Pular para o conteúdo principal

UNIDOS CONTRA O "APARTHEID" ESPÍRITA*

 

Logo da editora Correio Fraterno

 

Por Marcelo Henrique

 

       Motivo de congratulações é o texto de capa do jornal “A Flama Espírita”, de Uberaba (MG), em sua edição de março/abril (número 2.766), intitulado “Apartheid Espírita”, e subscrito por Joamar Zanolini Narareth.

        As considerações do articulista, que inova na aplicação de um conceito sócio-jurídico para o meio espírita, envolvem as atitudes de parte do movimento espírita que não tolera a convivência com os “diferentes”, promovendo ações contrárias aos próprios princípios básicos espiritistas, como a fraternidade e o respeito à liberdade espiritual de cada um.

    Consta do texto, introdutoriamente, a explicação do termo Apartheid, de triste memória na civilização terrena, quando, em nome da segregação (preconceito) racial, a minoria de colonizadores brancos de um país africano (África do Sul) impunham severas (e ilegítimas) sanções à maioria negra, de 1948 a 1990. Joamar salienta, inclusive, que o vocábulo – antes restrito conjunturalmente – passou a significar e simbolizar todo e qualquer “[...] preconceito contra pessoas, ideologias e pensamentos diferentes”. E nisto, tem toda a razão.

    Assim, em seguida, lista situações muito comuns na ambiência espírita, que enquadram ações ou omissões praticadas pelos espíritas contra os espíritas, as quais entendemos oportuno transcrever:

 

“Infelizmente, dentro do próprio Movimento Espírita temos criado abismos entre: * os médiuns e os não médiuns (ostensivos); * os dirigentes e os colaboradores mais simples; * os intelectualizados e os pouco letrados; * os oradores de recurso e os tímidos da palavra; * os experientes e os iniciantes; * os da madureza e os da mocidade; * os membros de um grupo e os pobres e carentes (só os encontramos no dia da tarefa); * os que pendem mais para determinado aspecto do Espiritismo (mais científico, mais filosófico, mais etc.) e os que estão mais ligados a outro aspecto.”

     A consequência é o isolamento, o afastamento, o trabalho fragmentado, quando não a perseguição e o combate (aberto ou dissimulado) em relação a quem “pensa ou age diferentemente”. Nós mesmos já sofremos isso na pele, recebendo direta ou indiretamente de certos dirigentes a seguinte admoestação: “Não. O Marcelo Henrique na nossa [minha] casa, não fala!” Ainda há pouco, um companheiro nosso, de destacada trajetória no movimento, médico e escritor espírita, pessoa amável e de postura conciliadora, tendo sido convidado a palestrar em dada instituição, depois de tudo programado e divulgado, foi “desconvidado” por dado dirigente, que entendeu ser o companheiro “muito político”, isto é, ter ligações político-partidárias (direito individual e de cidadania) e trabalhos “sociais” ou “filosóficos”, com os quais o dirigente não se afinizaria.

    Vale salientar que não há “algemas” ou “amarras” no associativismo espírita e cada um se filia ou desfilia de grupos ou instituições de acordo com suas convicções. Por extensão, não há um “molde” espírita ao qual todos devam se adequar, muito porque em face de tanta diversidade espiritual – individual e coletiva – as pessoas costumam aplicar aos atos e instituições aquilo que entendam, particularmente, como bom, útil e proveitoso.

    Historicamente, se constata na Humanidade o desejo pela “padronização” de comportamentos, e, em muitos casos, a imposição e o patrulhamento de consciências, em regimes mais totalitários ou despóticos e em organizações mais conservadoras. O controle, assim, passa pela “domesticação” das consciências. Até mesmo o Espiritismo – leia-se o movimento, ou seja, as próprias instituições locais ou maiores – está sujeito a isso, e, neste particular, são criados “modelos” de estruturas e “requisitos básicos” para a filiação e a participação. Nada contra, nem a favor, muito pelo contrário. Explicando: como todos são livres (em tese) cada um é capaz de discernir se estará (ou não) sujeito às “ordens” e “determinações” do movimento a que queira se filiar (ou manter-se, em última hipótese, adeso). O que não podemos, em nenhuma hipótese, admitir, é que um ou outro organismo seja o “verdadeiro”, o “oficial”, o “único” credenciado a “falar em nome do Espiritismo”.

