terça-feira, 12 de maio de 2015

DE MULHERES PARA OUTRAS MULHERES (E para homens também...)





 Por Dora Incontri (*)




Entre as inúmeras amizades virtuais que tenho Brasil afora, uma mulher, pessoa de muito valor, de muita garra e inteligência, me enviou esse texto abaixo. Tem a força da experiência vivida, tem a moral de quem superou as armadilhas do caminho. Assim, com sua autorização, retirei nomes, datas e locais, que pudessem identificá-la, e estou publicando aqui esse texto forte e verdadeiro.

Comento de minha parte que, como mulher, vivi exatamente o contrário dessa amiga. Mas o contrário, que revela a mesma coisa. Como na adolescência, comecei a engordar, (e era a “moby” para alguns meninos, inclusive familiares), como usava óculos (e minha mãe teimava em comprar os mais baratos e mais feios), como já aos 13 anos de idade, era precoce em leituras espíritas e filosóficas, como era estranha em gostos musicais, como ópera e música clássica, então sofri o completo desinteresse masculino. Porque em sua maioria, os homens não se interessam por meninas muito inteligentes e menos ainda por aquelas, cujas curvas não correspondem aos padrões mediáticos contemporâneos (por sinal, cada vez mais anoréxicos e menos femininos!), não era devorada com os olhos, como conta minha amiga, mas era enregelada nas paqueras.


Hoje, aos 52 anos, plenamente reconciliada com meus quatro olhos, com meus quilinhos a mais, com minha intelectualidade, que tem me ajudado a cumprir minha tarefa existencial, sem deixar meu lado feminino de lado, posso me juntar a esse texto abaixo, para protestar contra o machismo ainda reinante na sociedade.

Na semana passada mesmo, apanhei de relance um rapaz de um estacionamento, onde estava pegando meu carro em SP, comendo com os olhos uma menina que passava descuidada. A cena, que só eu percebi, me provocou asco e revolta. Isso é uma característica majoritária do gênero masculino, não importando a orientação sexual, pois os gays também devoram os bonitões com os olhos. Mulheres em geral não fazem isso.

Realmente, o desejo e a atração fazem parte integrante do instinto sexual e podem ser o primeiro impulso para o outro. Entretanto, se esse desejo e essa atração forem assim devastadores, invadindo o campo vibratório do outro, arrancando a roupa do outro com os olhos; quando não se enxerga, em suma, o outro em si, como pessoa, mas apenas como um pedaço de carne, então de fato, há um desrespeito, há um roubo da integridade alheia. E se isso resulta em ação (e se não se aprende a sublimar o desejo e a refiná-lo com o sentimento, é isso que acontece), então, pode-se resvalar para o crime, como o estupro, o assédio, o abuso…

A educação tem que começar a lidar com isso, tornando o gênero masculino menos bruto e o gênero feminino menos suscetível a essas investidas. Lembro-me que quando morava na Alemanha, em plena adolescência, e frequentava a escola em Berlim, havia professoras mulheres, que nos ensinavam que se algum homem nos abordasse na rua com intenções violentas, deveríamos acertar com um chute as suas partes íntimas. Eu, que vinha de uma cultura latina, achava esses conselhos por demasiado brutais. Mas, passados tantos anos, vemos no mundo todo, incluindo no Brasil, tantas violências ainda cometidas contra as mulheres, que chego a questionar se não seria, às vezes, bom muni-las de defesas até físicas contra isso. Embora considere que o melhor ainda será fazermos homens mais sensíveis (como os há hoje muitos nas novas gerações), o que não significa efeminados, mas pessoas mais equilibradas sexualmente, que saibam apreciar as qualidades femininas, com respeito, partilhando conosco a existência, em amor igualitário, amizade sincera e parceria mútua. Mas para os machistas, qualquer sensibilidade é sinal de bichice, termo usado sempre com muita ironia. Aliás, a identidade do machão se firma geralmente no desprezo ao que é feminino, num estranho paradoxo, de querer tomar posse daquilo que se odeia.

Mas, vamos, ao texto, que fala de uma experiência dura, felizmente superada. Hoje, essa amiga é casada com um cavalheiro, que a ama, a admira e a respeita, como ser humano e como mulher:

 “Só agora, mais próxima dos 50 que dos 40, me sinto à vontade para escrever as linhas que se seguem. Talvez, antes disso, me faltasse a consciência sobre diversos fatos ocorridos, seu sentido mais profundo, nesta minha trajetória de mulher. Aliás, provavelmente eu ainda sequer perceba algumas das sutilezas do destino, os mil e um porquês nos pequenos fatos que existem dentro de um cotidiano feminino, cheio de sonhos, lutas, medos e cansaços.

Tudo bem, pois não pretendo desvelar a totalidade, mas apenas pincelar alguns relatos, refletir sobre algumas questões.

