Por Dora Incontri (*)
Fiz nesses dias um breve passeio pela rede,
em algumas línguas, para colher pessoas, ideias e informações sobre o tema
Educação e Espiritualidade, de que faremos um congresso internacional no ano
que vem. E depois de medir um pouco a temperatura do que anda acontecendo nesse
campo, na prática, nas universidades, no mundo editorial, inspirei-me a
escrever algumas reflexões sobre a espiritualidade nesse nebuloso, mas
estimulante início de milênio. Considere-se aqui espiritualidade qualquer
ligação com o divino, com a dimensão espiritual do ser. A espiritualidade pode
ou não estar vinculada a uma religião específica. Pode-se viver a
espiritualidade dentro ou fora de uma determinada corrente religiosa.
A notícia animadora é que há muita gente no
mundo trabalhando pelo diálogo, pelo encontro, pela convivência respeitosa e
pacífica entre as pessoas de diferentes credos, etnias, origens… Há muita gente
se propondo a uma espiritualidade aberta, questionadora, crítica, que permita a
busca pessoal e o respeito à consciência de cada um. Há igualmente muitos
estudos sérios, acadêmicos, que demonstram que a espiritualidade pode fazer bem
à saúde, trazer resiliência, aumentar a qualidade de vida, melhorar a
imunidade, produzir efeitos benéficos nas relações, promover valores solidários
e pacificadores. Há pessoas propondo práticas educacionais que levem em conta a
diversidade de crenças e cultivem a espiritualidade das novas gerações dentro
de um pluralismo saudável.
Há também uma possibilidade, antes nunca
experimentada em nenhuma época histórica, do ser humano ter acesso facilmente,
rapidamente, às mais antigas ou mais recentes religiões, movimentos, tradições.
Está tudo on-line, em todas as línguas. Está tudo publicado, em livro impresso
ou eletrônico. Em poucos segundos, podemos achar uma maravilha da poesia sufi,
diversas traduções do Baghavad Gita, salmos bíblicos, preceitos da Torá,
ensinamentos das mais diferentes linhas do Budismo, vídeos de líderes das mais
diversas correntes… Ou seja, há fartos alimentos espirituais em toda parte,
disponíveis, acessíveis.
O problema começa no fato de que no meio de
toda essa oferta há muita coisa misturada, de baixa qualidade e as pessoas não
têm referência e ignoram como escolher as fontes confiáveis, o alimento mais
saudável para a alma, assim como não sabem muitas vezes escolher o alimento
mais saudável para o corpo. Da mesma forma que temos fast foods a cada esquina,
que intoxicam e provocam câncer de cólon – temos espiritualidades enganosas,
que induzem à alienação e ao anestesiamento do espírito.
O que há de preocupante no cenário religioso
e espiritual em praticamente todas as nações? Em primeiro lugar, o
fundamentalismo cada vez mais eloquente, retrógrado e agressivo que se
manifesta como um câncer dentro de todas as religiões. Em todas elas, há
pessoas e movimentos abertos e progressistas e há setores que se apegam à
letra, que manifestam um fanatismo perigoso e que se fecham ao diálogo e à
tolerância. Essa é uma ameaça que nunca será demais denunciar – mesmo porque
ela está se fazendo cada vez mais forte no Brasil com os evangélicos mais
radicais – e porque está instalada em vários pontos do mundo.
Mas o outro fenômeno, talvez não tão claro
para muitos, é o esgarçamento, a diluição da espiritualidade num aluvião de
livrinhos, pregações, símbolos que não têm nada de espiritual, mas apenas de
comercial. Ideias, apelos, movimentos inteiros que são atrativos para os olhos,
sedutores para as mentes superficiais da atualidade, mas sem nenhuma
consistência. Isso que eu chamo de espiritualidade light, que mistura cristais
com autoajuda, que faz de padres pop stars que vendem milhões de CDs, que torna
monges budistas instrutores de executivos bem-sucedidos, que promove médiuns
medíocres e espalhafatosos em produtores de best-sellers… essa espiritualidade
é que nas prateleiras das livrarias está misturada com livros sérios de um
Leonardo Boff, com belezas de uma poesia sufi, com a profundidade de uma obra
de Teresa d’Ávila!
