Pular para o conteúdo principal

VITIMIZAÇÃO DA INCOMPETÊNCIA



Por Dora Incontri (*)

"Que brilhe a vossa luz" (Jesus)

Quando Sócrates disse há 2500 anos que ele era o mais sábio de todos, porque era o único sábio que sabia que nada sabia, não estava adotando uma postura de humildade postiça, de autoflagelação… Ao contrário, estava nos dando uma lição milenar de uma atitude existencial que é a única que nos leva à superação de nossas limitações e à transcendência de nós mesmos.

Sua fala queria indicar que o verdadeiro sábio (e para ele o sábio era sereno e feliz, porque sua sabedoria não poderia lhe ser tirada) é aquele que se põe em permanente disponibilidade para aprender. Que considera natural não saber tudo. Que indagar, procurar, dispor-se a achar a verdade, é um movimento natural, saudável e nunca humilhante. Ao contrário, aquele que se jacta de já saber tudo ou estaciona à beira da própria ignorância está fazendo ridículo de si mesmo.


Essas reflexões me vêm à mente quando sou defrontada com o discurso que chamarei aqui de “vitimização da incompetência” ou da “desculpa da incapacidade”. O que é isso?

O indivíduo percebe que não desenvolveu determinado conhecimento ou não aperfeiçoou certa habilidade (seja cognitiva, técnica, artística ou mesmo moral). Ao invés de fazer coro com o maior filósofo de todos os tempos e dizer bem-humorado: só sei que nada sei, e portanto vou me colocar ao encalço da sabedoria… vou me esforçar por desenvolver esta ou aquela habilidade…, revolta-se contra si, contra a vida e contra outros, esperneando como criança mimada e arranjando inúmeros desculpismos. “Não tive a mesma oportunidade que outros, não sou capaz, não consigo, está além de mim!” Na mesma onda de revolta e lamentação, pode partir para o ataque até mesmo dos que ama, dizendo que o outro consegue porque tem vantagens que ele não tem. O outro teve tais ou tais privilégios, recebeu tal ou qual educação, possui este ou aquele dom inato ou, simplesmente “nasceu com a bunda virada para a lua”!

Esse atestado de incompetência assumida pode à primeira vista parecer um sintoma de baixa autoestima. E poderia ser. Mas o que se esconde de fato atrás de uma explosão destas, que acaba por imobilizar aquele que a faz e ainda faz respingar agressão para o outro que está seguindo seu caminho, tranquilamente, desenvolvendo suas competências do jeito que sabe, que pode e que quer?

Em minha opinião, falta exatamente aquela atitude socrática, bem-humorada, leve e graciosa, que faz com que a pessoa se meça com honestidade e naturalidade, avaliando a si mesma e procurando com afinco, perseverança e… humildade, o que lhe falta em habilidades intelectuais ou morais. Ou seja, o problema talvez não seja baixa autoestima, mas na verdade, orgulho…

Dói sair da zona de conforto, dói reconhecer que aquilo que somos só devemos a nós mesmos e que não podemos nos considerar vítimas do universo, imobilizando-nos nesse papel. Sim, sim, temos influência da educação, temos limites herdados de infâncias mal vividas, temos traumas passados, temos bloqueios inconscientes em relação a certas coisas – mas só depende de nós a vontade férrea de nos libertarmos, de avançar, de buscar com sofreguidão e empenho o desenvolvimento integral de nossos espíritos.

Se contemplamos alguém que está à frente de nós nesse ou naquele quesito, tenhamos a humildade de aprender com ele, admirando-lhe a capacidade, que certamente conquistou com esforço e sacrifício, e ofereçamos algo em troca que ele talvez não possua. Não nos sintamos humilhados se o outro nos exceder em alguma competência, ao invés, esforcemo-nos por adquiri-la! Senão, poderemos ser contaminados pelo orgulho ferido ou, pior, pela inveja do talento alheio!

