Pular para o conteúdo principal

ENTREVISTA : FILIPE ALBANI - COLETIVO DE ESTUDOS ESPIRITISMO E JUSTIÇA SOCIAL(CEJUS) - II PARTE


A vida é um processo dialético permanente. A partir desse conceito é natural que haja o espírita progressista-conservador e o conservador-progressista.² Ou há uma régua que delimita o progressista do conservador? 

Creio que sempre há gradações, como em todas as posições, que vão desde os radicais de direita, chegando a o que chamamos de extrema-direita, até os radicais de esquerda, que podemos chamar de extrema-esquerda.

Observando os aspectos doutrinários ressaltados em O Livro dos Espíritos e mesmo em O Evangelho Segundo o Espiritismo, os livros de Kardec mais estudados pelas casas espíritas, não vejo com tanta naturalidade esse desvio para um lado conservador, beirando ao reacionário.

Creio que boa parte desses desvios está na dedicação às obras que não estão diretamente relacionadas com Kardec, mas sim ao conservadorismo implantado pela adoção sem qualquer senso crítico das obras do Ermano Manuel, mais conhecido como Emmanuel (Freitas Nobre pergunta a Chico Xavier, em um Pinga-Fogo, se Emmanuel assinava E. Manuel, por referência à personalidade como teria encarnado, Manuel da Nóbrega; e Chico confirma a informação), André Luiz, Humberto de Campos, Joanna de Ângelis e outras de caráter não tão denso nem tão doutrinário como as que Kardec nos legou.

Podemos debater muitas coisas nas casas espíritas – até mesmo, Kardec; contudo, questionamentos sobre as obras desses Espíritos, supostamente complementares às obras fundamentais, são totalmente rechaçados, como se fossem sagrados.

Além disso, o impedimento de questionamentos de ordem política, especialmente se tiver questionamentos relativos à ordem social, são considerados como “coisas de comunistas”; logo, debates que permitam estimular um envolvimento social são absolutamente vetados, permitindo que determinadas ideias equivocadas fiquem encasteladas nas casas espíritas, tornando-as locais opressores, não libertadores.

 

Há comentário que circulam que há uma identidade dos progressistas com a Confederação Espírita Pan-Americana – CEPA.  É do conhecimento que a CEPA defende a filosofia moral de Jesus mas defende um Espiritismo laico?  O que há de verdadeiro nisso?

Até onde eu saiba, especialmente a partir do estudo da tese de doutorado No princípio era o verbo, de Celia Arribas, a CEPA trata a doutrina espírita como ciência, filosofia e moral, o que parece ser mais justa do que o componente religioso e igrejeiro, como diria Herculano Pires, e que se tornou hegemônico no Brasil.

O próprio Kardec defendia a não existência de rituais; contudo, a leitura de página (geralmente, de Ermano Manuel), passe e água fluidificadas acabaram incorporadas à rotina de diversas casas, a ponto de estranharmos quando não temos essas práticas em alguma reunião. A própria prece costuma ser colocada como um ritual, seja de abertura, seja de encerramento; no entanto, se você já procura se manter com pensamento elevado, a prece acaba sendo uma espécie de cereja do bolo, mas que pode ser feita mesmo antes de você estar em qualquer ambiente, seja ele espírita, laboral, doméstico... Enfim, em qualquer lugar.

Creio que deveríamos pensar melhor sobre este assunto e a maneira como poderíamos ressaltar a moral cotidiana em vez de valorizarmos essas práticas, muitas vezes chamadas de medicina espírita, que nada mais é do que uma adaptação das religiões orientais. Não digo que devamos simplesmente jogar tudo fora, mas parar para analisar até que ponto que o fazemos no “piloto automático”.

Um exemplo: estamos há meses com as instituições fechadas e sem tomar passe nem água fluidificada. Alguém piorou de saúde por isso? Acredito que não; no entanto, se você procura manter o pensamento elevado, procura ler e estudar obras edificantes, desenvolve a resiliência, faz suas preces de maneira sincera, além de outros procedimentos para manter a saúde mental equilibrada, certamente já realizaremos um trabalho medicinal interno, ajudando a manter a conexão com Espíritos mais elevados.

 

Os espíritas progressistas negam algum aspecto doutrinário do Espiritismo?

