Pular para o conteúdo principal

FALSA LIBERDADE

 

Por Jorge Luiz

Nos anos recentes, no cenário político, ressurgiu a expressão “Deus, Pátria, Família e Liberdade.” O slogan fez parte do movimento integralista liderado por Plínio Salgado, marcado pelo Manifesto de 7 de Outubro de 1932, pela Ação Integralista Brasileira. O movimento integralista e seus slogans foram inspirados nas ideias do ditador fascista italiano Benito Mussolini, com quem Salgado conversou pessoalmente. O movimento integralista traz em sua abertura a seguinte mensagem: Deus dirige os destinos dos povos. [...] O homem vale pelo trabalho, pelo sacrifício em favor da Família, da Pátria e da Sociedade. [...]toda superioridade provém de uma só superioridade que existe acima dos homens: a sua comum e sobrenatural finalidade. Esse é um pensamento profundamente brasileiro, que vem das raízes cristãs da nossa História e está no íntimo de todos os corações.

É fácil observar que os valores intrínsecos sem uma análise discursiva são por demais tentadores para o vulgo. Enaltecendo as raízes cristãs, é fácil compreender o poder agregador junto às hostes neopentecostais que se assumem cristãs, embora, na realidade, nada de cristãs tenham.

A liberdade a esses dogmas adicionada, no caso brasileiro, é a libertação do comunismo. Este, na realidade, é um fantasma como bem o define Karl Marx na abertura do Manifesto Comunista, publicado em 1848. É um fantasma que, por ser desconhecido por muitos, é ferramenta para impor medo às massas. Lembro-me que, na minha infância, lá pelos idos do início da década de 1960, na Bahia, Carlos Marighela, em visita à minha cidade, causou o maior alvoroço. Em minhas lembranças, ainda ressoam em minha mente os gritos de desespero das mães ao pedirem para os filhos que entrassem em casa, pois os comunistas haviam chegado e eles “comiam as criancinhas”. As metamorfoses desse “fantasminha camarada” ainda continuam a assustar. Indague sobre o que é comunismo; socialismo e não obterá nenhuma resposta objetiva sobre o tema.

A realidade é que, encantoada de forma torpe e associada a símbolos nacionais e, a Deus e à família, à Pátria, a liberdade vem ao longo da história produzindo rastros de violência, opressão, sangue e morte, e isso não tem sido diferente no Brasil nos últimos tempos, sempre com o propósito de libertar o Brasil do fantasma do comunismo. Disse muito bem o Apóstolo Pedro, em sua Epístola I: “como livres, e não tendo a liberdade a pretexto da malícia, mas vivendo como servos de Deus.” Vê-se, pois, que a liberdade – sentido filosófico – dissociada da igualdade e da fraternidade, sempre é pretexto de atitudes que violam os valores cristãos, embora pareçam reforçá-los.

A exemplo do integralismo, a extrema-direita brasileira defende o livre empreendedorismo, o modelo de família tradicional, constituída no Antigo Testamento. A Bíblia definirá o modelo de sociedade a ser moldada, naquilo que se denomina Teologia do Domínio. As crenças fora disso serão eliminadas.

Essa liberdade maliciosa que Pedro ressalta é a que tem sido reclamada e associada a símbolos nacionais, que tem sido viabilizada e radicalizada, propiciando o ódio entre os indivíduos. Esse fator por si só é um ataque aos princípios democráticos e cristãos.

A flâmula da liberdade é sempre desfraldada quando a humanidade a herdou integrada ao lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, por ocasião da Revolução Francesa, sendo até hoje slogan para o grito dos ativistas ao redor do mundo em prol das democracias e da derrubada de governos opressores à sua realização, como aqui já se instituiu e quis se instituir recentemente, evocando-a.

Liberdade, Igualdade, Fraternidade: estas três palavras constituem, por si sós, o programa de toda uma ordem social que realizaria o mais absoluto progresso da Humanidade, se os princípios que elas exprimem pudessem receber integral aplicação (Kardec, 1987). Allan Kardec desenvolve um ensaio sobre o lema revolucionário francês, que está inserto em Obras Póstumas.