Existe ainda outra atitude que pode ser um disfarce negativo para essa confissão de incapacidade. É quando a pessoa passa a querer competir com o outro que lhe é superior numa determinada competência: a competição pode vir acompanhada de um esforço real de melhoria (o que já é menos mal) ou simplesmente de desfazer o que o outro está fazendo e tentar sobrepor-se ou insinuar-se sem ter de fato desenvolvido a mesma habilidade que o outro. Estamos aí diante da inveja assumida.

Diga-se de passagem que qualquer pessoa que sabe fazer algo – por exemplo, cantar, escrever, desenhar, cozinhar, tocar um instrumento, falar uma língua ou no plano moral, ser generoso, exercer liderança, ser ativo – ou seja o que for – ela só será verdadeiramente sábia se também continuar exercendo aquela máxima de Sócrates. Não se importará de submeter seus talentos, seus trabalhos, suas atitudes, a uma crítica construtiva e permanente, procurando aperfeiçoar os talentos adquiridos, buscando ainda desenvolver outros!

Ou seja, basta entendermos, com elegância e naturalidade, que todos somos aprendizes da evolução e que podemos e devemos nos ajudar mutuamente nesse caminho, sem nos jactarmos do que já conquistamos e sem nos incomodarmos com a conquista do outro – e tudo irá bem. Todos poderão encontrar os próprios caminhos para o burilamento de si.

Toda essa discussão se enraíza perfeitamente na concepção socrática de ser humano. Para Sócrates, todos nós somos seres divinos e podemos realizar o parto de darmos à luz a nós mesmos. Portanto, partimos aqui do pressuposto de que todos podem, todos têm infinitas potencialidades a serem desenvolvidas…

Há que se fazer ainda um pequeno parêntese reencarnatório: é que, embora, sejamos todos divinos, trazendo sementes a serem desenvolvidas, e até árvores já crescidas de outras épocas, pode acontecer que numa dada vida, não nos seja permitido desabrochar algum talento específico (que às vezes até podemos tê-lo já altamente desenvolvido), justamente para termos a oportunidade de trabalhar outros setores de nossa personalidade. Então, também aí nos cabe reconhecer que podemos ter tesouros ocultos guardados mas que, por ora, ficarão apenas como intuições…


Por isso também é tão essencial a pessoa descobrir qual o seu projeto de vida, qual sua missão aqui e agora, para que o sentido de cumprir essa tarefa lhe traga bem-estar e satisfação. E trabalhar com afinco e dedicação para fazer desabrochar os talentos, as capacidades, relacionadas a essa missão. E tudo fica mais coerente, mais límpido, menos dolorido e mais certeiro!

(*) educadora, jornalista e escritora brasileira; autora de mais de 20 obras publicadas, dentre elas livros didáticos de filosofia e ensino inter-religioso.

Comentários

  1. GOSTEI DO TEMA, NO INICIO A GENTE ESTRANHA O TITULO, E FICA QUERENDO LER SOBRE O ASSUNTO, E TENTANDO ENTENDER O QUE O TEMA QUER DIZER. HOJE VEMOS CASOS COMO ESTES EM TODA A NOSSA VIDA. SÃO PESSOAS EGOISTAS, INVEJOSAS, QUEM TENTAM DERRUBAR OS OUTROS NO EMPREGO E ETC. MAIS UMA VEZ SÓCRATES NOS SURPREENDE, QUANDO DIZ ; ´SO SEI QUE NADA SEI, E ABRE ASSIM UMA REFLEXÃO, QUE NO MEU MODO DE VER, FOI SIMPLESMENTE DIGNA DE SER COPIADA , REFLETIDA, E SEGUIDA POR TODOS NÓS.. POR ULTIMO, É MUITO IMPORTANTE QUE AS PESSOAS DESCUBRAM OS SEUS TALENTOS, E EXERCEÇAM COM TODA A GARRA E AFINCO.


    BRUNO FILHO

    SOCIEDADE ESPIRITA DOUTOR ANTONIO JUSTA.