Creio que os conservadores e reacionários, e não os progressistas, negam os aspectos doutrinários do Espiritismo ao adotar obras escritas por um Espírito somente por ela conter algumas palavras bonitas e supostamente consoladoras, mas, muitas vezes, absolutamente rasas, sem trazer questionamentos e esclarecimentos mais profundos, conforme requereria um estudo realmente espírita.

O Espiritismo, antes de tudo, deve ter um caráter científico-filosófico; isso significa que nada pode ser adotado sem um debate sincero e crítico, procurando perceber se os fatos são lógicos e passam pelo crivo do bom-senso.

Atualmente, tenta-se buscar adeptos com essas leituras, que mais parecem livros de autoajuda, e não uma tentativa de compreensão do mundo em que vivemos. Afasta-se a ciência – a não ser que ela confirme as obras espíritas; deixa-se o questionamento de lado – esquecendo que a própria doutrina somente surgiu porque Kardec questionou as mesas girantes; e abraçam-se obras de cunho duvidoso, deixando de lado qualquer critério de lógica e bom senso.

Lembremo-nos de que no Catálogo Racional de Obras para se fundar uma Biblioteca Espírita, Kardec recomendou ler obras contrárias à doutrina, pois o objetivo não é formar uma nova seita, mas sim deixar que as pessoas cheguem às próprias conclusões autonomamente. Mais doutrinário do que isso, creio que seja impossível

 

Você fez menção na entrevista anterior que o movimento negro se incomoda com o racismo em Kardec. Fale mais a respeito.

Esse é um ponto bastante delicado e que mereceria um debate bem mais profundo. Em diversas passagens, levando em conta o contexto científico da época, Kardec e Espíritos deixam a entender que os europeus seriam superiores em relação a outros povos, muito provavelmente por conta do meio em que vivia.

Não podemos nos esquecer de que estamos falando de uma obra escrita no século 19, e que o meio científico mudou bastante de lá para cá. Além disso, desenvolvemos a consciência do racismo estrutural, que impede que pretes, pardes e outros grupos étnico-raciais e cheguem a patamares de prestígio em nossa sociedade, como indígenas e orientais, por exemplo.

A polêmica maior estaria relacionada à possibilidade de mudança nos textos como forma de retirar essas passagens polêmicas, conforme o vídeo do ativista Antonio Isuperio - (Racismo e Espiritismo). Creio que seria bom ver esse vídeo, ler os livros e analisar tudo; contudo, sou a favor de que haja um debate profundo para tratarmos desse assunto de maneira madura e de forma a chegarmos a um denominador comum – até porque já temos polêmicas com relação a mudanças ocorridas nas edições dos livros O Céu e o Inferno e A Gênese após a desencarnação de Kardec, prejudicando o entendimento do que o próprio Kardec tinha.

Além desse ponto, sou a favor de revisões periódicas da obra para o aproveitamento de aspectos científicos, a fim de manter essa ponte com a ciência – pode-se não mudar o texto, mas se podem colocar notas explicativas pontuais. O problema é que vejo que as ciências humanas e os movimentos sociais são desprezados nesses debates, como se fossem grupos de menor prestígio, em detrimento de outros, que possuem maior prestígio social e mais recursos financeiros. Se alguém está incomodado com a obra, deve ser ouvido e ter sua reclamação analisada para entendermos o problema e verificarmos, em conjunto, qual solução seria a melhor a ser tomada.

 

Há algum ponto de convergência entre os espíritas progressistas com os católicos e protestantes progressistas, por exemplo. O papa Francisco é considerado progressista.

Certamente. Um dos maiores exemplos é o fato de o coletivo de que sou membro participe de um canal de espiritualidade plural, chamado Paz e Bem – curiosamente, expressão atribuída a Francisco de Assis.

Quanto mais nos integramos com outros movimentos religiosos que têm o objetivo de melhorar a situação social, mais nos entendemos entre nós e entendemos que pouco importa se adotamos uma postura doutrinária, seja esta, seja outra, seja nenhuma: todos queremos uma sociedade mais justa, e que repudiamos o uso dos textos de estudo, sagrados ou não, que são utilizados para oprimir as classes populares, tornando a miséria natural ou divina. Não há nada de divino nem natural na miséria, que é fruto do egoísmo humano – informação confirmada pelos próprios Espíritos – e o capitalismo é fruto maior desse egoísmo, valorizando o lucro em vez do ser humano, categorizando as pessoas por meio de critérios arbitrários, considerando-as aproveitáveis ao sistema ou repudiáveis.