     Particularmente, somos contrários a todo e qualquer disciplinamento rígido e, por extensão, entendemos que as (poucas) normas devam ser gerais, atendo-se a aspectos que precisem ser disciplinados, como os constantes nos estatutos das instituições, cingidos às determinações legais vigentes em nosso ordenamento civil. No mais, toda e qualquer “disciplina” deve ser encarada com muito cuidado, porque as pessoas, infelizmente, com poderes “em suas mãos” acabam exorbitando, tornando-se orgulhosas e vaidosas, pelo pretenso controle que possam ter sobre as outras.

    Já é tempo de pensarmos em democratizar o movimento, adotando práticas de gestão colegiada e participativa, diminuindo o abismo que há entre presidentes ou gestores e os demais participantes (de diretoria, de grupos) e, até, dos próprios frequentadores. Em todos os níveis, é imprescindível a adoção de métodos e políticas de participação constante (prévia, concomitante e posterior), com amplo acesso às informações pelo chamado “público de interessados” (associados, colaboradores, parceiros).

    Noutra acepção, como o Espiritismo se baseia na lógica racional e no livre exame DE TUDO, impossível e descabido é qualquer tentativa de impor exigências ao “modo de pensar”. Há algum tempo, ouvi de um dirigente federativo, que a Doutrina Espírita não comportaria um “movimento de livres-pensadores” porque a própria doutrina é “livre-pensadora”. Ora, se a “mãe” é livre, seus “filhos” (adeptos e estudiosos) também o são e, portanto, devem, sim e sempre, colocar sob análise (eu diria até suspeita) toda e qualquer informação, seja proveniente de que fonte for. O próprio Codificador – mesmo considerando a imutabilidade das leis divinas aplicáveis a todos os mundos habitados – ressalvou a hipótese (muito palvável e visível, hoje, aliás) de algum(ns) ponto(s) da Obra Espírita estarem sujeitos à reavaliação e progressividade, em função da evolutividade individual e coletiva – que, neste caso, endereçaria os encarnados a novas incursões, novas análises e a ressignificação de muitos conceitos e teorias, não porque elas estivessem “ultrapassadas” em si, mas porque a leitura (feita em 1857 e nos anos seguintes) não seria condizente com o habitat planetário do século XXI.

    Mas, em contraponto, o que prescrevem, fazem e vociferam os dirigentes e “representantes oficiais” do Espiritismo em nosso país: - que a codificação é intocável; - que não há espírito encarnado com autoridade moral e espiritual para “complementar” ou alterar o conteúdo filosófico-científico espírita; - que, caso sejam necessárias novas “revelações”, os Espíritos Superiores se utilizarão dos médiuns para ditar novas “verdades”. Ou seja, dogmatizamos o Espiritismo, por não lhe permitir o suficiente arejamento de ideias e a saudável discussão de todos os seus pontos, ressalvados, é claro, os aspectos relacionados aos seus princípios ou fundamentos básicos (os quais, aliás, pertencem ao plano das realidades contidas nas Leis Universais).

     Ao dogmatizarmos, criamos um abismo entre nós e os outros, ou, como bem ilustra Nazareth, o Apartheid que exclui, distancia, rotula, agride e impinge barreiras e condicionamentos desnecessários. Aplaudo, portanto, a frase mais categórica de seu texto: “[...] Diferença significa exclusividade, e não inimizade”. Isto mesmo, amigo, exclusivos são os próprios Espíritos, únicos, individuais, com bagagens distintas, com apreciações e visões particulares, que ninguém avilta ou desmerece. Cada um de nós compõe a análise que lhe é peculiar a cada momento e, mesmo considerando que não somos “intocáveis”, estamos sujeitos a influências do outro e do próprio meio social, na formação de nossas convicções.

     Daí a pontuar que tal influência seja dirigida e obrigatória, moldando os “caracteres de um genuíno espírita”, conforme os padrões definidos por uma minoria que se assenhora dos processos e se julga donatária do conteúdo espírita-espiritual, jaz uma imensa e abismal diferença.