Não há posições no mundo em que um homem possa gozar de liberdade absoluta, só, tão somente só, o eremita no deserto. Desde que haja dois homens juntos, há direitos a respeitar e não terão eles, portanto, liberdade absoluta. A obrigação de respeitar os direitos alheios tira ao homem o direito de pertencer a si mesmo, a liberdade natural que vem da natureza. (Kardec, 2000, questões nº. 825 a 827).

A única liberdade que o homem goza sem limites é de pensamento, pois este não conhece entraves, apesar de se impedir suas manifestações, mas não o aniquilar. (Kardec, 2000, questão nº. 833). Estando as leis de Deus insculpidas em nossa consciência, a liberdade de consciência é uma consequência da liberdade de pensar (idem, questões nº. 621 e 835).

A liberdade, diz Kardec, é filha da fraternidade e da igualdade. Falamos da liberdade legal e não da liberdade natural, que, de direito, é imprescritível para toda criatura humana, desde o selvagem ao mais civilizado. Sem a fraternidade, a liberdade é rédea solta às torpezas, à anarquia, à licença (Kardec, 1987); fica compreensível o uso da liberdade pelas práticas fascistas.

Jean-Jacques Rousseau, em 1762, partindo da compreensão de que o homem nasce livre, e em toda parte se encontra sob ferros, escreveu a obra Do Contrato Social com o propósito de criar uma sociedade justa e igualitária, baseada na soberania do povo. Rousseau denomina essa liberdade consequência da natureza humana de liberdade comum.

O que o homem perde pelo contrato social – diz Rousseau – é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e pode alcançar; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Para que não haja engano em suas compensações, é necessário distinguir a liberdade natural, limitada pelas forças do indivíduo, da liberdade civil, que é limitada pela liberdade geral, e a posse, que não é senão o efeito da força ou do direito do primeiro ocupante, da propriedade, que é possível ser baseada num título positivo. (Rousseau, 2011).

Compreende-se, pois, que ao não mais prescindir dos cuidados da família socialização primária –, o indivíduo inicia o seu processo de socialização secundária, que se desenvolverá ao longo de toda a sua existência. Para isso, ele necessita ceder parte de sua liberdade natural, e começará a ter direitos e cumprir deveres em relação ao seu próximo, como bem definiu Kardec anteriormente.

O professor e filósofo J. Herculano Pires possibilita compreensão quanto à ambivalência do homem em relação à liberdade, de fácil compreensão para os propósitos fascistas. Embora, instintiva e intuitivamente, tenha a liberdade em sua essência, sabe que necessita dela para viver, mas teme em perdê-la. A partir dessa compreensão, os que asfixiam a liberdade, como os extremistas de direita, fazem questão de aparentar andar de braços com ela. Diz o professor, nada irrita mais um tirano do que ser acusado de tirania. Seja político, religioso, empresarial, doméstico ou de qualquer outra categoria, apelam para outra palavra ambígua: disciplina. Para eles, a liberdade para ser eficaz tem de ser disciplinada, caso contrário, cai na anarquia (Pires, 2005).

Observe-se que a forma de pensar dos extremistas, em qualquer ideologia, contraria a parceria da liberdade com a fraternidade, como discorre acima Kardec.

“...tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até o arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo” (Kardec, 2000, questão nº. 540). Deus é amor, amor que se expande do átomo aos astros, diz o Espírito Emmanuel (Xavier, 1962). Portanto, o amor é força motriz de toda a dinâmica da vida. A jornada libertária dos reinos primários – mineral, vegetal, animal – realiza-se pela força do amor e pelo desejo de liberdade do princípio que anima a vida nesses estágios; vede a simples semente quando sufocada, oprimida no solo, em que se transforma. Ao atingir a consciência na fase hominal, o homem também não admite ser oprimido por força ou violência.