Creio, ainda, que minha maior esperança no texto não se circunscreva tão somente a um desabafo cor-de-rosa, falando do quanto a música Maria Maria, do Milton Nascimento diz muito mais do que aparenta, num primeiro momento, mas [quem sabe?] um relato que venha deixar um pouco mais à mostra algumas das armadilhas soltas à margem dos caminhos da vida, prontas para abocanhar nossas pernas depiladas, tão ao gosto da publicidade contemporânea.

Aos 14 anos de idade, percebi o quanto meu corpo estava se alterando, com curvas mais acentuadas dentro do velho agasalho da escola. Era estranho tomar banho e olhar para a lateral do quadril sem conseguir enxergar a parte de cima da própria coxa, por conta do alargamento ósseo. Confesso que não achei isso bonito e já começava a sentir saudade do meu corpo de criança, tão conhecido e “normal”.

O problema é que outros também perceberam que eu já não era mais uma menina [no corpo, somente!], causando-me constrangimentos constantes. Nas ruas, alguns homens me assediavam, como se eu fosse um pedaço de carne fincado no espeto, pronto para ser devorado por qualquer esfomeado que aparecesse pela frente.

Como uma menina de quatorze anos que até então brincava na rua de lazer junto de outras meninas e meninos, descendo ladeiras com rolimãs e skates, confesso que não conseguia entender aquelas investidas, chegando em casa muitas s assustada, com medo de que alguém pudesse me sequestrar, violentar ou, quem sabe, assassinar. Embora nunca tivesse me preocupado com aquele assunto, precisei começar a prestar atenção no jeito dos homens que se aproximavam, sob risco de ser vítima de algum deles, em qualquer lugar que fosse.

Talvez os homens jamais saberão o que é sentir este terror diário, o medo de andar nas ruas, por conta destas torturas morais constantes, quando se tem apenas 14 anos de idade… Talvez eles até tentem imaginar, quem sabe…mas, o certo é que todos aqueles que se sentem no direito de ameaçar a paz de uma menina, dizendo ou fazendo gestos erotizados, são pessoas com desvios morais, alimentados por esta escória midiática, que torna o corpo da mulher um objeto qualquer, sem sentimentos, nem direitos ou fragilidades psíquicas.

E o que se seguiu a partir dali não foi melhor.

Então, com meus 15 anos, para chegar na escola, precisava usar metrô e ônibus na já atribulada São Paulo, chegando aos portões do colégio até, no máximo 7:15h. No inverno, esta saga tornava-se algo ainda mais perigoso, pois de casa até a estação Jabaquara do metrô, levava cerca de 10 minutos andando a pé, num final de madrugada escuro, sem o sol para iluminar minha ansiedade.

Só Deus sabe quantas preces eu fiz pelo caminho, implorando ao anjo da guarda me protegesse. Aliás, se estou aqui escrevendo esta história, deve ser por conta dessa ajuda silenciosa, porém, constante.

Neste período comecei a ser ameaçada por um homem, que disparava atrás de mim, falando palavras que eu nunca antes imaginei existir, mesmo sabendo o quanto eram baixas, tenebrosas e ameaçadoras.

Foram tantas corridas, largando cadernos pelo caminho, a fim de conseguir maior velocidade, que cheguei a desistir dos estudos naquele ano. Eu sabia que a qualquer momento poderia ser pega por algum maluco, sem conseguir voltar para casa.

Nesta época, meus pais moravam num sítio, no interior do Estado, então ficava com minha avó. Não tinha ninguém para me acompanhar pelo caminho.

Foi quando minha irmã, já casada, me convidou para ir morar numa pacata cidade do interior, com seus até então 20.000 habitantes. É verdade que os sons rotineiros de sapos e grilos de lá me eram entediantes, porém me sentia mais segura para andar pelas ruas, o que, por si só, já fazia tudo valer a pena.

Apesar das perdas doloridas, tais como o afastamento de amizades, escola e parentes, aceitei.

Lá completei meus 16 anos. Quantos sonhos numa mente juvenil! Queria conhecer um rapaz especial, do tipo príncipe encantado, namorar, poder viver em paz. Durante o dia, trabalhava no banco como auxiliar de aplicações, estudando à noite, numa escola não tão boa como a que estivera matriculada, anos antes. Sem problemas!

Foi quando conheci aquele que seria meu primeiro marido. Moço jovem, com seus vinte e dois anos, irmão de uma amiga. Logo percebi que ele tinha um temperamento forte, mas ainda assim me trazia flores, bombons e muitas juras de amor. Que mais eu poderia querer? Hoje sei que muito, muito mais, claro! Porém, lá ia eu enfiando a perna numa das arapucas abertas do caminho.