     Felicíssima, por fim, a recomendação do articulista mineiro, com a qual encerramos este nosso Ombudsman, desejando que ela seja, daqui por diante, a sugestão (não a regra, nem a diretriz única) para nossos envolvimentos com o outro, espírita igual a nós, por convicção, mas que pensa diferente – e tem direito inalienável a isso: “Aproveitemos que estamos no trabalho dessa maravilhosa e especial Doutrina, e nos irmanemos dentro de nossos grupos, com os adeptos das várias correntes dentro do Espiritismo, com os defensores de outras ideologias religiosas, filosóficas e científicas, com os de gostos diversos em todas as áreas do pensamento humano.”

 

 *editado originalmente no site Espiritualidade e Sociedade

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

ALLAN KARDEC E A DOUTRINA ESPÍRITA

  Por Doris Gandres Deolindo Amorim, ilustre espírita, profundo estudioso e divulgador da Codificação Espírita, fundador do Instituto de Cultura Espírita do Brasil, em dado momento, em seu livro Allan Kardec (1), pergunta qual o objetivo do estudo de uma biografia do codificador, ao que responde: “Naturalmente um objetivo didático: tirar a lição de que necessitamos aprender com ele, através de sua vida e de sua obra, aplicando essa lição às diversas circunstâncias da vida”.

PUREZA ENGESSADA

  Por Marcelo Teixeira Era o ano de 2010, a Cia. de teatro da qual Luís Estêvão faz parte iria apresentar, na capital de seu Estado, uma peça teatral que estava sendo muito elogiada. Várias cidades de dois Estados já haviam assistido e aplaudido a comovente história de perdão e redenção à luz dos ensinamentos espíritas. A peça estreara dez anos antes. Desde então, teatros lotados. Gente espírita e não espírita aplaudindo e se emocionando. E com a aprovação de gente conhecida no movimento espírita! Pessoas com anos de estrada que, inclusive, deram depoimento elogiando o trabalho da Cia. teatral.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

A CULPA É DA JUVENTUDE?

    Por Ana Cláudia Laurindo Para os jovens deste tempo as expectativas de sucesso individual são consideradas remotas, mas não são para todos os jovens. A camada privilegiada segue assessorada por benefícios familiares, de nome, de casta, de herança política mantenedora de antigos ricos e geradora de novos ricos, no Brasil.

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

O MOVIMENTO ESPÍRITA MUNDIAL É HOJE MAIS AMPLO E COMPLEXO, MAS NÃO É UM MUNDO CAÓTICO DE UMA DOUTRINA DESPEDAÇADA*

    Por Wilson Garcia Vivemos, sem dúvida, a fase do aperfeiçoamento do Espiritismo. Após sua aurora no século XIX e do esforço de sistematização realizado por Allan Kardec, coube às gerações seguintes não apenas preservar a herança recebida, mas também ampliá-la, revendo equívocos e incorporando novos horizontes de reflexão. Nosso tempo é marcado pela aceleração do conhecimento humano e pela expansão dos meios de comunicação. Nesse cenário, o Espiritismo encontra uma dupla tarefa: de um lado, retornar às fontes genuínas do pensamento kardequiano, revendo interpretações imprecisas e sedimentações religiosas que se afastaram de seu caráter filosófico-científico; de outro, abrir-se à interlocução com as descobertas contemporâneas da ciência e com os debates atuais da filosofia e da espiritualidade, como o fez com as fontes que geraram as obras clássicas do espiritismo, no pós-Kardec.

O DÓLMEN DE KARDEC

31 de março de 1869  A llan Kardec ultimava as providências de mudança de endereço. A partir de 01 de abril de 1869, o escritório de expedição e assinatura da Revista Espírita seria transferido para a sede da Livraria Espírita, à rua de Lille, nº 7 , onde também, provisoriamente, funcionaria a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Na mesma data, os escritórios da redação e o domicílio pessoal de Allan Kardec seriam transferidos para a Avenue et Vila Ségur, nº 39, onde Kardec tinha casa de sua propriedade desde 1860. Entremeando onze e doze horas, quando atendia um caixeiro de livraria, caiu pesadamente ao solo, fulminado pela ruptura de um aneurisma. Aos 65 anos incompletos, desencarnava em Paris, Allan Kardec.             Sr. Muller, amigo de Kardec, um dos primeiros a chegar à sua residência, assim descreve em trecho de telegrama enviado: “Tudo isto era triste, e, entretanto, um sentimento d...