terça-feira, 18 de julho de 2017

ESPIRITUALIDADE À ESQUERDA - O QUE É ISSO?







Dois extremos se mostram cristalizados ainda hoje, em posturas que vêm dos séculos XVIII e XIX: uma espiritualidade conservadora e uma esquerda materialista.

Para falarmos um pouco sobre o tema, primeiro definamos o que é espiritualidade e o que é esquerda.

Espiritualidade é o denominador comum das religiões, mas também existe espiritualidade sem religião. É a conexão do ser humano com a dimensão além-física, é a busca do divino em si, no outro, no universo. Está sempre ligada a princípios éticos, que incluem fraternidade, amor, compaixão, benevolência. Há infinitas formas de espiritualidade, dentro e fora das religiões tradicionais ou em correntes atuais.


Esquerda é uma posição crítica em relação ao sistema vigente. É estar sobretudo insatisfeito com as coisas como são organizadas na sociedade e assumir uma posição de transformar o mundo. É se sentir indignado com a injustiça e querer consertá-la de forma política e social. Há inúmeras maneiras de ser esquerda: marxista, anarquista, socialista utópico, social democrata, revolucionário armado ou praticante da não-violência…  Mas, no mundo atual, estar à esquerda é reconhecer o quanto o capitalismo promove a exploração do ser humano, a centralização do poder econômico e político nas mãos de poucos e o quanto de injustiça, exclusão e violência há nesse sistema. Os caminhos pensados para mudar esse quadro são muitos – desde a luta armada (hoje em franca decadência) até a resistência pacífica e a educação (que é o nosso caminho aqui na Universidade Livre Pampédia).

Durante quase 200 anos, a espiritualidade foi combatida por setores da esquerda, marxista e anarquista, por exemplo, pelo caráter de conluio indecente e abusivo que as religiões institucionalizadas fizeram com os donos do poder, pelo discurso conformista que essas religiões criaram, para manter o povo submisso, conformado com a exploração. Na expressão do velho Marx, “religião é o ópio do povo”.

E as religiões combateram posições de esquerda, por causa do uso da violência, por ferirem também interesses de grupos que estão no poder, mas igualmente por ideias que destoam às vezes de alguns princípios que são fortes para os religiosos – cito aqui um caso bem atual e específico, o aborto.

Entretanto, atenção! A verdadeira espiritualidade é sempre à esquerda. Só para citar a tradição judaico-cristã, na qual estamos majoritariamente inseridos: já no velho Testamento, há profetas, como Amós, que criticam a exploração dos ricos. Jesus alertou que era muito difícil – quase impossível – um rico entrar no Reino dos Céus. Expulsou os vendilhões do templo, deixando registrada a sua indignação em relação à exploração em nome da religião, algo tão comum até hoje. Mas disse também que os mansos, os pacíficos, os pobres, que herdarão a Terra.

Por sermos de esquerda, porém, não temos a obrigatoriedade de aderir a toda a sua agenda. E se temos algum princípio de nossas tradições espirituais de que não podemos abrir mão, isso não significa termos que negar em bloco as propostas que a esquerda trabalha de transformar a realidade.

Por outro lado, a esquerda – como posição de transformar o mundo – não prescinde da espiritualidade, pois como manter a esperança, continuar lutando, confiar que um dia o amor, a justiça e a fraternidade reinarão sobre a terra, se tivermos apenas um pequeno minuto de tempo, se não há uma garantia natural, intrínseca em nós, de vitória do bem?

Lutar por um futuro melhor, tendo certeza de que esse futuro se estende para a eternidade, nos dá mais serenidade, lucidez e discernimento. Porque trata-se de mudar instituições, modos de ação no mundo, mas querendo contagiar e “salvar” a todos, incluindo os que exploram.

Exemplos de pessoas e movimentos que praticaram ou praticam uma esquerda não conservadora, mas militante para mudar a sociedade? Há inúmeros: um Gandhi, um Martin Luther King, um Tolstoi (anarquista-cristão, que aliás, inspirou Gandhi e Gandhi inspirou Luther); a teologia da libertação, com Leonardo Boff e o Frei Beto, entre outros tantos; no Espiritismo, houve um Herculano Pires e um Humberto Mariotti; há monges budistas e pacifistas contemporâneos, engajados em movimentos sociais. E temos um Papa Francisco, um grandíssimo exemplo de uma pessoa à esquerda, líder espiritual da Igreja Católica (ela própria comprometida há milênios com o poder, mas em seu seio já nasceram santos e mártires que se doaram aos pobres e oprimidos). Francisco deixou de lado posturas arraigadas na sua tradição, como exclusão de divorciados, mães solteiras e homossexuais, para aplicar simplesmente a mensagem de Jesus: “não julgueis para não serdes julgados”, “amai ao próximo como a si mesmo”. É um crítico lúcido do capitalismo, também se ancorando nos fundamentos do cristianismo (e de todas as tradições espirituais, porque isso todas têm em comum!): de que é mais importante ser do que ter e de que esse ter desmedido está nos levando a uma sociedade enlouquecida, desumanizada e predatória da natureza.

Então, quando alguém que se afirma religioso ou dedicado a alguma forma de espiritualidade, usa expressões como “esquerdopata”, “bandido bom é bandido morto”; ou exclui pessoas por sua cor de pele, orientação sexual; ou apoia políticas excludentes, ou que tendem a aumentar a injustiça e o abismo econômico entre as classes sociais (como é o caso da Reforma trabalhista que acaba de passar no congresso) – essa pessoa não entendeu bem o que é procurar se elevar espiritualmente. Ninguém atinge níveis mais altos de espiritualidade, desinteressando-se pelo destino de seus irmãos em humanidade ou – muito pior – ficando ao lado dos que prejudicam, injustiçam e ferem outros seres humanos. Deus, o sagrado, o divino, está sobretudo no outro. Apenas quando tivermos plena compaixão e empatia com o outro, poderemos nos afirmar espiritualizados!

2 comentários:

  1. Francisco Castro de Sousa18 de julho de 2017 às 17:34

    Esse texto da Confreira Dora Incontri traz excelente elucidação sobre espiritualidade e esquerda. Recomendo com entusiasmo a sua leitura! Parabéns ao Canteiro pela publicação de tão excelente texto, claro, direto e esclarecedor!

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    1. Caro Castro,
      Todos os textos da professora Dora são por demais lúcidos e nos forçam a refletir. Esse não é diferente. O Canteiro de Ideias se sente lisonjeado com seus comentários e por ter a professora no quadro dos nossos colaboradores.

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