A concepção espírita do homem e da sociedade sustenta que os Estados realmente democráticos deverão elevar-se até o plano espiritual do Ser e considerar a sua evolução palingenésica. Isto quer dizer que cada cidadão deverá ser considerado como um espírito encarnado, que, para expressar-se, necessita de uma liberdade que não esteja viciada por nenhuma ambição materialista. (Mariotti, 1963) Conclui-se, pois, que a liberdade não deve ser arguida a despeito de subterfúgios que se desdobrarão em estados de opressão, negacionismo, reacionarismo, como se colocaram e continuam se colocando nesses apelos extremados.

 

Referências:

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.

_____________. Obras póstumas. Brasília: FEB, 1987.

MARIOTTI, Humberto. O homem e a sociedade numa nova civilização. São Paulo: Edicel, 1963.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Martin Claret, 2014.

PIRES, J. Herculano. Os sonhos de liberdade. São Paulo: Paideia, 2005.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Escala, 2011.

SALGADO, Plínio. Manifesto de 7 de Outubro de 1932.

XAVIER, Francisco C. Justiça divina. Brasília: FEB, 1962.

Comentários

  1. Leonardo Ferreira Pinto25 de fevereiro de 2025 às 19:57

    Ótima contribuição para importante debate. Principalmente para os jovens.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

POR QUE SOMOS CEGOS DIANTE DO ÓBVIO?

  Por Maurício Zanolini Em 2008, a crise financeira causada pelo descontrole do mercado imobiliário, especialmente nos Estados Unidos (mas com papéis espalhados pelo mundo todo), não foi prevista pelos analistas do Banco Central Norte Americano (Federal Reserve). Alan Greenspan, o então presidente da instituição, veio a público depois da desastrosa quebra do mercado financeiro, e declarou que ninguém poderia ter previsto aquela crise, que era inimaginável que algo assim aconteceria, uma total surpresa. O que ninguém lembra é que entre 2004 e 2007 o valor dos imóveis nos EUA mais que dobraram e que vários analistas viam nisso uma bolha. Mas se os indícios do problema eram claros, por que todos os avisos foram ignorados?

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

A ESTUPIDEZ DA INTELIGÊNCIA: COMO O CAPITALISMO E A IDIOSSUBJETIVAÇÃO SEQUESTRAM A ESSÊNCIA HUMANA

      Por Jorge Luiz                  A Criança e a Objetividade                Um vídeo que me chegou retrata o diálogo de um pai com uma criança de, acredito, no máximo 3 anos de idade. Ele lhe oferece um passeio em um carro moderno e em um modelo antigo, daqueles que marcaram época – tudo indica que é carro de colecionador. O pai, de maneira pedagógica, retrata-os simbolicamente como o amor (o antigo) e o luxo (o novo). A criança, sem titubear, escolhe o antigo – acredita-se que já é de uso da família – enquanto recusa entrar no veículo novo, o que lhe é atendido. Esse processo didático é rico em miríades que contemplam o processo de subjetivação dos sujeitos em uma sociedade marcada pela reprodução da forma da mercadoria.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

ESPÍRITAS: PENSAR? PRA QUÊ?

           Por Marcelo Henrique O que o movimento espírita precisa, urgentemente, constatar e vivenciar é a diversidade de pensamento, a pluralidade de opiniões e a alteridade na convivência entre os que pensam – ainda que em pequenos pontos – diferentemente. Não há uma única “forma” de pensar espírita, tampouco uma única maneira de “ver e entender” o Espiritismo. *** Você pensa? A pergunta pode soar curiosa e provocar certa repulsa, de início. Afinal, nosso cérebro trabalha o tempo todo, envolto das pequenas às grandes realizações do dia a dia. Mesmo nas questões mais rotineiras, como cuidar da higiene pessoal, alimentar-se, percorrer o caminho da casa para o trabalho e vice-versa, dizemos que nossa inteligência se manifesta, pois a máquina cerebral está em constante atividade. E, ao que parece, quando surgem situações imprevistas ou adversas, é justamente neste momento em que os nossos neurônios são fortemente provocados e a nossa bagagem espiri...

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...