Nenhum ser humano é descartável, pois todos tivemos uma origem espiritual comum, independentemente do que cada doutrina teorize. E as religiões têm sido usadas para perpetuar essas diferenças sociais, como se fossem sagradas. Não dá para aceitar pregar que somos todos iguais, se ajudamos a manter o status quo.


Comentários

  1. Olá, Filipe!
    A exemplo da outra, excelente material para esclarecer muitos espíritas. Jorge Luiz

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DEUS¹

  No átimo do segundo em que Deus se revela, o coração escorrega no compasso saltando um tom acima de seu ritmo. Emociona-se o ser humano ao se saber seguro por Aquele que é maior e mais pleno. Entoa, então, um cântico de louvor e a oração musicada faz tremer a alma do crente que, sem muito esforço, sente Deus em si.

SOCIALISMO E ESPIRITISMO: Uma revista espírita

“O homem é livre na medida em que coloca seus atos em harmonia com as leis universais. Para reinar a ordem social, o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se nas mãos; do Espiritismo pode nascer o Socialismo idealista.” ( Arthur Conan Doyle) Allan Kardec ao elaborar os princípios da unidade tinha em mente que os espíritas fossem capazes de tecer uma teia social espírita , de base morfológica e que daria suporte doutrinário para as Instituições operarem as transformações necessárias ao homem. A unidade de princípios calcada na filosofia social espírita daria a liga necessária à elasticidade e resistência aos laços que devem unir os espíritas no seio dos ideais do socialismo-cristão. A opção por um “espiritismo religioso” fundado pelo roustainguismo de Bezerra Menezes, através da Federação Espírita Brasileira, e do ranço católico de Luiz de Olympio Telles de Menezes, na Bahia, sufocou no Brasil o vetor socialista-cristão da Doutrina Espírita. Telles, ao ...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

ESPIRITISMO E POLÍTICA¹

  Coragem, coragem Se o que você quer é aquilo que pensa e faz Coragem, coragem Eu sei que você pode mais (Por quem os sinos dobram. Raul Seixas)                  A leitura superficial de uma obra tão vasta e densa como é a obra espírita, deixada por Allan Kardec, resulta, muitas vezes, em interpretações limitadas ou, até mesmo, equivocadas. É por isso que inicio fazendo um chamado, a todos os presentes, para que se debrucem sobre as obras que fundamentam a Doutrina Espírita, através de um estudo contínuo e sincero.

É HORA DE ESPERANÇARMOS!

    Pé de mamão rompe concreto e brota em paredão de viaduto no DF (fonte g1)   Por Alexandre Júnior Precisamos realmente compreender o que significa este momento e o quanto é importante refletirmos sobre o resultado das urnas. Não é momento de desespero e sim de validarmos o esperançar! A História do Brasil é feita de invasão, colonização, escravização, exploração e morte. Seria ingenuidade nossa imaginarmos que este tipo de política não exerce influência na formação do nosso povo.

O ESPIRITISMO É PROGRESSISTA

  “O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõe todos os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem - a mão para marchar, na mesma rota ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.”   Revista Espírita – junho de 1868, (Kardec, 2018), p.174   Viver o Espiritismo sem uma perspectiva social, seria desprezar aquilo que de mais rico e produtivo por ele nos é ofertado. As relações que a Doutrina Espírita estabelece com as questões sociais e as ciências humanas, nos faculta, nos muni de conhecimentos, condições e recursos para atravessarmos as nossas encarnações como Espíritos mais atuantes com o mundo social ao qual fazemos parte.

OS ESPÍRITAS E OS GASPARETTOS

“Não tenho a menor pretensão de falar para quem não quer me ouvir. Não vou perder meu tempo. Não vou dar pérolas aos porcos.” (Zíbia Gaspareto) “Às vezes estamos tão separados, ao ponto de uma autoridade religiosa, de um outro culto dizer: “Os espíritas do Brasil conseguiram um prodígio:   conseguiram ser inimigos íntimos.” ¹ (Chico Xavier )                            Li com interesse a reportagem publicada na revista Isto É , de 30 de maio de 2013, sobre a matéria de capa intitulada “O Império Espírita de Zíbia Gasparetto”. (leia matéria na íntegra)             A começar pelo título inapropriado já que a entrevistada confessou não ter religião e autodenominou-se ex-espírita , a matéria trouxe poucas novidades dos eventos anteriores. Afora o movimento financeiro e ...