Comemoramos o terceiro mês de namoro e uma notícia bombástica chegou aos meus ouvidos: meus pais iriam se mudar para o Acre. E queriam que eu fosse junto com eles, lógico. Implorei, me deixassem morando com a minha irmã, porém, meu pai, homem tradicional, nascido na década de 20, com sua vida orientada pelo lema: “filha minha só sai da tutela do pai se for para a tutela do marido” – disse que eu só ficaria, se estivesse casada.

Não pensei duas vezes. Preparei o possível e me casei, em dois meses, apenas.

Realmente, saí da tutela de um homem, para a tutela de outro, só que bem pior.

Nos primeiros meses, engravidei da minha primeira filha. Depois disso, uma nova sentença masculina ecoava em mês ouvidos: “Mulher minha não trabalha nem estuda…Fica apenas em casa, cuidando das coisas e dos filhos!”

Num primeiro momento, não tive forças para mudar isso. Nem sabia que seria possível, aliás.

Na primeira grande discussão, um susto: sacou uma arma, apontou na minha direção, dizendo que se eu fosse embora, me mataria.

Foi quando, ainda grávida, apanhei dele pela primeira vez. Foram vários tapas, porque ousei dizer que ele não poderia falar mal dos meus pais. Na segunda vez, porque não quis manter relações sexuais no final da gravidez. Por último, com minha filha ainda pequena, pois o acordei no meio da noite. Estava roncando alto demais e minha filha tinha o sono muito leve.

Chorei “para dentro”, jurando ser aquela a última vez.

Fiquei com diversas marcas roxas, que me deram força para alterar os rumos.

Dois anos depois, com minha filha na escola em meio período, consegui convencê-lo de que iria trabalhar com a irmã dele, como sacoleira. Consegui algum dinheiro emprestado, peguei meu carro e segui para São Paulo. Comprei duas sacolas cheias de roupas e voltei, indo na casa das clientes, vendendo a mercadoria. Dali a dois anos já conseguia me sustentar. Saí de casa, e nunca mais voltei para lá. Deixei tudo para trás: casa, herança, objetos, tudo! Mas levei minha dignidade e minha filha. Era só do que precisava.

Hoje, olhando para trás, percebo a ação nem sempre positiva dos homens em minha vida, empurrando-me para situações incontroláveis, quando vistas sob a ótica de uma menina.

Já amadurecida pelos anos e experiências, hoje sei que só me tornei quem sou por causa do que vivi. Entretanto, também sei que não precisaria ser assim… Existem mil caminhos para a maturidade, mais leves e amorosos. Se consegui me livrar das arapucas armadas, foi porque existe e já existia em mim aquilo que hoje a Psicologia chama de resiliência. Muitas vezes vi minha mãe dando a volta por cima, com força, com garra impressionante! Isso deve ter me inspirado, para além do que ela possa imaginar.

Se existe algo ainda a comentar é que sim – o mundo continua machista. As mulheres ainda enfrentam diversos desafios apenas por serem mulheres. Ganham menos, trabalham mais, enfrentam preconceitos e perseguições. A mídia ainda produz psicopatas nas ruas e nos bares – Homens que veem as mulheres como simples objetos, pedaços de carne animada apenas para o sexo. Os homens ainda controlam as coisas por aí. São reconhecidos com maior rapidez no meio acadêmico e fora dele. Têm a palavra, o poder social.

E nós, mulheres, o que temos?

Muito mais que eles! Pena que ainda não nos demos conta disto!

Temos os filhos que formarão o mundo de amanhã. Temos o poder de ensiná-los que justiça se faz em todos os lugares, com todos os seres. Podemos ajudá-los a entender que a mulher tem direitos, muitos direitos, assim como eles, e que precisam ser respeitadas, cuidadas e honradas, como eles desejam ser.”



(*) jornalista, educadora e escritora. Suas áreas de atuação são Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem mestrado, doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP. É sócia-diretora da Editora Comenius e coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.


2 comentários:

  1. Sabe, acho que nós mulheres precisamos de coragem e bom senso para tomarmos decisões na vida. Lógico , a experiência conta sabiamente nas mudanças,essas que só dependem de nós.
    Eu,mulher...ainda acredito com foi deixado no artigo acima,os desejos precisam ser refinados de sentimentos. Talvez assim possamos ser admiradas como ser,como pessoa que possui sentimentos. Apesar que uma boa parte não valoriza -se como mulher.
    E será bem possível que eu fique sozinha ,pois acredito que somos mais que carne. Essa mesma que uma grande maioria valoriza. Que quando chega o inverno , parece perder o valor e o ser que faz parte da mesma é engolido pela solidão. Mas também acredito que um pouco de sensibilidade,mude todo esse trajeto.

    Márcia.

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  2. Dora Incontri, sempre oportuna.
    Instrutivo texto.




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