua origem na exploração do trabalho e na acumulação do capital.

A FÉ NÃO EXCLUI A DÚVIDA

  Por Jerri Almeida A fé não exclui a dúvida! No espiritismo, a dúvida dialoga filosoficamente com a fé. O argumento da “verdade absoluta”, em qualquer área do conhecimento, é um “erro absoluto”. No exercício intelectual, na busca do conhecimento e da construção da fé, não se deve desconsiderar os limites naturais de cada um, e a possibilidade de autoengano. Certezas e dúvidas fazem parte desse percurso!

ESPIRITISMO NÃO É UM ATO DE FÉ

  Por Ana Cláudia Laurindo Amar o Espiritismo é desafiador como qualquer outro tipo de relação amorosa estabelecida sobre a gama de objetividades e subjetividades que nos mantém coesos e razoáveis, em uma manifestação corpórea que não traduz apenas matéria. Laica estou agora, em primeira pessoa afirmando viver a melhor hora dessa história contemporânea nos meandros do livre pensamento, sem mendigar qualquer validação, por não necessitar de fato dela.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

TRAPALHADAS "ESPÍRITAS" - ROLAM AS PEDRAS

  Por Marcelo Teixeira Pensei muito antes de escrever as linhas a seguir. Fiquei com receio de ser levado à conta de um arrogante fazendo troça da fé alheia. Minha intenção não é essa. Muito do que vou narrar neste e nos próximos episódios talvez soe engraçado. Meu objetivo, no entanto, é chamar atenção para a necessidade de estudarmos Kardec. Alguns locais e situações que citarei não se dizem espíritas, mas espiritualistas ou ecléticos. Por isso, é importante que eu diga que também não estou dizendo que eles estão errados e que o movimento espírita, do qual faço parte, é que está certo. Seria muita presunção de minha parte. Mesmo porque, pelo que me foi passado, todos primam pela boa intenção. E isso é o que vale.

ÉTICA E PODER

     Por Doris Gandres Do ponto de vista filosófico, ética e moral são conceitos diferentes, embora, preferivelmente, devessem caminhar juntos. A ética busca fundamentação teórica para encontrar o melhor modo de viver de acordo com o pensamento e o interesse humanos. Enquanto que a moral se fundamenta na obediência a normas, costumes ou mandamentos culturais, hierárquicos ou religiosos – e mais, se fundamenta em princípios de respeito a valores superiores de justiça, fraternidade e solidariedade, ou seja, nas próprias leis naturais, as leis divinas.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...