    PARABENS A TODOS.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DEUS¹

  No átimo do segundo em que Deus se revela, o coração escorrega no compasso saltando um tom acima de seu ritmo. Emociona-se o ser humano ao se saber seguro por Aquele que é maior e mais pleno. Entoa, então, um cântico de louvor e a oração musicada faz tremer a alma do crente que, sem muito esforço, sente Deus em si.

SOCIALISMO E ESPIRITISMO: Uma revista espírita

“O homem é livre na medida em que coloca seus atos em harmonia com as leis universais. Para reinar a ordem social, o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se nas mãos; do Espiritismo pode nascer o Socialismo idealista.” ( Arthur Conan Doyle) Allan Kardec ao elaborar os princípios da unidade tinha em mente que os espíritas fossem capazes de tecer uma teia social espírita , de base morfológica e que daria suporte doutrinário para as Instituições operarem as transformações necessárias ao homem. A unidade de princípios calcada na filosofia social espírita daria a liga necessária à elasticidade e resistência aos laços que devem unir os espíritas no seio dos ideais do socialismo-cristão. A opção por um “espiritismo religioso” fundado pelo roustainguismo de Bezerra Menezes, através da Federação Espírita Brasileira, e do ranço católico de Luiz de Olympio Telles de Menezes, na Bahia, sufocou no Brasil o vetor socialista-cristão da Doutrina Espírita. Telles, ao ...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

ESPIRITISMO E POLÍTICA¹

  Coragem, coragem Se o que você quer é aquilo que pensa e faz Coragem, coragem Eu sei que você pode mais (Por quem os sinos dobram. Raul Seixas)                  A leitura superficial de uma obra tão vasta e densa como é a obra espírita, deixada por Allan Kardec, resulta, muitas vezes, em interpretações limitadas ou, até mesmo, equivocadas. É por isso que inicio fazendo um chamado, a todos os presentes, para que se debrucem sobre as obras que fundamentam a Doutrina Espírita, através de um estudo contínuo e sincero.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

É HORA DE ESPERANÇARMOS!

    Pé de mamão rompe concreto e brota em paredão de viaduto no DF (fonte g1)   Por Alexandre Júnior Precisamos realmente compreender o que significa este momento e o quanto é importante refletirmos sobre o resultado das urnas. Não é momento de desespero e sim de validarmos o esperançar! A História do Brasil é feita de invasão, colonização, escravização, exploração e morte. Seria ingenuidade nossa imaginarmos que este tipo de política não exerce influência na formação do nosso povo.

O ESPIRITISMO É PROGRESSISTA

  “O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõe todos os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem - a mão para marchar, na mesma rota ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.”   Revista Espírita – junho de 1868, (Kardec, 2018), p.174   Viver o Espiritismo sem uma perspectiva social, seria desprezar aquilo que de mais rico e produtivo por ele nos é ofertado. As relações que a Doutrina Espírita estabelece com as questões sociais e as ciências humanas, nos faculta, nos muni de conhecimentos, condições e recursos para atravessarmos as nossas encarnações como Espíritos mais atuantes com o mundo social ao qual fazemos parte.

OS ESPÍRITAS E OS GASPARETTOS

“Não tenho a menor pretensão de falar para quem não quer me ouvir. Não vou perder meu tempo. Não vou dar pérolas aos porcos.” (Zíbia Gaspareto) “Às vezes estamos tão separados, ao ponto de uma autoridade religiosa, de um outro culto dizer: “Os espíritas do Brasil conseguiram um prodígio:   conseguiram ser inimigos íntimos.” ¹ (Chico Xavier )                            Li com interesse a reportagem publicada na revista Isto É , de 30 de maio de 2013, sobre a matéria de capa intitulada “O Império Espírita de Zíbia Gasparetto”. (leia matéria na íntegra)             A começar pelo título inapropriado já que a entrevistada confessou não ter religião e autodenominou-se ex-espírita , a matéria trouxe poucas novidades dos eventos anteriores. Afora o movimento financeiro e ...