Num mundo em que a moeda mais valiosa é
a própria moeda, a lógica da oferta da
fé é uma lógica comercial. E os consumidores, como estão acostumados a consumir
lixo como comida, lixo como arte, também consomem lixo como fé… A maior parte
da população perdeu, ou nunca chegou a ter, por falta de uma educação que
proporcione isso, a sensibilidade e o discernimento para enxergar os falsos
gurus, para distinguir as tradições genuinamente enraizadas dos modismos
comerciais…
Mas assim como a rede, o mercado, os livros,
os vídeos oferecem todo esse alimento espiritual verdadeiramente rico,
misturado a grãos apodrecidos, também nela podemos achar polêmicas, denúncias,
discussões históricas sobre todas as grandes tradições. Ao mesmo tempo em que
podemos nos alimentar espiritualmente de várias origens ou escolher com mais
conhecimento de causa o que mais fala ao nosso coração, podemos encontrar
antídotos bastante relevantes contra mistificações, charlatanismos, falsidades
históricas e assim por diante. Está tudo aí, o verdadeiro e o falso, o elevado
e o abusivo, o sincero e o hipócrita, o que é fruto de pesquisa séria e o que é
enganação deslavada.
Como viver de fato a espiritualidade
Mas como nos conduzirmos nesse emaranhado de
ideias, ofertas e caminhos? É possível não sermos enganados? Esses enganos
podem ser mais inofensivos – como achar que um livro como Código da Vinci tem
respaldo histórico – ou mais graves, como entrar para alguma seita que nos faça
lavagem cerebral e nos aliene da própria razão!
Aqui, algumas dicas, que considero essenciais
para podermos viver uma espiritualidade construtiva, autônoma e saudável!
1) Ouçamos os ateus e os antirreligiosos:
eles têm críticas que podem ser úteis para nos imunizarmos contra os que abusam
da religião para explorar o próximo e para ganhar poder e dinheiro. Um pouco de
ceticismo faz bem à nossa espiritualidade.
2) Desconfiemos de líderes e gurus que
aceitam ser reverenciados, que ditam regras de cima, que vivem muito
distanciados das pessoas comuns. As pessoas que realmente vivem numa dimensão
espiritual elevada são simples, despojadas, não permitem que ninguém se humilhe
diante delas…vivem próximas às outras pessoas.
3) Desconfiemos de movimentos, instituições,
líderes que têm muito dinheiro. Em nosso mundo, quem luta por ideais nobres e
se alinha no bem, pode usar o dinheiro de maneira saudável e construtiva, mas
encontra dificuldades sempre, porque no sistema capitalista, só faz fortuna
quem age dentro da lógica do sistema – ora fazer fortuna com a espiritualidade
é tratá-la como mercadoria.
4) Acima de tudo, enraizemos nossa
espiritualidade em nós mesmos e não no outro. Para isso, é preciso ter tempo
para vivenciá-la: tempo para orar, tempo para sentir a natureza, tempo para
amar ao próximo e estar junto de quem precisa… ou seja, a vida contemporânea se
opõe a esse vagar, a esse respirar da alma e justamente por isso, pretende
vender espiritualidade em pastilhas, para serem tomadas entre um programa e
outro de televisão! Quem tem experiências espirituais profundas, verdadeiras e
legítimas não vai se iludir com falsos gurus!
A experiência espiritual pressupõe silêncio –
dos ouvidos físicos e da alma. Um silêncio que permita o aflorar do divino em
nós, que nos faça sentir a conexão com todas as coisas e nos permita saborear a
paz. Por isso, a espiritualidade requer uma mudança de atitude de vida – sem
excessos de trabalho, prazeres, informações, correrias. Uma vida de equilíbrio,
em que nos permitamos a pausa para um respiro da alma, para nos sustentarmos
com o alimento do céu, que sacia muito mais dos que os alimentos perecíveis do
comércio da fé.
(*) Jornalista, educadora e escritora. Suas áreas de atuação são Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo.
"A experiência espiritual pressupõe silêncio – dos ouvidos físicos e da alma. Um silêncio que permita o aflorar do divino em nós, que nos faça sentir a conexão com todas as coisas e nos permita saborear a paz. Por isso, a espiritualidade requer uma mudança de atitude de vida – sem excessos de trabalho, prazeres, informações, correrias." É necessária uma mudança radical diante das exigências de uma sociedade competitiva e consumista. É preciso começar.
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